A sala estava escura, iluminada somente pela pequena luz
azul do aparelho de som.
Ela apertou o play e Buddy Guy começou a falar sobre seu
pequeno doce anjo. Não era a versão original da música, mas era o mesmo anjo e
ela sabia disso. Apanhou seu copo de uísque, ouvindo as pedras de gelo brigando
por espaço entre si e voltou para o sofá. E fechou os olhos.
– Eu amo essa música.
Ele não respondeu, mas ela sabia que ele estava sorrindo no
outro sofá. Estava daquele jeito de sempre, com os pés apoiados na mesa do
centro e segurando o próprio copo de uísque – ele tomava sem gelo – em cima de
uma das coxas. E estava sorrindo porque ele sempre sorria quando ouviam música
juntos no meio da madrugada.
Ele sempre sorria quando ela falava.
A guitarra de Buddy Guy rasgava o ar de forma doce,
preenchendo cada corte com melodia e ela, ainda de olhos fechados, deu mais um
gole no uísque. Talvez tenha escutado ele bebendo o dele, mas não teve certeza.
A única certeza que teve é que ele estava ali, olhando em sua direção e
sorrindo daquele jeito que anuncia que a noite não irá terminar tão cedo.
E que a música durará ainda algumas horas.
– Eu amo essa música quando estou com você.
Desta vez ele sorriu mais aberto, mostrando os dentes num
sinal de que o amor era recíproco. Ela soube disso mesmo de olhos fechados na
sala escura. Mas ainda não disse nada e por um momento ela gostou disso. Às
vezes, tinha a sensação de que algo se quebraria se ele falasse uma palavra, como
se estivessem num sonho frágil que poderia se partir em estilhaços a qualquer
minuto.
Buddy Guy, porém, parecia não se importar com isso. Enquanto
contava o quanto amava o jeito que seu pequeno anjo doce abria as asas, ela deu
mais um gole. Ia falar alguma coisa, mas mudou de ideia ao perceber que não era
preciso. Tudo o que poderia dizer já havia sido dito. Pois ela não amava a
música quando estava bebendo com ele, mas sim o fato de estar com ele.
Amava o fato de estar ali, no meio da madrugada, usando a
escuridão para se esconder do ontem que havia passado e do amanhã que ainda não
havia chegado. Era um momento em que todos na cidade estavam dormindo, era um
momento em que eles podiam ficar sozinhos, era um momento em que nada mais
existia a não ser eles, o gosto de álcool na boca e a guitarra doce que
inundava o ar.
– Eu amo você.
Ela se assustou com o som das próprias palavras. Fazia tempo
que não falava isso para ele. Sim, sabia o que sentia – mesmo porque pensava
nisso o tempo inteiro – mas fazia tempo que não transformava o amor em som. Ele
não respondeu, mas sorriu. Ela soube disso de olhos fechados.
Pois ele sempre sorria quando ela falava com ela.
Pois ele sempre sorria quando ela o amava.
Ficaram os dois em silêncio, cada um no seu sofá, cada um no
seu uísque, até o final da música. Ainda de olhos fechados, ela sentia sua
presença como se ele fosse carregado pela música para todos os cantos do
aposento, preenchendo sua vida inteira. Ainda de olhos fechados, deu um último
gole no uísque quando a música chegou ao seu final. Uma pequena pedra de gelo
escorregou para dentro da sua boca, e ela gostou da sensação.
Abriu os olhos.
O aparelho de som ainda estava ligado, mas em silêncio. A
música havia acabado.
Olhou para o outro sofá, que permanecia vazio, sem ele e sem
copo de uísque, do mesmo jeito que estivera o tempo inteiro nas últimas
semanas. Ou quase o tempo inteiro, já que todas as noites ela ouvia uma música –
uma única música, sempre escolhida a dedo ao longo do dia – com uma dose de
uísque, fazendo de conta que ele estava ali.
Todas as noites, naquele momento, ele estava ali no outro
sofá, bebendo e sorrindo. Ao menos, até a música acabar e ela abrir os olhos.
Levantou-se e foi para o quarto dormir, sem se despedir da
ilusão de que ele estava ali. Mesmo porque não ganharia nenhum beijo de boa
noite de volta. Talvez fosse hora de começar a imaginar a voz dele quando
fingia que ele estava ali. Talvez fosse o momento da saudade que sentia dele
aprender a falar.
Ou não.
Ela não precisava ouvir.
Precisava apenas que ele estivesse ali com ela, durante uma
dose de uísque e um blues antigo, para que ela pudesse fazer de conta que ainda
estavam juntos. E sabia ele estaria toda noite ali. Falando ou não, ele estaria
toda noite ali.
Entrou no quarto e deitou-se, imaginando ele em sua própria
casa e tentando imaginar o que ele estaria fazendo.
Mas logo adormeceu feito um pequeno anjo doce que abria suas
asas.
1 leitores:
Essa saudade machuca...
Textaço!
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