Rodrigo era um adolescente comum, até o dia em que resolver
fazer arte. Mudou de nome – não queria mais ser chamado de Rodrigo, e sim de
Índio Vanillo, alegando que o nome causava uma ruptura no nacionalismo de
butique vigente – e passou a escrever poesias.
Andava pelas ruas da Zona Oeste de São Paulo usando sandália
feita de cordas, calças desbotadas e camisas manchadas propositadamente de
tinta e colando cartazes nos muros. A todos, dizia que escrevia das entranhas,
com textos cuidadosamente estudados para chocar o pedestre. A estranheza é a
mãe das artes, dizia.
Gostava particularmente de textos mais enfáticos, como “ame!
Mesmo que seja amor pela sua bosta, seu bosta!”, que ele considerou uma de suas
principais obras – até tirou uma foto com seu iPhone, colocando-a no Instagram com
as tags #ArtedaRua #ArteSuja #ArteVerdadeira e #AtaqueDoÍndioVanillo.
Mas gostava de pensar que sua grande obra-prima tinha sido o
cartaz com a frase “o pau do pai é pão”. Colocou o cartaz (não percebeu que
tinha um espaço duplo entre o “do” e o “pai”) na região, e como o fez somente muros
de padarias, afirmou a todos que esta era a primeira intervenção metalinguística
na história da cidade. Quando um amigo perguntou o que a frase queria dizer,
Rodrigo respondeu apenas que “o que você quiser” e ficou olhando com aquela
cara de “por isso que é brilhante, sacou?”.
Tentou outras formas de arte. Um dia, foi ao Parque
Ibirapuera logo cedo, onde espalhou dezenas de latas de leite condensado (havia
comprado as latinhas de um catador de lixo com a mesada que ganhou da avó), formando
a palavra PAS – assim mesmo, com “S” para, causa estranhamento. Mas, antes das
dez da manhã, os garis já haviam recolhido tudo, reclamando do moleque que
espalhou as latas.
Mas seu forte mesmo eram as poesias coladas em postes e
muros. “A função do artista é intervir na sociedade revolucionando o olhar do
povo, tá ligado? Fazer sentido é coisa de burguês”, dizia o tempo inteiro. Se
alguém respondesse, ele começava a gritar que “Godard não faz sentido!” e ia
beber.
Cansado de ver seu filho fazendo arte, o pai de Rodrigo
chamou o filho para uma conversa. Disse que era hora do garoto arrumar um emprego.
O garoto tentou argumentar que “meu trabalho é despertar os olhos da sociedade
para a inércia que vivemos”, mas o pai retrucou que ou começava a trabalhar ou
estava fora de casa.
Assim, o pai agendou uma entrevista com um amigo, diretor de
criação em uma pequena agência de publicidade. Na reunião – ele exigiu ser
chamado de Índio Vanillo – ficou acertado que ele seria redator de internet,
produzindo conteúdo para algumas marcas.
O garoto apareceu no dia seguinte, descalço, usando as
calças do avesso e com uma camisa rasgada. As pessoas só entenderam que ele era
o novo redator quando ligou o computador. Além disso, colocou um CD de música e
assim que deu play, a agência foi invadida pelo som de um tambor mal tocado e
abafada e os gritos e gemidos que às vezes pareciam uma mulher com problemas
fonéticos se afogando, e em outras, soavam como gato do mato sendo
estrangulado.
- Suas caixas de som estão quebradas?, perguntou o rapaz da
mesa ao lado. Era um diretor de arte júnior tentando ser simpático.
- É acid jazz rupestre de Okinawa. Essa banda toca na rua, em
cruzamentos. Eles rompem com os padrões de apresentações comerciais. Arte não
pode ser paga, ela é do povo.
- Ah. Entendi, respondeu o diretor de arte, levantando-se
para pegar um café. Na volta, parou na mesa do diretor de criação e pediu para
trocar de mesa.
Antes do almoço, decidiram passar um trabalho para o menino
novo que ouvia música estranha.
Escrever algumas postagens para o Facebook sobre um sabão em
pó, porque agora o produto tinha mais perfume e tirava manchas com mais
facilidade. Três ou quatro textos, de duas linhas cada.
Dono de uma criatividade avassaladora, Rodrigo tinha um
método próprio de trabalho. Pegou uma folha em branco e a colocou sobre a mesa.
E ficou encarando o papel em branco por minutos, imóvel. Ainda esperando pela
mesa nova, o diretor de arte ao seu lado perguntou se “você está bem, cara?” e
ele respondeu que “estou sentindo a arte em mim”, visivelmente incomodado de
ter que falar durante aquele momento.
De repente, apanhou a caneta ao lado e fez meia dúzia de
rabiscos sem sentido no papel.
- Isso aí é seu texto?
- Não. É só a arte escapando de mim. Vou fazer os textos
agora.
- Ah, tá, respondeu o diretor de arte, levantando-se para
explicar ao seu chefe que ou arrumavam uma mesa nova para ele, ou ele estava
fora da agência.
Rodrigo nem viu isso. Agora estava no computador
trabalhando. Fez o primeiro texto e enviou para o chefe.
Meia hora depois, foi chamado pelo diretor de criação.
- Que texto é esse?
- É o lance do sabão.
- Sim, eu imaginei. Mas aqui diz: “A desigualdade social é um
estrume fedorento e putrefato. Livre-se disso!”.
- Só.
- Eu não posso publicar isso.
- Cara, você vai alertar sobre o perigo da sociedade
capitalista. As pessoas vão curtir, vai ser um soco na cara.
- Eu não quero alertar sobre isso, eu quero alertar que tem
mais perfume.
- Então, mas tá aí, velho. A desigualdade fede, o sabão Lirpim
tem mais perfume.
- Pirlim.
- Oi?
- Pirlim. O sabão chama Pirlim.
- Ah, tanto faz. O que liga é a mensagem. Aliás, dá para
dividir isso aí.
- Dá para o quê?
- Primeiro, a gente coloca a foto de uma merda. Uma merda
grande, assim, tipo de cavalo. Tá ligado?
- Quê?
- É. A galera vai olhar e pensar “aí, o que esse povo quer
que com essa merda?”. E depois solta o texto.
- Você enlouqueceu, Rodrigo?
- Rodrigo, não. Índio Vanillo.
- Tanto faz. Não vou fazer isso.
- Aí, saca só. Imagina a foto da merda ali. Aquela merda bem
grotesca. Tá imaginando?
- Estou tentando não imaginar.
- É isso, velho! Ninguém quer imaginar isso, porque mostra a
sociedade que vivemos. Mas vamos jogar isso na cara da galera. Olha, aparece a
foto da merda.
- Olha, Índio Virgílio....
- Vanillo. Índio Vanillo. Aí, ao redor da foto da merda,
começam a aparecer expressões assim. Racismo. Intolerância. Consumismo.
Polícia. Leis. Corrupção. Religião. Conformismo.
- Olha, eu acho que...
- E, depois, bem grandão, acima do cocô, a palavra “você!”
- Eu preciso de um café.
- Velho, você vai jogar na casa das pessoas o que elas são.
ISSO É ARTE!
- Eu preciso de um post sobre o perfume.
- Então, eu não estou dando um post, mas uma intervenção.
Você coloca a pessoa como algo pequeno, mesquinho, podre.
- Essa pessoa pequena, mesquinha e podre é quem deve comprar
o produto do meu cliente.
- Isso. E aí o sabão Lirpin surge com o lance do “mais
perfume”. Ele tem mais perfume. E dá até para encerrar com um “apague essa
mancha do seu passado grotesco, seu podre”.
- Pirlim. O sabão chama Pirlim.
- Tanto faz. Velho, vai mudar a estrutura da internet. Uma
intervenção dessas...
- Olha, Índio Valério, eu...
- Vanillo. Índio Vanillo.
- Certo. Olhe, vamos fazer assim. Tire o resto do dia de
folga. Eu vou conversar com a equipe e pensar como podemos colocar essa ideia
em prática.
- Não, cara! Eu sou supervisionar isso!
- Não, fique tranquilo. Eu vou passar seu projeto para o
pessoal aqui, eles elaboram e, dependendo do que acontecer, eu te chamo.
- Certo. Mas fala lá que a merda tem que ser de cavalo. Se
quiser, eu tenho em casa, tô sempre tirando fotos de merda de cavalo. Eu sou
fotógrafo também.
- Imaginei. Mas não precisa, não. Nós devemos achar algo no
banco de imagens.
- Falou.
Esta foi toda a vida profissional de Rodrigo. Trabalhou uma
hora e meia em uma agência de publicidade. À tarde, seu pai recebeu uma ligação
do amigo, pedindo desculpas e dizendo que não dava, o menino era até esforçado,
mas não dava, sinto muito mesmo, e desligou.
Assim, Rodrigo abandonou totalmente seu lado Rodrigo e
tornou-se Índio Vanillo o tempo inteiro. Com a nova mesada da avó, imprimiu
dezenas de cartazes com suas fotos de merda de cavalo e a inscrição “Lirpin não
tem perfume suficiente para isso” e espalhou pela Vila Madalena, Pinheiros,
Pompéia, Perdizes.
E as poucas pessoas que olharam os cartazes repararam
somente que o nome do sabão estava escrito errado.
3 leitores:
Hahaha! os novos "artistas"
Índio Vanillo!
Texto genial!
Rindo muito, Rob!
Você tem uma criatividade singular!
Muito bom
Por um momento me senti andando pela vila madalena
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