Reinaldo não gostava muito de música. Não que ele tivesse
algo contra música, mas... Na verdade, ele gostava mais de música quando jovem.
Não era fã apaixonado, mas gostava. Porém, os anos foram passando e Reinaldo se
casou. Quando percebeu, tinha dois filhos, contas para pagar, a ajuda que dava
todo mês para o cunhado, e o sonho de comprar uma casa na praia...
– Quem é que tem tempo para ouvir música hoje?
Mas um dia entrou em casa e deu de cara com sua filha
adolescente assistindo a um clipe na TV. Enquanto ele colocava sua mala na
cadeira da sala, achou que reconhecia aquela melodia de algum lugar. Mas foi só
quando olhou a TV com cuidado e viu a garota careca que se lembrou.
– Ei! Isso é do meu tempo!
A garota respondeu sem tirar os olhos da TV. Reinaldo odiava
quando ela fazia isso.
– Ah, é? Você conhece essa música?
– Sim. Lembro quando tocava no rádio.
– Então você pode me ajudar, pai.
– Ajudar em quê?
– Eu preciso traduzir a letra. É um trabalho de inglês.
– Bom, posso te ajudar.
– Você conhece a letra?
– Não, não sei de cor. Lembro que tem algo que nada não se
compara a você, ou coisa parecida. Você não tem a letra original?
– Tenho.
– Então depois do jantar a gente faz.
Dito e feito. Depois do jantar, Reinaldo pegou o caderno da
filha e começou a ler a letra com ela.
– Aqui ela está falando há quanto tempo o namorado foi
embora, está vendo? Faz sete horas e quinze dias.
– Sim.
– Que você levou seu amor embora. Took away é levar embora,
você sabe, né?
– Sei.
– Agora aqui ela diz que sai todas as noites e dorme o dia
inteiro. É isso mesmo? Ela dorme o dia inteiro?
– Sim. Acho que sim.
– Sim. É isso mesmo dorme o dia inteiro. Ué, mas aqui ela diz que agora pode fazer o que quiser.
– É?
– Sim. Diz que ela pode ver quem quiser e jantar num
restaurante chique. Ela não está triste?
– Então, lê o resto, pai.
Reinaldo pegou o papel e aproximou da luz, porque dava menos
trabalho que ir buscar os óculos no quarto e começou a correr os olhos pela
letra da música.
– Ah. Ela tem tudo isso, mas nada... Nada se compara ao que
ela tinha com ele.
– Isso. Entendeu?
– Espera, vou ler tudo.
A garota ficou brincando com a caneta enquanto o pai
continua lendo.
– Você viu essa parte que ela não consegue parar de chorar?
– Vi. Não entendi direito esse pedaço. O que é did I go
wrong?
– Ela quer saber... Porra... Ela queria saber onde errou.
– Mas ela errou?
– Espera, espera. Estou lendo. Porra. Essa parte do médico...
Reinaldo ficou imóvel lendo a letra. Tentava se lembrar do
rosto da garota, mas não conseguia. Só sabia que ela era careca. Passou pela
parte do médico e chegou até a parte das flores que morreram. Quando estava
aprendendo que viver com o sujeito era difícil, às vezes, teve que passar a mão
nos olhos.
– Pai? Você tá chorando?
– Oi? Não, não. Tô só cansado. Vamos terminar logo isso.
Ajudou a filha a terminar a tradução correndo e se
esforçando para se manter em pé. Quando terminou, disse mais uma vez que estava
cansado e ia deitar. Mas não deitou. Horas depois, quando sua esposa entrou no quarto
para dormir, o surpreendeu com o notebook no colo, e os fones de ouvido. E uma
cara de quem havia acabado de receber uma notícia grave.
– Você não tinha ido dormir?
– Não. Quer dizer, sim. Eu estava só vendo umas coisas.
– Você estava vendo esse clipe?
– Maria Lúcia, você já ouviu essa música?
– Já, ué. Isso é do nosso tempo.
– Você já prestou atenção na letra?
– Acho que sim.
– Você faz ideia do que essa garota tá passando?
– Que garota?
– A garota dessa música! Essa menina fica o dia inteiro
deitada chorando e sai à noite procurando algo para fazer, mas não consegue tirar
o ex da cabeça.
– Ah, acho que lembro.
– E ela fica se culpando. Ela acha que o erro foi dela.
– Reinaldo...
– Alguém tinha que falar com essa menina. Mostrar que ainda
existe um mundo lá fora, não sei. Levar ela para tomar um Sol, algo assim.
– Reinaldo, vamos dormir?
Ela apagou a luz e se deitou.
Reinaldo não dormiu. Passou a noite inteira revirando na
cama, imaginando aquela garota careca usando um casacão e andando pelas ruas da
cidade debaixo de uma garoa. Todo sorriso dela era falso. Todo alívio seria
apenas um breve momento. Às vezes cochilava, às vezes acordava, sempre pensando
nisso. Eram quase cinco da manhã quando percebeu algo e sentou-se na cama
assustado.
– Ele nunca vai voltar para ela.
Sua esposa acordou assustada mas ainda bêbada de sono.
– Que foi, Reinaldo? Você tá bem?
– Ele nunca vai voltar para ela. Nada no mundo se compara a
estar com ele, e isso nunca vai acontecer. Ela vai passar o resto da vida
procurando isso, e isso nunca vai acontecer.
– Reinaldo, pelo amor de Deus, que horas são?
– Umas cinco. Ela deve estar voltando para casa agora. Passou
a noite andando pelas ruas, e está entrando em casa e vai dormir até o fim da
tarde. E aí vai fazer tudo de novo.
– Ela quem?
– Ela está há anos fazendo isso. E vai continuar fazendo.
– Vai dormir, Reinaldo.
Não conseguiu. Levantou-se, pegou o notebook e foi para a
sala e ficou lá até as outras pessoas acordarem.
– Mãe! O papai não está bem!
Quem gritou foi o filho caçula, que estava indo tomar café e
surpreendeu o pai sentado no sofá, com o computador no colo, e chorando
compulsivamente. Inventou uma desculpa qualquer e foi correndo tomar banho,
onde chorou mais um pouco pensando no verso “eu posso abraçar qualquer garoto
que encontrar, mas eles só me lembrariam de você”.
Reinaldo nunca mais voltou a ser o mesmo.
Passou semanas assim. Chegava do trabalho e ia direto para o
computador. Enfiava os fones de ouvido na cabeça e ficava assistindo ao clipe repetidamente,
no quarto, sem parar de chorar. Não conversava mais com a família, não assistia
mais aos jogos do time, nada. Só ficava ouvindo que nada se compara a você.
Tudo o que ele fazia era ouvir a música.
Logo, começaram a chegar notícias de que estava fazendo isso
também no trabalho – parece que abriu o clipe no meio de uma reunião e começou
a chorar compulsivamente, na frente de um cliente. Começou a deixar de comer, a
dormir mal. Em algumas noites, parava na frente da janela da sala e ficava
olhando as pessoas na rua. Todos tinham certeza que estava procurando pela
menina da música vagando pela cidade. Tentaram explicar para ele que a garota
era irlandesa, que a música tinha mais de vinte anos, e que nem tinha sido ela
quem escreveu, e sim o Prince (que naquela época ainda não tinha nem deixado de
ser chamado como Prince, quanto mais voltado a ser chamado de Prince).
Não adiantou.
Nada adiantou.
Esta crônica tem dois finais, e fica a critério do leitor
escolher qual lhe agrada mais.
Em um deles a situação ficou insustentável a ponto de acabar
com o casamento de Reinaldo. Quando sua esposa pediu o divórcio, ele não falou
nada, apenas resmungou que queria ficar com o notebook e os fones de ouvido.
Faz anos que eles não se encontram – a última notícia que tiveram dele é que
estava morando no sótão da casa de uma velhinha.
O lugar não tinha mobília alguma e uma das paredes era ocupada
por um painel com uma foto do clipe, e ele passava o dia inteiro sentado no
chão e ouvindo a música. E, claro, chorando, observado apenas pelo rosto
gigantesco da Sinéad O’Connor na parede, como um Jeremy Irons numa refilmagem
mais pobre de Perdas e Danos.
O outro não é tão trágico. Sua família fez uma intervenção e
disse que era hora dele parar com aquilo. Sua mulher foi ainda mais drástica:
ou essa garota ou eu. Num lampejo de consciência, ele escolheu a esposa e os
filhos. Mas pediu para que as noites de quinta-feira fossem reservadas a ele,
para que pudesse ouvir a música.
– É só ouvir a música, Reinaldo? Não vai chorar?
– Não garanto, Maria Lúcia.
Acabaram aceitando. Assim, Reinaldo tem uma vida normal,
menos nas noites de quinta, quando se tranca no quarto e ouve a música com
fones de ouvido, inerte na cama, apenas observando o clipe e sentindo a maior tristeza
de sua vida.
Se um dia você for até a casa do Reinaldo e da Maria Lúcia,
verá que ele nem é mais uma pessoa tão diferente assim. Mas, por favor, não
fale jamais sobre música quando estiver lá dentro. O Reinaldo vai colocar a
música para tocar na sala, perguntando se você já prestou atenção na letra
dela, e em como aquilo é triste e vai começar a chorar ali mesmo, em pé, na
frente das visitas.
Já aconteceu mais de uma vez.
5 leitores:
Uau. Podemos dizer que Nothing compares to you é a irmã perdida de Everybody Hurts...
Quem nunca parou de verdade pra prestar atenção na história de uma música, e se sentiu um Reinaldo, que atire a primeira pedra.
Puxa... e ninguém disse pro Ronaldo que essa pessoa que se foi a 15 dias e sete horas não iria mesmo voltar... nunca... pq havia falecido. :-(
Baita climão Veríssimo. Legal.
Maria Lúcia (se arrependeu depois?) podia ter-lhe dito que nada se comparava à companhia (perdida) de Reinaldo. Então ele despertaria do transe e viveriam ainda mais felizes, para sempre. :-)
Bela crônica!
Nossa, só posso dizer uma coisa: sou um Reinaldo a cada livro que leio. Trato os personagens como pessoas que vivenciam aquilo mesmo. Choro, dou risada e sinto vergonha por eles, inclusive. Claro que quem está de fora me acha louca, mas eu garanto que não somos loucos não! São os personagens e histórias envolventes fazem isso com a gente. ;D
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