Chovia e a História corria, tomando cuidado para não
tropeças nas próprias palavras.
Olhando de longe, parecia ser uma história como outra
qualquer. Tinha um personagem simpático, daqueles que a gente se identifica com
facilidade. Também possuía diálogos bem construídos e certa dose de humor.
Mas, se olhássemos mais de perto, veríamos que ela era uma
história diferente, e não porque ela corria como se estivesse viva – afinal há
quem diga que, na verdade, toda história é viva. Ela era especial porque era
uma história de amor e, sendo uma história de amor, era repleta de dúvidas. E,
numa época em que todos têm receitas infalíveis sobre o amor, é preciso coragem
para expor incertezas como a História fazia.
Sim, a História era viva e corajosa. Isso ficava claro em
cada passo que ela dava enquanto corria na calçada. Olhava sempre para frente –
pois o amor sempre caminha orgulhoso de si mesmo e com a cabeça erguida, algo
que as imagens com mensagens de autoajuda parecem não entender – e dava passos
largos, pulando poças e pequenas corredeiras que desciam pela sarjeta.
Mas seus obstáculos não eram apenas as poças de água. A História
era obrigada a desviar de tudo o que aparecia em seu caminho. Gifs animados
passavam girando pela calçada fazendo piada com uma situação de trabalho ou com
falta de dinheiro. Selfies de pessoas que perderam a vergonha na mesma
proporção da autoestima lotavam a calçada, implorando por elogios. Casais
felizes andavam abraçados, impedindo a passagem – mas bastava esperar até que
ninguém estivesse olhando para que começassem a brigar, tomando cuidado para
não macular a imagem de casal perfeito.
Esbaforida, a História sabia que o tempo estava acabando e
apertou o passo.
Mas, conforme sua velocidade aumentava, os obstáculos
cresciam. Perdeu tempo desviando de uma enorme multidão vestida de azul que
fazia coro contra pessoas que se vestiam de vermelho. Precisou quase se jogar
no chão para não ser atingida por uma mensagem de homofobia que veio voando
pelo ar a esmo, tentando acertar qualquer coisa que encontrasse pelo caminho.
Outra frase de ódio – esta contra pessoas de outras classes sociais – veio logo
atrás e acertou uma crônica escrita por um aluno de escola pública, matando não
apenas a história como os sonhos do garoto de se tornar escritor.
A História começou a perder o fôlego. Mas não podia
desistir. Ela sabia isso desde que ganharia sua primeira linha. Precisava
chegar ao seu objetivo, que ia muito além do seu final.
Mas as coisas começavam a ficar cada vez mais e mais
difíceis. Uma nova multidão – esta vestindo vermelho e atacando aqueles que
usam roupa azul – apareceu em sua frente. Novo desvio, nova perda de tempo,
especialmente porque a História, sem perceber, caiu no meio das pessoas que
seguiam as modas.
Foi obrigada a desviar de vegetarianos que ainda limpavam a
gordura do hambúrguer da boca – e que na semana que vem estarão comendo carne
mais uma vez – de especialistas de cervejas que deram o primeiro gole duas
semanas atrás e de escritores que sempre sonharam em escrever, mas que se
tornaram fotógrafos porque sempre sonharam em fotografar e que no fim viraram
chefs porque sempre sonharam em cozinhar.
Também presenciou algumas brigas. Na verdade, discussões
levantadas por pessoas mais preocupadas em mostrar que defendem uma bandeira –
e que, como qualquer pessoa que recém descobriu uma bandeira, enxerga todas
outras bandeiras como inimigas – e de especialistas que explicam tudo para quem
quiser ouvir. Também atravessou o discurso de uma pessoa que dava uma
verdadeira aula sobre um caso de corrupção, mais preocupado em mostrar o quanto
era bem informado que em impedir o novo escândalo que apareceria no dia
seguinte. Saltou sobre dois fãs de um filme que trocavam socos, cada um
exigindo que o outro reconhecesse que o adversário gostava mais do filme que
ele.
O tempo estava curto. Nova multidão. Um corpo de uma
celebridade esquecida jazia na calçada. Ao redor dele, diversas pessoas se
juntaram. Algumas alegavam que sempre foram fãs dela, outros diziam que bastava
alguém morrer para todos se tornarem fãs e um terceiro grupo argumentando que
não aguentava mais as pessoas reclamando daquelas que se diziam fãs. A História
viu quando o estranho velório foi interrompido por um abaixo assinado impedindo
que o bar que ninguém ia não fosse fechado.
Todos ignorando a chuva. Todos tirando fotos. Fotos de si
mesma e de momentos esquecíveis, que apenas desviam a atenção da vida.
Finalmente, a história atingiu seu objetivo. Faltavam poucos
minutos para a garota sair do trabalho quando ela encontrou o texto na sua
linha do tempo. A História se tornou a última coisa que ela leu antes de
desligar o computador. Parecia ter sido escrito para ela, que vivia os
primeiros dias de uma grande paixão e não dava atenção a mais nada – pois o
amor faz a gente prestar atenção em tudo, mas a paixão faz a gente esquecer até
de nós mesmos – e ela sorriu.
Sorriu com aquela História de amor e levou o sorriso com
ela, no ônibus. Foi um sorriso discreto, mais preocupado em existir que em ser
visto. Afinal, essa sempre foi a missão da História: fazer a menina sorrir de
uma forma só sua, e que ela jamais esquecesse.
Todo o resto seria esquecido e repetido e esquecido e
repetido no dia seguinte.
6 leitores:
Seus textos, quando me encantam, o fazem da mesma forma que uma boa música. Preciso ler, reler, tenho vontade de aplaudir, e mais do que isso, apertar tua mão, te dar uma abraço e agradecer por organizar as palavras de maneira tão eficaz que me faz te dizer: eu precisava ler isso. A sensibilidade nesse texto transbordou de tanto talento. Ou seria o contrário?
Seus textos, quando me encantam, o fazem da mesma forma que uma boa música. Preciso ler, reler, tenho vontade de aplaudir, e mais do que isso, apertar tua mão, te dar uma abraço e agradecer por organizar as palavras de maneira tão eficaz que me faz te dizer: eu precisava ler isso. A sensibilidade nesse texto transbordou de tanto talento. Ou seria o contrário?
E é sempre uma história esquiva, livre de ardis, que consegue passar pelos dedos até o teclado ;)
Rob, mandou muito bem, man!!
Olá. Fantástico como vc deu vida (no meu entendimento), àquelas linhas do tempo do facebook que sempre volta de ano em ano para nos lembrar que o tempo passou rápido demais. Tão rápido, que o amanhã terá outra lembrança. Abraço.
Lindo texto. Nos faz pensar em tantas coisas bobas que nos atrapalham na vida. Tolas coisa no cotidiano se transformam em monstros, o tempo com suas presas nos morde um pedaço, a preguiça nos... Deixa eu parar que esse papo vai longe.
Obrigado pelo momento de reflexão.
Que crônica linda, Rob.
É triste ver as futilidades inundando a vida das pessoas e afogando os instintos humanos e criativos.
Parabéns!!
Postar um comentário