2 de junho de 2015

Ela (e Ele)

A sala estava escura, iluminada somente pela pequena luz azul do aparelho de som.

Ela apertou o play e Buddy Guy começou a falar sobre seu pequeno doce anjo. Não era a versão original da música, mas era o mesmo anjo e ela sabia disso. Apanhou seu copo de uísque, ouvindo as pedras de gelo brigando por espaço entre si e voltou para o sofá. E fechou os olhos.

– Eu amo essa música.

Ele não respondeu, mas ela sabia que ele estava sorrindo no outro sofá. Estava daquele jeito de sempre, com os pés apoiados na mesa do centro e segurando o próprio copo de uísque – ele tomava sem gelo – em cima de uma das coxas. E estava sorrindo porque ele sempre sorria quando ouviam música juntos no meio da madrugada.

Ele sempre sorria quando ela falava.

A guitarra de Buddy Guy rasgava o ar de forma doce, preenchendo cada corte com melodia e ela, ainda de olhos fechados, deu mais um gole no uísque. Talvez tenha escutado ele bebendo o dele, mas não teve certeza. A única certeza que teve é que ele estava ali, olhando em sua direção e sorrindo daquele jeito que anuncia que a noite não irá terminar tão cedo.

E que a música durará ainda algumas horas.

– Eu amo essa música quando estou com você.

Desta vez ele sorriu mais aberto, mostrando os dentes num sinal de que o amor era recíproco. Ela soube disso mesmo de olhos fechados na sala escura. Mas ainda não disse nada e por um momento ela gostou disso. Às vezes, tinha a sensação de que algo se quebraria se ele falasse uma palavra, como se estivessem num sonho frágil que poderia se partir em estilhaços a qualquer minuto.

Buddy Guy, porém, parecia não se importar com isso. Enquanto contava o quanto amava o jeito que seu pequeno anjo doce abria as asas, ela deu mais um gole. Ia falar alguma coisa, mas mudou de ideia ao perceber que não era preciso. Tudo o que poderia dizer já havia sido dito. Pois ela não amava a música quando estava bebendo com ele, mas sim o fato de estar com ele.

Amava o fato de estar ali, no meio da madrugada, usando a escuridão para se esconder do ontem que havia passado e do amanhã que ainda não havia chegado. Era um momento em que todos na cidade estavam dormindo, era um momento em que eles podiam ficar sozinhos, era um momento em que nada mais existia a não ser eles, o gosto de álcool na boca e a guitarra doce que inundava o ar.

– Eu amo você.

Ela se assustou com o som das próprias palavras. Fazia tempo que não falava isso para ele. Sim, sabia o que sentia – mesmo porque pensava nisso o tempo inteiro – mas fazia tempo que não transformava o amor em som. Ele não respondeu, mas sorriu. Ela soube disso de olhos fechados.

Pois ele sempre sorria quando ela falava com ela.

Pois ele sempre sorria quando ela o amava.

Ficaram os dois em silêncio, cada um no seu sofá, cada um no seu uísque, até o final da música. Ainda de olhos fechados, ela sentia sua presença como se ele fosse carregado pela música para todos os cantos do aposento, preenchendo sua vida inteira. Ainda de olhos fechados, deu um último gole no uísque quando a música chegou ao seu final. Uma pequena pedra de gelo escorregou para dentro da sua boca, e ela gostou da sensação.

Abriu os olhos.

O aparelho de som ainda estava ligado, mas em silêncio. A música havia acabado.

Olhou para o outro sofá, que permanecia vazio, sem ele e sem copo de uísque, do mesmo jeito que estivera o tempo inteiro nas últimas semanas. Ou quase o tempo inteiro, já que todas as noites ela ouvia uma música – uma única música, sempre escolhida a dedo ao longo do dia – com uma dose de uísque, fazendo de conta que ele estava ali.

Todas as noites, naquele momento, ele estava ali no outro sofá, bebendo e sorrindo. Ao menos, até a música acabar e ela abrir os olhos.

Levantou-se e foi para o quarto dormir, sem se despedir da ilusão de que ele estava ali. Mesmo porque não ganharia nenhum beijo de boa noite de volta. Talvez fosse hora de começar a imaginar a voz dele quando fingia que ele estava ali. Talvez fosse o momento da saudade que sentia dele aprender a falar.

Ou não.

Ela não precisava ouvir.

Precisava apenas que ele estivesse ali com ela, durante uma dose de uísque e um blues antigo, para que ela pudesse fazer de conta que ainda estavam juntos. E sabia ele estaria toda noite ali. Falando ou não, ele estaria toda noite ali.

Entrou no quarto e deitou-se, imaginando ele em sua própria casa e tentando imaginar o que ele estaria fazendo.


Mas logo adormeceu feito um pequeno anjo doce que abria suas asas.

1 leitores:

Cesar da Mota Marcondes Pereira disse...

Essa saudade machuca...
Textaço!

 

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