16 de julho de 2015

O Silêncio do Avô

Em seus últimos anos, o Avô passava o tempo inteiro sentado em sua cadeira no canto da sala. Gostava de ficar perto da televisão, pois de vez em quando conseguia pegar um futebol – mas a ordem em casa era sempre que se entrasse com cuidado na sala, pois o Avô podia estar cochilando.

Mas quando estava acordado, estava sempre de olho na televisão, procurando pelo seu grande amor: a bola. Agora ela era diferente do que ele se lembrava. Se antes era uma pelota de couro costurada à mão, agora era feita em linhas de montagem dotadas da maior tecnologia. Mas, para ele, não fazia diferença. Para ele, bastava ela rolar.

O esporte também era diferente. Não era mais artesanal e sim automatizado. Os uniformes de pano, roupas que mantinham o escudo grudado na altura do coração, deram lugar às camisas criadas em laboratórios, uniformes em que escudos pareciam detalhes perto da tecnologia. E as chuteiras... No tempo do Avô eram pretas. Todas. Hoje, eram de várias cores. Todas.

Mas o Avô não se importava. Enquanto seu amor rolasse, lá estava ele, de olho nela. Estava naquela idade em que a gente já sabe que amor independe de tempo, de cor, de grito, de taça. Para ele, amar era verbo intransitivo, daqueles que só pode ser conjugado com a cabeça erguida, olhando o jogo, procurando o gol, esticando o passe, limpando o lance.

Paixões vêm e vão, mas o amor fica. Uma paixão sempre está; o amor sempre é.

E ele nunca deixou de amar. Foi herói e foi vilão, e seus netos sempre pediam para que ele contasse a história. E ele contava sobre o chute cruzado, sobre a bola rasteira, sobre a rede balançando. Mas, para os netos, ele nunca falava sobre o silêncio. O Avô odiava o silêncio. Seu amor era de grito, de vibração, de decibéis, e ele sabia o tamanho da dor que existe dentro de um silêncio.

Pois ele viu o silêncio. Ele ouviu e sentiu o silêncio.

Ele causou o silêncio.

O Avô era o homem que, com um chute no canto, havia silenciado um time, calado um estádio, emudecido um país inteiro.

Celebrado de um lado e odiado do outro. Admirado de um lado e detestado do outro.

Respeitado por todos.

Já bem velho, o Avô se preparou para reencontrar seu amor. Ligou a TV e reconheceu a camisa amarela que ele, como todo mundo que ama aquilo que gira sobre o gramado, aprendeu a amar. A mesma camisa amarela que substituiu a branca, que ele havia obrigado se aposentar. Um. Algo estava errado. Dois. Três. Não é possível. Quatro. Cinco.

E ele parou de assistir. Doía demais ver o silêncio novamente.

Só depois contaram ao Avô que haviam sido sete mordaças. E o Avô suspirou, pois sabia a dor de um silêncio.

Olhou para o neto e, enxergando o futuro na criança, anunciou:

– Eles vão aprender a gritar mais uma vez.

O neto olhou de volta, e o Avô continuou.

– Se eu aprendi alguma coisa na vida, é que, para você aprender a gritar na vitória, é preciso antes aprender a experimentar o silêncio de uma derrota. Foi o que eles fizeram. Somente depois que eles enfrentaram o silêncio é que aprenderam a gritar. E gritaram muito alto. Mais de uma vez.

O Avô fechou os olhos um minuto, e lembrou-se dos gritos de que estava falando. Lembrou-se do menino de dezessete anos gritando enquanto entrava na área, do sujeito de pernas tortas gritando enquanto bordava na ponta, do capitão gritando enquanto fuzilava a rede. Cada grito desses havia começado a nascer naquela tarde silenciosa que eternizou o grito do Avô.

Sem a dor desse esse silêncio, talvez a redenção dos gritos nunca tivesse existido.

– Foi o silêncio que causei que criou isso. Mas hoje eles não precisam mais de mim. Eles possuem outro silêncio. É um silêncio tão amargo quanto o que causei, mas com outros vilões. Talvez eles tenham se esquecido do quanto o silêncio é dolorido, mas agora, eles sabem novamente. E vão aprender a gritar mais uma vez.

Não foi a única vez que o Avô falou sobre isso, mas a última. Ao saber que não era mais o dono do silêncio, ficou em paz consigo mesmo. O país que gritou cinco vezes não precisava mais dele, nem de seu silêncio, nem de seu fantasma. Agora, o Avô era apenas um mito de um passado feito de bolas de couro e chuteiras pretas. Um homem admirado nos dois lados da fronteira, e lembrado por todo um planeta redondo como seu amor.

Um ano depois, o Avô suspirou sozinho em sua sala e fechou os olhos.

E foi sua vez de ficar em silêncio e reencontrar todos os outros personagens daquele dia, que o aguardavam. Foi recebido com aplausos. Seus companheiros de azul e branco o saudaram, e os outros, aqueles de camisa branca, o provocaram. Estavam todos lá. O queixudo, o de bigode... Todos. E o goleiro negro, que o Avô fez questão de abraçar. Foi o de queixo grande que disse.

– Hora da revanche.

O Avô sorriu e pediu por seu amor. Ela rolou e seus pés a abraçaram com saudade. E o jogo começou. Desta vez para sempre. Desta vez entre amigos, como devia ser. Desta vez, sem silêncio.

No dia seguinte, o neto comprou os jornais.

Todos eles  falavam que o Avô Alcides, o homem que havia silenciado o Maracanã, havia partido.



Este texto é dedicado – também – ao meu avô paterno que, em uma tarde 1958, escutou a Suécia fazer 1 x 0 e levantou-se irritado, resmungando que “puta que pariu, cinquenta de novo, não”. Graças ao Avô dessa crônica, tenho certeza que o grito que meu avô soltou pouco mais de uma hora depois foi muito mais forte. Tenho certeza que agora meu avô está na arquibancada se deliciando com a revanche.


(Um agradecimento especial ao camarada Vinicius Intrieri, que me abriu os olhos para o fato de que isso merecia um texto.)

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