Em seus últimos anos, o Avô passava o tempo inteiro sentado
em sua cadeira no canto da sala. Gostava de ficar perto da televisão, pois de
vez em quando conseguia pegar um futebol – mas a ordem em casa era sempre que
se entrasse com cuidado na sala, pois o Avô podia estar cochilando.
Mas quando estava acordado, estava sempre de olho na
televisão, procurando pelo seu grande amor: a bola. Agora ela era diferente do
que ele se lembrava. Se antes era uma pelota de couro costurada à mão, agora
era feita em linhas de montagem dotadas da maior tecnologia. Mas, para ele, não
fazia diferença. Para ele, bastava ela rolar.
O esporte também era diferente. Não era mais artesanal e sim automatizado. Os uniformes
de pano, roupas que mantinham o escudo grudado na altura do coração, deram
lugar às camisas criadas em laboratórios, uniformes em que escudos pareciam
detalhes perto da tecnologia. E as chuteiras... No tempo do Avô eram pretas.
Todas. Hoje, eram de várias cores. Todas.
Mas o Avô não se importava. Enquanto seu amor rolasse, lá
estava ele, de olho nela. Estava naquela idade em que a gente já sabe que amor
independe de tempo, de cor, de grito, de taça. Para ele, amar era verbo intransitivo,
daqueles que só pode ser conjugado com a cabeça erguida, olhando o jogo,
procurando o gol, esticando o passe, limpando o lance.
Paixões vêm e vão, mas o amor fica. Uma paixão sempre está;
o amor sempre é.
E ele nunca deixou de amar. Foi herói e foi vilão, e seus
netos sempre pediam para que ele contasse a história. E ele contava sobre o
chute cruzado, sobre a bola rasteira, sobre a rede balançando. Mas, para os
netos, ele nunca falava sobre o silêncio. O Avô odiava o silêncio. Seu amor era
de grito, de vibração, de decibéis, e ele sabia o tamanho da dor que existe dentro de um silêncio.
Pois ele viu o silêncio. Ele ouviu e sentiu o
silêncio.
Ele causou o silêncio.
O Avô era o homem que, com um chute no canto, havia silenciado um time, calado um estádio, emudecido um país inteiro.
Ele causou o silêncio.
O Avô era o homem que, com um chute no canto, havia silenciado um time, calado um estádio, emudecido um país inteiro.
Celebrado de um lado e odiado do outro. Admirado de um lado e
detestado do outro.
Respeitado por todos.
Já bem velho, o Avô se preparou para reencontrar seu amor.
Ligou a TV e reconheceu a camisa amarela que ele, como todo mundo que ama aquilo que gira sobre o gramado, aprendeu a amar. A mesma camisa amarela que substituiu a branca, que
ele havia obrigado se aposentar. Um. Algo estava errado. Dois. Três. Não é
possível. Quatro. Cinco.
E ele parou de assistir. Doía demais ver o silêncio
novamente.
Só depois contaram ao Avô que haviam sido sete mordaças. E o
Avô suspirou, pois sabia a dor de um silêncio.
Olhou para o neto e, enxergando o futuro na criança,
anunciou:
– Eles vão aprender a gritar mais uma vez.
O neto olhou de volta, e o Avô continuou.
– Se eu aprendi alguma coisa na vida, é que, para você
aprender a gritar na vitória, é preciso antes aprender a experimentar o
silêncio de uma derrota. Foi o que eles fizeram. Somente depois que eles enfrentaram o silêncio é que aprenderam a gritar. E gritaram muito alto. Mais de uma vez.
O Avô fechou os olhos um minuto, e lembrou-se dos gritos de
que estava falando. Lembrou-se do menino de dezessete anos gritando enquanto
entrava na área, do sujeito de pernas tortas gritando enquanto bordava na
ponta, do capitão gritando enquanto fuzilava a rede. Cada grito desses havia começado
a nascer naquela tarde silenciosa que eternizou o grito do Avô.
Sem a dor desse esse silêncio, talvez a redenção dos gritos
nunca tivesse existido.
– Foi o silêncio que causei que criou isso. Mas hoje eles não precisam mais de mim. Eles possuem outro silêncio. É um silêncio tão amargo
quanto o que causei, mas com outros vilões. Talvez eles tenham se esquecido do quanto
o silêncio é dolorido, mas agora, eles sabem novamente. E vão aprender a gritar mais
uma vez.
Não foi a única vez que o Avô falou sobre isso, mas a
última. Ao saber que não era mais o dono do silêncio, ficou em paz consigo
mesmo. O país que gritou cinco vezes não precisava mais dele, nem de seu
silêncio, nem de seu fantasma. Agora, o Avô era apenas um mito de um passado
feito de bolas de couro e chuteiras pretas. Um homem admirado nos dois lados da
fronteira, e lembrado por todo um planeta redondo como seu amor.
Um ano depois, o Avô suspirou sozinho em sua sala e fechou os olhos.
E foi sua vez de ficar em silêncio e reencontrar todos os
outros personagens daquele dia, que o aguardavam. Foi recebido com aplausos. Seus
companheiros de azul e branco o saudaram, e os outros, aqueles de camisa branca, o
provocaram. Estavam todos lá. O queixudo, o de bigode... Todos. E o goleiro
negro, que o Avô fez questão de abraçar. Foi o de queixo grande que disse.
– Hora da revanche.
O Avô sorriu e pediu por seu amor. Ela rolou e seus pés a
abraçaram com saudade. E o jogo começou. Desta vez para sempre. Desta vez entre
amigos, como devia ser. Desta vez, sem silêncio.
No dia seguinte, o neto comprou os jornais.
Todos eles falavam que o Avô Alcides, o homem que havia silenciado o Maracanã, havia partido.
Todos eles falavam que o Avô Alcides, o homem que havia silenciado o Maracanã, havia partido.
Este texto é dedicado – também – ao meu avô paterno que, em
uma tarde 1958, escutou a Suécia fazer 1 x 0 e levantou-se irritado, resmungando
que “puta que pariu, cinquenta de novo, não”. Graças ao Avô dessa crônica, tenho
certeza que o grito que meu avô soltou pouco mais de uma hora depois foi muito
mais forte. Tenho certeza que agora meu avô está na arquibancada se deliciando com a
revanche.
(Um agradecimento especial ao camarada Vinicius Intrieri, que me abriu os olhos para o fato de que isso merecia um texto.)
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