Hoje eu estava no ônibus e uma menina ao meu lado estava no
telefone. Percebi logo que ela estava falando com alguém que conhecera na
internet, e que era a primeira vez que se falavam. Pelo que peguei da conversa,
eram cantadas padrão, risadinhas que escapavam e “você sabe tudo sobre mim”. O
que me incomodou era que a menina falava alto demais e não me deixava escrever
(eu estava rascunhando um projeto num caderno). Assim, comecei a reclamar disso
no Twitter, até que soltei uma premonição sobre o casal (neste tweet aqui).
Logo sugeriram que eu fizesse uma crônica sobre isso. Não
dei atenção na hora, mas dez minutos eu estava convencido de que talvez valesse
a pena. Mas, quando entrei em casa, menos de meia hora depois, eu já havia mudado
tudo: eu não iria transformar a história em uma crônica, mas sim em quatro
crônicas diferentes, cada uma contando a mesma história, com um tom diferente.
Assim, seguem as quatro variações sobre o mesmo tema abaixo:
Doce
Conheceram-se no Facebook. Não lembram ao certo como um foi
parar na lista de amigos do outro, mas começaram a bater papo. Mas ambos se recordam da primeira vez em que conversaram por telefone. Foi numa segunda-feira à tarde.
Ele pediu o número e ela pediu para ele ligar depois que ela saísse do
trabalho. Dito e feito. Ele ligou e conversaram. Ela, no ônibus, não parava de
sorrir e mal percebeu que estava falando alto demais. Contou um pouco sobre ela
– ele parecia adivinhar tudo, até mesmo que ela era ansiosa – disse que detestava
lugares cheios e adorava caipirinha de saquê. Ele disse que a voz dela era
linda e a risada era mais linda ainda, e ela sorriu. Falaram-se todos os dias.
Durante o dia, pela internet; à noite, por telefone. Conheceram-se pessoalmente
três dias depois. Na terceira cerveja dele (e no começo da segunda caipirinha
dela) o primeiro beijo. Inesperado naquela hora, e aguardado há dias. Ele
sugeriu que fossem para a casa dele, ela disse que não, ele insistiu, ela sorriu
que ele era atrevido, ele insistiu, ela abaixou os olhos e sussurrou “sossega”,
ele cochichou e ela aceitou. Gritaram de madrugada, ali no sofá da sala.
Gritaram até mais alto que a música que estava tocando no rádio e que ela
postou no dia seguinte, no Facebook, com um bom dia sorridente. Falavam-se
todos os dias, trocavam fotos e piadinhas nas redes sociais. Saíram mais quatro
ou cinco vezes. Na segunda vez, mesmo rotina: bar e casa com gritos. A partir
da terceira, direto para os gritos de madrugada. Mas na quinta vez algo parecia
errado. Algo parecia automático demais. Mesmo assim, roupas caíram no segundo vinho.
Desta vez não houve gritos, somente gemidos abafados. Algo havia mudado. Dois
dias depois, somente e novamente gemidos. Foi a última vez, pois ambos sabiam
que agora que os gritos haviam sido descobertos, gemidos não serviriam mais. No
dia seguinte, mal se falaram. Cada um seguiu seu lado, procurando por novos gritos de madrugada nas listas de amigos.
Salgado
Conversaram por telefone pela primeira vez no ônibus, no
final de uma segunda-feira. Haviam conversado o dia inteiro pela internet e como
o encantamento não cabia mais no monitor, foram para o telefone. As conversas
na internet eram perfeitas. Uma frase se encaixava com a outra como se fosse um
roteiro cuidadosamente escrito. Ele parecia saber tudo sobre ela, e ela parecia
adivinhar a vida inteira dele, e, quando palavras faltavam, um sorriso
preenchia o espaço. No telefone, tudo mudou. A ansiedade na voz dos dois (ele
tentava controlar, ela disfarçava sorrindo, mas não conseguia evitar falar alto
demais no ônibus) apenas deu mais tempero. No telefone, ela não parecia conhecê-lo
tão bem, nem ele parecia adivinhá-la tão fácil, mas o encantamento ainda era
recente, e com a magia das vozes coladas no ouvido, mal prestaram atenção isso.
Foi quando veio a fome de se ver – conversaram por mais dois dias, no mesmo
clima de “eu conheço você melhor do que você imagina” e se encontraram dois
dias depois. Desta vez, foi diferente. Ela não conseguia olhar ele nos olhos,
ele não sabia o que fazer com as mãos. E o terceiro silêncio maior que o normal
deixou claro que ali, cara a cara, sem pensar antes de escrever, sem olhar as
fotos, sem consultar rapidamente a faculdade que ela estudou para fingir que
estava adivinhando, as coisas mudaram de figura. Eram duas pessoas que mal se
conheciam e que não sabiam se comportar na frente do outro. Depois da segunda
caipirinha de saquê, cada um foi para sua casa, entraram no computador e
começaram a bater papo. Logo, veio a vontade de se ver. Mas nunca mais se
encontraram, estão conversando todos os dias há meses, totalmente apaixonados. Mas
concordaram que se encontrar pessoalmente está fora de cogitação, vai perder a
graça e um relacionamento tão forte como o nosso não se arruma em qualquer
lugar hoje em dia.
Amargo
Foi num dia como outro qualquer. Ele a chamou na internet por
que não tinha nada a perder, ela respondeu somente por que talvez tivesse algo
a ganhar. Logo, a conversa decolou e ambos descobriram que tinham a perder
somente a si próprios: ou seja, muito a ganhar. Passaram dias assim,
alimentando uma paixão sem olhar ou voz, até que ele criou coragem e tocou no
assunto, ela criou coragem e deu o número, ele criou coragem e ligou, ela criou
coragem e atendeu. E a conversa parecia melhor ainda no telefone. Cada um queria
falar tudo, mas também queria ouvir a outra pessoa inteira, e a ansiedade se
transformava em sorrisos dele e mordidas discretas dela no próprio lábio. Ficaram
dois dias apaixonados por uma voz até que ele criou coragem e tocou no assunto,
ela criou coragem e disse que sim, ele criou coragem e sugeriu um lugar ela
criou coragem e confirmou o horário. No bar, as vozes se transformaram em rostos
e o desejo se embebedou. E na terceira caipirinha de saquê e no segundo beijo
ele criou coragem e convidou, ela criou coragem e disse que calma, ele criou
coragem e insistiu, ela criou coragem e disse que vamos. Da internet para o
telefone, do telefone para o bar, do bar para a cama, faminto demais, urgente
demais, rápido demais... Até para acabar. A noite foi longa e ela voltou para
casa com o Sol nascendo, mas o dia seguinte foi curto. Ele criou coragem e
disse que não sabia mais se podiam se ver, ela criou coragem e perguntou como
assim, ele criou coragem e assumiu pela primeira vez para outra pessoa que
gostava de outra pessoa, ela criou coragem e não insistiu. Nunca mais se
falaram – mas ambos tinham certeza de que poderia ter dado certo. Faltou
somente um pouco de coragem.
Azedo
Começaram a conversar pela internet. Conforme o encantamento
apareceu, surgiram também os recadinhos públicos de um para o outro. Piadinhas.
Depois, músicas. E as conversas desenrolando conforme os dois ficavam mais
desembraçados. O dia que ela não entrou, ele publicou “saudade”, o dia que
conversaram até mais tarde ela publicou “totalmente acesa não consigo domir”.
Um curtia as coisas dos outros. De lá, foram para o telefone. A conversa ficou
ainda melhor. Ela postou que “e ainda tem voz gostosa”, e ele devolveu um sorriso,
depois de curtir o status dela. Quando se encontraram pela primeira vez, deram
check-in no bar e postaram fotos no Instagram. Primeiro, das bebidas
(caipirinha de saquê para ela, uísque para ele) depois das pernas dela,
cruzadas, sobre as pernas dele. Dezenas de amigos curtiram. Haviam se tornado
celebridades vivendo um romance de vitrine. Tudo durou exatamente cinco
encontros, quinze dias, dezenove fotos, cinco check-ins, dezenas de posts no
Facebook e centenas de curtir. Mas um dia acabou. Brigaram, sabe-se lá porque,
e pararam de ser ver. Mas a briga foi feia. Pararam de se ver, mas não de interagirem
de forma indireta. Nos próximos dias, cada um ficava postando indiretas no
Facebook o tempo inteiro, e o outro fingia que não via. As indiretas,
amarguradas e agressivas, eram para mostrar primeiro como haviam se decepcionado.
Depois, passaram a ser para mostrar para todos os outros amigos que cada um
estava sozinho e sofrendo. Eram iscas: ambos contavam que alguém saberia que
pessoas sofrendo estão dispostas a agir impulsivamente. Deu certo. Ele saiu com
uma menina do trabalho, ela saiu com um amigo de faculdade. Novos rostos, novas
fotos: primeiro, para machucar o outro, sempre com aquele tom de veja como
estou feliz sem você. Mas logo a mágoa passou a e as fotos e check-ins voltaram
ao normal. Era apenas para tornar público: afinal, se você tem alguém, não pode
reclamar de solidão na internet. Ambos não viam muita graça em ter alguém sem
poder transformar tudo em um acontecimento público, esperando por elogios invejosos
que ajudassem a perceber que estavam felizes e fazendo a coisa certa.
5 leitores:
E nenhum deu certo.
Dentro dessa degustação literária tenho que admitir que o sabor azedo caiu muito bem...
E, de todos os sabores, só faltou o umami, o saboroso da vida!
Muito bom, Rob!!
Grande abraço!!
"Logo sugeriram que eu fizesse uma crônica sobre isso. Não dei atenção na hora, mas dez minutos eu estava convencido de que talvez valesse a pena."
Valeu a pena 4 vezes! Muito bom!
ótimo, muito bom
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