– Alô?
– Sou eu. Pode falar cinco minutos?
– Posso. Estou escrevendo o próximo episódio aqui, mas
posso.
– É sobre isso que eu quero falar com você.
– Sobre o próximo episódio?
– Não. Quer dizer, também. Quero falar sobre o que vem
acontecendo de forma geral.
– Como assim?
– Você tem lido as críticas sobre os últimos episódios?
– Não, eu não leio críticas.
– Bem, você deveria ler. Todo mundo está metendo o pau no
seriado.
– Mesmo? O que eles dizem?
– Você deixa o seriado se arrastando por uma temporada inteira
e nada acontece... Aí, chega no final da tem...
– Espere, eu não deixei nada se arrastando. Eu fui
construindo o clima.
– Construindo o clima?
– Isso. Eu colocava um protesto aqui, outro ali. Uma decisão
de ministério ali. Ia criando o cenário para o clímax do final da temporada.
– Bom, não é o que pareceu. Todo mundo diz que a série
enrolou uma temporada inteira e agora está tudo confuso.
– Não tem nada confuso.
– Como não? Como não? Eu recebo seus roteiros aqui e não
entendo nada! Você está fazendo dez coisas acontecerem por episódio!
– Não seja exagerado.
– Exagerado? Olha só: episódio 13. Mandam prender o
ex-presidente. Aí ele vira ministro. Na cena seguinte... Veja bem, não é nem no
bloco seguinte, é NA CENA SEGUINTE, você resgata aquele juiz que não aparecia
desde a terceira temporada e joga ele soltando uma liminar impedindo o
ex-presidente de ser ministro. Você não esperou nem trocar de bloco, você fez
na cena seguinte!
– É pra mostrar a loucura do momento!
– Se isso mostra uma loucura, não é do momento, é a sua!
Ninguém está entendendo nada! E as escutas?
– Gostou das escutas? Como ferramenta narrativa, elas
funcionam bem demais, não acha?
– Olha, pode até ser. Mas você não acha que está exagerando?
– Como assim?
– Olha só, eu tenho anotado aqui. Episódio treze. Teve duas
escutas. Beleza, elas eram importantes para a história. Episódio catorze.
Dezessete escutas. Já começou o exagero.
– Mas elas também são imp...
– Espere, eu não terminei. Episódio quinze. Você lembra
quantas foram?
– Não. Acho que umas vinte. Talvez vinte e cinco.
– SETENTA E TRÊS!
– Ah. Achei que fosse um pouco menos. Mas elas são
essenciais. E eu sei que o povo está gostando isso. Eu li na internet que isso incendiou
a série.
– Sim, eu concordo. Mas... Aliás, você chegou a ver se essas
escutas são legais antes de escrever?
– É... Bom...
– Lembra quando você me falou sobre essa ideia das escutas? Eu
disse claramente para você: pesquise isso antes de escrever, para não ter
nenhum advogado dizendo que o roteiro não é realista. Lembra?
– Sim, sim.
– E você não viu?
– Não, vi sim. Pode ficar tranquilo.
– Mesmo? Você não parece muito seguro.
– Vi sim.
– E elas são legais?
– Ah... Acho que sim. Quer dizer, sim.
– Eu conheço você. Você está mentindo.
– Não, eu pesquisei sim. Eu tenho anotado aqui em algum
lugar.
– Ok. Manda essa pesquisa depois que eu quero ver.
– Certo.
– Mas enfim, independente disso, você está exagerando. Tem coisas
nessas escutas que nem mesmo os atores sabem do que se trata! Parece que cada episódio
você inventa uma empreiteira nova!
– Não, está tudo conectado.
– Sim, mas não adianta você me dizer isso. Você precisa
mostrar. E não para mim, mas para os espectadores. Ontem mesmo os executivos do
canal me ligaram.
– Ah, é?
– Sim. Eles estão inconformados com a série.
– Claro. Eles são executivos, não entendem de arte. Para
eles, tudo é ruim.
– Então, esse é o ponto. Eles não falaram que está ruim.
Eles falaram que a coisa está tão confusa que eles não conseguem nem mesmo
entender se a série está ruim ou não.
– Bobagem. É só acompanhar com atenção.
– Você realmente acha isso? Acha que o roteiro está
completamente sem furos?
– Claro.
– Então vamos lá. Episódio doze.
– Aquele que o líder do governo faz a delação premiada?
– Isso. O episódio começa com ele fazendo a delação
premiada. Aí você tem o jornalista tendo acesso ao material. Beleza. Até aí,
tudo bem. Só que na cena seguinte mostra um ministro falando que o sujeito não
é confiável e a delação não pode ser levada a sério.
– Não ficou genial?
– GENIAL? O cara era o líder do governo!
– Isso.
– Aí ele faz uma delação premiada e o governo simplesmente diz
que ele não é confiável?
– Isso.
– Mas qual governo no mundo colocaria um cara que não é
confiável como líder no Senado? Quer dizer que o cara era confiável duas horas
antes e agora não é mais?
– Então, mas você tem que entender a sutileza. Quando eles
dizem que o cara não é confiável, é porque estão mentindo.
– Certo, eu concordo. Mas é uma mentira tão imbecil que
ninguém vai acreditar nisso.
– Mas essa é a graça.
– Então faz a coisa de forma satírica! Faz engraçada, sei
lá. Agora, você fez sério! Não funciona!
– Mas nesse país onde a série se passa o povo acredita
nisso.
– Mas eu não estou preocupado com o povo que mora nesse
país, eu estou preocupado com o povo que assiste ao seriado! E esse povo não é
imbecil! A emissora fez pesquisas, e todo mundo detestou esse episódio!
– Bom, sei lá. Que tal se eu fizer o líder do governo no
senado ser amante da mulher do ministro? E o ministro sempre soube disso, então
por isso ele sabia que o cara não era confiável.
– Não. Não. Não. Esquece isso. Vamos em frente. A bobagem já
está feita, se tentar arrumar isso vai só piorar.
– Você quem sabe.
– Mas, sério, eu preciso que você dê um direcionamento na série.
Dois atores vieram reclamar comigo.
– Quais?
– O que faz o ex-presidente e o que faz o Senador da
oposição. Eles não entendem mais os personagens.
– Como assim?
– O cara que fez o ex-presidente veio reclamar comigo que
ele não sabe mais se é honesto ou não, então não consegue mais interpretar
direito. Ele não sabe mais se está lutando por justiça ou para escapar da
cadeia.
– Entendi.
– E então...?
– E então o quê?
– Ele é ladrão ou não é? Ou nem você sabe?
– Não, eu sei sim. Tenho marcado aqui nas minhas anotações.
– Então, me fala.
– Eu preciso ver com calma aqui. Minha mesa está uma
bagunça. E o cara que faz o senador de oposição reclamou de quê? Porque esse personagem
é corrupto e se o ator não sabe disso é ele é idiota. Isso está claro desde o
começo.
– Então, mas é justamente sobre isso que ele veio reclamar.
Ele acha que o personagem dele está abandonado, porque todo mundo sabe que ele
é corrupto e nunca acontece nada com ele.
– Isso não é verdade.
– Ele é acusado e a acusação some. Sempre! Desde a primeira
temporada!
– Não, não é sempre assim.
– É sempre assim, sim! A acusação some. O cara é acusado e
de repente ninguém mais fala nada. E você nem se dá ao trabalho de explicar! Parece
que você tem preguiça de resolver esse personagem.
– Não, não.
– Aliás, tem um monte de coisa que você está deixando em
aberto por causa disso.
– Imagina. Não tem nada em aberto.
– Beleza. Então vamos lá: como você abriu a temporada atual?
– Hum... Acho que foi com o desastre ambiental.
– Isso. E cadê a solução disso?
– É... Bem...
– E a epidemia?
– Que epidemia?
– A do mosquito!
– Ah, sim. Nossa, nem lembrava mais. Bom...
– Olha, me parece que você trabalha assim. Você tem a ideia
de fazer um desastre ambiental e escreve isso. Aí você tem a ideia de fazer o
negócio do mosquito, se empolga e larga o desastre ambiental de lado. Você
simplesmente abandona o negócio e foda-se.
– Eu posso fazer o mosquito ser consequência do desastre
ambiental. Tipo, a lama criou outro tipo de mosquito que quando pica as pes...
– Não! Não! E não estamos discutindo esse caso, mas sim que
você sempre faz isso! Quando você teve a ideia das delações premiadas, você
abandonou o negócio do mosquito! E você nunca explica nada! Sabe do que eu
tenho medo?
– De quê?
– Você está todo empolgado com esse negócio de delação
premiada, escutas telefônicas... Só que eu sei que você vai começar a nova
temporada com as Olimpíadas.
– Como você sabe isso?
– Você me disse.
– Ah, é? Não lembrava.
– E aí você vai simplesmente pegar esse negócio da crise no
governo e não vai resolver! Vai largar de lado e começar a mostrar as Olimpíadas!
– Não, não. Eu vou resolver essa crise política sim.
– Não, não vai. Você não planeja nada antes de escrever. Aliás,
você nem revisa seus textos!
– Claro que reviso!
– Ah, é? Todos eles?
– Claro.
– Todos? Inclusive os pronunciamentos da presidente?
– Bem, eu preciso ver aqui, mas acho que...
– Os textos dela não fazem sentido! Ela começa falando sobre
o ministério e de repente está falando de cachorro, de farinha...
– Farinha? Eu nunca escrevi isso.
– Farinha, mandioca, eu não lembro agora. Mas era algo que
não tinha nada a ver. Os pronunciamentos dela têm pensamentos incompletos,
palavras soltas... Teve um dia que tivemos que mexer aqui... Tinha uma frase
sem verbo! Uma frase de dez ou doze palavras sem um verbo!
– Olha, eu realmente preciso ver...
– A atriz chorou nesse dia! Ela quase abandonou a série
porque não consegue decorar suas falas. Parece que você abre o dicionário e vai
escolhendo palavras aleatórias e jogando ali!
– Isso não é verdade.
– Não me importa. Revisa isso, por favor. Não é um
personagem qualquer, é uma chefe de estado. Ela precisa ao menor ter frases com
sujeito e predicado.
– Tudo bem.
– Mas enfim... Eu acho que você devia vir aqui para gente
poder planejar os próximos episódios com calma. Quero fazer isso junto com
você. E quero saber o que você vai fazer com aquele presidente da Câmara.
– Como assim?
– Esse personagem já deu o que tinha que dar, né? Eu sei
disso, e aposto que você sabe também. Mas você simplesmente se recusa a tirar
ele da série.
– Isso não é verdade.
– Esse personagem não dá mais. Ele é processado todo dia e
você simplesmente ignora isso, no episódio seguinte ele está lá e faz de conta
que não aconteceu. Olha, vamos abrir o
jogo. Eu sei que o ator é seu amigo e precisa do trabalho. Mas a gente precisa
conversar sobre isso. A gente precisa de uma reunião.
– Bom... Tudo bem.
– Que dia você pode vir aqui essa semana?
– Não pode ser na próxima?
– Por que não nessa?
– Porque eu tive uma ideia que estou desenvolvendo aqui essa
semana. Acho que pode virar algo bacana.
– Que ideia?
– Eu vou te falar, mas ainda é segredo. Ok?
– Certo.
– Só entre nós dois.
– Fala logo. Qual ideia?
– Sabe o personagem de extrema direita?
– Aquele homofóbico? Aquele que defende golpe militar?
– Isso. Você viu que ele tem ganhado cada vez mais
importância?
– Sim. E não entendo o motivo, porque... Olha, esse
personagem é caricato demais.
– Eu estou imaginando uma série só dele. Um spin-off. Não
tenho nome ainda, mas estou pensando em batizar essa série de Mito.
– VOCÊ ENLOUQUECEU?
– Eu acho que pode render coisa boa. Mas nem é para agora, é
mais para frente. Esto pensando em 2018.
– VOCÊ VAI VIR PARA CÁ AGORA! VOCÊ ENLOUQUECEU
COMPLETAMENTE!
– Então, hoje eu não pos...
– AGORA! PEGA TODOS SEUS PAPEIS E VEM PRA CÁ! EU QUERO VOCÊ
AQUI EM MEIA HORA! ESSA LOUCURA PRECISA ACABAR!
(Obrigado a leitora Nadia Nagel pela ideia.)
9 leitores:
Esse texto poderia se chamar "Snapshot".
Parabéns, como sempre, Rob! Valeu!
*slowlyclap*
Enquanto esse roteirista acha que está escrevendo House of Cards, tá mais pra um esquete zoadaço do Zorra Total.
Que merda, como sempre
Anônimo:
Sem nome assinando a crítica?
Que covarde. Como sempre.
Rob
Muito bom, muito bom mesmo.
Obrigado Tio Rob !!! 3 pessoas me olharam no ônibus por causa das risadas !!
Kkkk. Muito bom.
Eu gosto da sutileza de como a série investe em virais fakes. A audiência enlouquece compartilhando as coisas.
Olá Rob, ótima crítica, digo, ótima crônica. Sou ouvinte do Gente que escreve. Você e o Barreto têm me inspirado. Obrigado. Um abraço!
Huhauahuhauhauhauhauhauhauahauhu, saudade de ler tuas crônicas... Adorei!
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