- Este lugar está ocupado?
- Não. Pode sentar.
- Obrigada.
Estas foram as únicas palavras que trocaram. Assim que ela
se sentou no banquinho e apoiou os cotovelos no balcão da padaria, o homem ao
seu lado voltou a se concentrar no seu celular. Parecia estar conferindo os
e-mails. Às vezes, tomava um gole no café, mas logo voltava a olhar a tela do celular. Não olhou mais para a menina ao
seu lado.
Ela preferia assim. Queria ficar sozinha. Minutos atrás, estava
com os olhos cheios de lágrimas olhando os últimos parágrafos de uma crônica
que encontrara na internet. Nunca havia se identificado tanto com um texto como
naquele caso. Na metade do texto, ela ainda resistia à ideia de se enxergar
totalmente no lugar da personagem principal, mas, conforme a história se
desenrolava, a sensação se tornou mais poderosa que ela.
Quando o texto se aproximou do final, ela já estava vendo
sua vida - especialmente uma situação da qual lutava para esquecer – acontecer dentro
de uma crônica. Até os diálogos eram parecidos. E, ao final do texto, ela
percebeu que a única diferença entre ela e a personagem não era saber que ela
existia de verdade e a menina da crônica era inventada por alguém, mas sim o
fato de que a menina da crônica terminava a história pedindo desculpas ao
melhor amigo.
E ela nunca pedira. Ela nunca assumira que o erro fora dela.
Fazia meses que lutava para se convencer de que havia feito
o certo e a maior parte do tempo sabia que estava se enganando. Foi preciso que
uma crônica surgisse no meio da sua manhã para lhe jogar na cara que o erro
dela e ela quem deveria ter pedido desculpas. E foi por isso que saiu do escritório
e correu para a padaria. Pois queria ficar consigo mesma por alguns minutos e,
em certos momentos, a melhor maneira de ficar sozinho é se cercar de gente.
Pediu um suco de laranja somente para ter uma desculpa de
ficar um pouco mais ali, no balcão da padaria, quietinha entre a multidão e
lembrou-se da discussão, da mentira que não era mentira, da última briga. E
lembrou-se de quanto tempo passou tentando se convencer de que estava certa,
mesmo sabendo que estava errada. E chegou a sorrir de forma amarga pensando se
havia sido desmascarada por uma crônica porque sua mentira era frágil demais ou
se por causa da qualidade do texto.
Bebeu o suco querendo voltar no tempo e fazer tudo
diferente, mas agora era tarde. Certas coisas quebram em pedaços grandes e
podem ser coladas. Por mais que nunca mais voltem a ser o que eram, ainda ficam
inteiras – ou o mais perto que se consegue disso. Outras, entretanto, se
espatifam em cacos tão miúdos que são impossíveis de serem colados. Quebram
para sempre e tudo o que alguém pode fazer é varrê-los para baixo do tapete
mais próximo e apagar o objeto da memória.
Nunca mais falaria com a pessoa.
E saberia para sempre que a culpa era sua.
Despertou dos seus pensamentos quando o homem ao lado pediu
mais um café. A voz dele fez com que ela voltasse à realidade e olhasse ao
redor, quase se surpreendendo com o fato de que estava bebendo suco numa
padaria, e não meses atrás, no meio de uma discussão sem sentido que rasgou uma
madrugada.
De repente, sentiu-se mais leve. Não podia fazer nada, mas ao
menos sabia que a culpa era sua. Não precisava mais mentir para si mesma,
bastava apenas lidar com isso. Lidar e aprender a não fazer mais isso, aprender
a ouvir os outros e saber que as coisas nem sempre acontecem como a gente quer.
E teve vontade de ler a crônica novamente. Queria enxergar
aquela situação mais uma vez – mesmo que vivida por uma personagem de ficção – desta
vez sabendo que sabia exatamente o que precisaria fazer para que isso nunca
mais acontecesse. Mas não leria essa crônica hoje, não tinha coragem. Talvez
daqui a alguns dias.
Sorriu. Desta vez sem amargor. Desta vez, com a certeza que
poderia ser uma pessoa melhor. E, mais importante, sentindo que estava
começando a se perdoar por um erro que até minutos atrás nunca admitiu tê-lo
cometido. E a sensação era boa.
Pagou o suco e voltou ao trabalho.
O homem ao seu lado estava terminando o segundo café e ainda
olhando o e-mail.
Antes de ir para casa, passaria na banca de jornal para ver
as manchetes, e, no caminho de volta, ainda pensaria na crônica que havia
publicado na noite anterior, sobre duas amigas que brigam por uma bobagem e
quase deixam de ser amigas até que uma delas resolver pedir desculpas.
E torceria para alguém ter lido o texto. Achou que tinha ficado
bom.
1 leitores:
Na mesma esteira do Microcosmo, a "Crônica do sabotador"
Acordou, olhou o relógio, pensou, lembrou ser essa a última semana de poder acordar esse horário, molemente se levantou, ligou o computador, ligou o chuveiro, deu uma mijada, testou a temperatura da água, tirou o short, entrou no banho, deixou a água cair sobre sua cabeça, enquanto acordava, pensava mais, aos poucos ia embalando seu ritmo ainda que contra sua vontade. Desligou o chuveiro, pegou a toalha, secou primeiro o peito, depois o rosto, depois o resto, vestiu a cueca, a calça, passou desodorante, vestiu a camisa, arrumou o cabelo rapidamente sem pente mesmo, secou o ouvido, saiu do quarto, entrou na cozinha, abriu a geladeira, pegou um pão, presunto, queijo, requeijão e o leite, preparou tudo, serviu café, serviu leite, comeu, bebeu, preparou seu lanche para a tarde, voltou pro quarto, escovou os dentes.
Saiu de casa, pôs o óculos, desceu a rua, esperou o ônibus, entrou, pagou, sentou, divagou, desceu. Caminhou em direção a seu emprego meia boca, no caminho fumou um cigarro, se xingou por isso, apagou, pôs a bala na boca, pôs o crachá no pescoço, tirou o óculos, entrou, sentou, fingiu gostar de todo mundo ali, fingiu gostar daquilo, fingiu estar satisfeito, saiu pra almoçar sozinho, como todos os dias desde que começou ali, acendeu outro cigarro, apagou, entrou no restaurante, serviu, comeu, pagou, saiu, acendeu outro cigarro, voltou praquela sala, sentou, aguentou, deu sua hora, foi embora, caminhou, esperou o ônibus, entrou, pagou, sentou, divagou, desceu.
Fez o caminho inverso até sua casa, entrou, foi pro quarto, tirou a roupa, ligou o chuveiro, deu uma mijada, testou a temperatura da água, entrou no banho, deixou a água cair sobre sua cabeça, enquanto relaxava, pensava mais, ainda que contra sua vontade. Desligou o chuveiro, pegou a toalha, secou primeiro o peito, depois o rosto, depois o resto, vestiu o pijama, secou o ouvido, saiu do quarto, entrou na cozinha, abriu a geladeira, pegou um pão, presunto, queijo, requeijão e o leite, preparou tudo, serviu o leite, misturou o chocolate, comeu bebeu, voltou pro quarto, escovou os dentes, sentou em frente o computador que deixou ligado desde cedo, leu, pensou, começou a escrever, uma linha, duas linhas, um parágrafo, dois parágrafos, três parágrafos, não terminou, ele não termina nada, só publicou o texto e foi dormir.
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