28 de junho de 2010

Dona Zizi e a Mega-Sena

Era famosa no bairro, Dona Zizi. Desde que se mudou para a região, coisa de vinte anos atrás, ganhava a vida jogando tarô e búzios, fazendo a alegria das donas de casa da região. E levava seu trabalho bastante a sério, já que foi assim que, mesmo viúva, colocou os dois filhos na faculdade.

E, apesar de ainda enxuta, nunca se casara novamente. Homem de verdade era o Gilberto, que Deus o tenha. Viúva há quase oito anos, Dona Zizi nunca sequer cogitara a hipótese de se deitar novamente com outro homem. Era uma mulher à moda antiga, Dona Zizi.

Além disso, Gilberto fora um marido exemplar: gentil, atencioso, comportado, dormia cedo. Nunca aprontara nada, sempre chegava no horário. Não bebia e nem de futebol gostava. E quando viajava – normalmente a cada quinze dias, devido ao trabalho de representante comercial de uma empresa de cortinas – sempre trazia um pote de doces para ela.

E, mesmo depois de morto, ele ainda estava lá, no porta-retrato ao lado do sofá, assistindo o jornal e a novela com Dona Zizi.

Justamente por isso, Dona Zizi se concentrava apenas em seu trabalho. E o fazia com esmero – sem inventar previsões boas, sem colocar panos quentes nas ruins. Ela repetia exatamente o que via nas cartas ou nas pedras. E ainda procurava aconselhar as clientes sobre o problema, sempre servindo um chazinho de camomila que ela preparava com gosto. Mais que uma vidente, Dona Zizi era vidente e amiga de todas.

Assim, com o passar dos anos, Dona Zizi se tornou uma instituição entre as vizinhas. A adolescente queria saber se o namoro daria certo? A Dona Zizi respondia. A dona de casa estava em dúvida onde aplicar o dinheiro? A Dona Zizi jogava as cartas indicava se era melhor poupança ou imóveis.

Dona Zizi sabia tudo. Só não conseguia os números da Mega-Sena, e ficava brava com quem pedia isso.

– Quem adivinha os números da Mega-Sena é enganador. Isso não existe.

Porém, uma noite, Dona Zizi teve um sonho estranho.

Ela estava numa espécie de parque, num dia ensolarado. Caminhava por alamedas cercadas de grama e rodeadas por flores. Um desconhecido de terno e gravata se aproximou dela, carregando uma valise. Abriu a pasta – Dona Zizi ficou impressionada com o couro preto e escuro, que brilhava ao Sol – e puxou um papel, antes de recitar.

– 2. 4. 7. 8. 17. 21.

Dona Zizi continuou em silêncio, e ele repetiu.

– 2. 4. 7. 8. 17. 21.

– Que números são esses?, ela perguntou.

O homem ficou em silêncio, por um momento, distraído com alguns patos que começaram a berrar num lago próximo, até que olhou fixamente para ela.

– Você sabe do que estou falando, explicou sem explicar nada.

– Se esses forem os números da Mega-Sena, nem perca seu tempo.

– Zizi, preste atenção. 2. 4. 7. 8. 17. 21. Não se esqueça.

– Eu não acredito nisso.

– Às vezes, nem sempre o que acreditamos é verdade, Zizi. 2. 4. 7. 8. 17. 21.

– Chega! Eu não quero ouvir!

– 2. 4. 7. 8.

– Chega!

– 17. 21.

– Eu não vou jogar na Mega-Sena. Você está perdendo seu tempo.

– Zizi, às vezes é preciso esquecer aquilo no qual acreditamos.

– Isso não existe.

– Às vezes, é preciso arriscar. Mudar. Arrisque.

– Não. Não vou fazer isso.

– Zizi... Arrisque!

Dona Zizi acordou suada. Ainda estava escuro. Pegou o despertador. Quatro e pouco da manhã. Instintivamente, pegou o bloquinho de recados que deixava ao lado da cama – desde menina, anotava seus sonhos para estudá-los depois – e rabiscou os seis números. Deitou-se novamente e dormiu.

Na manhã seguinte, tomando café, começou a relembrar do sonho. Fez força para se lembrar do rosto do homem, mas foi em vão. Mal se lembrava do parque. Os números, porém, ela sabia de cor. 2. 4. 7. 8. 17. 21. Não precisava nem consultar o bloquinho.

Começou a pensar. Se jogasse na Mega-Sena, não iria ganhar. Era bobagem. Eram apenas números. Mas, se não jogasse, passaria o resto da vida pensando nisso. Antes de terminar seu pão com geléia, havia tomado uma decisão. Jogaria, apenas para ter certeza de que não ganharia. Claro que jamais contaria o sonho para alguém, mas iria à lotérica e faria um jogo, somente para tirar a prova dos nove, como ela gostava de dizer.

E, assim, na volta do banco, passou na casa lotérica e apostou. 2. 4. 7. 8. 17. 21. Voltou para casa e guardou o comprovante do jogo, com os números, na sala, abaixo do porta-retratos com a foto do Gilberto. Dois dias depois, folheando o jornal depois do almoço, avistou os números sorteados da semana. Sentiu um frio na barriga, mas fez força para ignorar a sensação.

Errou todos. Não passou nem perto de acertar algum.

Foi até a sala, pegou o volante da lotérica e o amassou satisfeita.

– Eu sempre disse. Não existe isso. É coisa de gente mentirosa. Agora sim está mais que provado.

Caminhou até a cozinha para jogar o papel fora, mas mudou de ideia no meio do caminho. Deu meia volta, abriu a carteira e colocou o papel ali dentro, após desamassá-lo sobre o móvel. Iria guardar aquilo como prova daquilo que sempre disse: ler as cartas era um trabalho honesto e nunca havia feito ninguém rico.

E, assim, continuou tocando a vida, prevendo a sorte das vizinhas.

Felizmente, ela nunca se deu ao trabalho de olhar os números com calma. Caso ela fizesse isso, talvez percebesse que não os números não eram da Mega-Sena. E talvez ela pegasse o telefone – somente por curiosidade, para ver o que aconteceria – e discaria 2478-1721. E então descobriria que o falecido Gilberto, O Gilberto que não bebia, não fumava e falava baixo, tinha outra família há mais de dez anos: mulher e três filhos – dois gêmeos –que recebiam as visitas do pai a cada quinze dias, quando ele contava para Zizi que precisava viajar a trabalho.

4 leitores:

C'est la vie disse...

Sabe o que eu acho? Foi melhor ela não ter ligado os fatos. Às vezes, a ignorância é uma amiga, principalmente qdo não se pode mais atacar/trucidar/arrancar os cabelos do sujeito que vivia vida dupla. Hahaha, adorei o texto e vou tentar jogar na MS com esses números aí... Quem sabe dá sorte?

Francine Ribeiro disse...

Cara, muito bom! Adoro o ritmo dos seus textos! Parabéns!
Quanto aos sonhos, eles são assustadores, algumas vezes..

Anônimo disse...

Que texto gostoso de se ler! Você tem o estilo de escrita que eu mais aprecio.

Anônimo disse...

Que texto gostoso de se ler! Você tem o estilo de escrita que eu mais aprecio.

 

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