8 de fevereiro de 2015

O Zelador do Tempo

Dizem que o Zelador do Tempo mora em cima de uma ampulheta. Algumas civilizações até mesmo diziam que ele era um deus, enquanto outras tinham a certeza de que ele havia nascido em outro planeta. Todas estavam erradas.

O Zelador do Tempo é um sujeito como eu e você. Ele é uma pessoa normal, como eu e você, e seu rosto não entrega onde ele nasceu: pode ser Mesopotâmia, pode ser no interior da Paraíba. A única coisa que as teorias sobre ele que chegam perto de acertar é sobre a ampulheta.

O Zelador do Tempo tem uma ampulheta, sim, mas é pequena e é daquelas com areais coloridas, comprada como lembrança de uma viagem para a praia. E ele não faz ideia de onde esteja. Sabe que está em alguma gaveta do pequeno quartinho onde ele mora, junto com toneladas de tralhas que ele acumulou com o passar dos milênios.

Existem artefatos astecas, lanças romanas, capacetes alemães da II Guerra Mundial, pratos etruscos, uma edição da Playboy da Luciana Vendramini – a primeira, já que a segunda ele viu as fotos na internet –, um ingresso da final da Copa de 1970 e uma folha da declaração da Independência dos Estados Unidos. Tudo que o Zelador do Tempo acha interessante, pega para ele e coloca no seu quartinho.

Especialmente calendários.

Ele adora calendários. Tem calendários de todos os tipos, cores e tamanhos, de todos os dias, meses e anos que já existiram. Todos eles com anotações manuscritas feitas com letras ilegíveis que só o Zelador do Tempo entende.

Os calendários forram as paredes do quartinho onde mora e servem de moldura para as tralhas. São tantas tralhas que o Zelador do Tempo mora basicamente num canto do quartinho, onde tem uma cama velha, um fogãozinho onde ele faz café e uma pequena geladeira com dois bifes e uma lata de cerveja – e ele sempre come os bifes e bebe a cerveja, mas sua geladeira sempre tem dois bifes e uma cerveja.

Na verdade, a ampulheta está embaixo da cama dele, mas o Zelador do Tempo não sabe disso. Talvez ele descubra o dia que fizer uma faxina, algo que ele vem prometendo desde os tempos da Revolução Industrial, mas nunca encontra tempo, o que chega a ser engraçado, já que a primeira coisa que se imagina quando se pensa no Zelador de Tempo é que ele tem tempo de sobra.

Mas não é verdade. O Zelador do Tempo trabalha muito e não tem tempo para ele. Aliás, ele tem tempo de sobra, mas o problema é que ele tem tempo somente para os outros. Todo dia de manhã ele sai do quartinho vestindo uma calça jeans, um par de chinelos e uma camiseta velha e meio surrada, coça a barba mal aparada e começa a trabalhar.

O Zelador do Tempo não se importa muito com seu visual, e não porque ele tem coisas mais importantes para fazer, e sim porque trabalha em casa. Senta-se na varanda da sua casa (aliás, a varanda é engraçada; a casa do Zelador do Tempo fica no meio do nada, mas a vista da varanda vai para uma floresta imaginária, com canto de pássaros que nunca existiram) e começa a mexer no tempo.

Afinal, ele é o Zelador do Tempo, e o tempo é sua obrigação.

Assim, ele vai revendo o dia de todas as pessoas (não se sabe ao certo como ele faz isso, já que ele não tem computadores e nem mesmo uma prancheta com planilhas) e ajustando o tempo de cada pessoa.

Aula de química? O tempo passa mais devagar. Primeiro beijo? O tempo voa. Esperando o telefone tocar? Se as notícias forem boas, o tempo se arrasta; se forem ruins, o tempo corre e parece que dois dias são cinco minutos.

O Zelador do Tempo passa o dia olhando todas as pessoas de todas as épocas – porque para ele não existe passado ou futuro – e resmungando. Estala os dedos e estica o tempo da saudade do filho único que foi viajar pela primeira vez com os amiguinhos da escola deixando a casa em silêncio, coça a sola do pé no chão da varanda e multiplica a velocidade das horas do sujeito que conseguiu levar a mulher por quem sempre foi apaixonado para a cama pela única vez.

Tudo depende dele.

 Faz        o        tempo        ficar        mais        devagar        como        se        houvesse        um        dia        entre        cada        segundo        e        parece        que        as        horas        não        passam        nunca        como        se        estivessem        andando        para        trás     ou elefazcomquetudo seaceleradeumaformaquaseinsana comascoisasseatropelando eumaentrandonafrentedaoutra comtodasaomesmotemooagora ecorrequenãovaidartempo perdemosahora comoassimnãoseimasperdemos eestamosarrasados.

Por isso que existem dias que passam rápido feito sonho e dias que se arrastam com o peso da saudade. É o Zelador do Tempo, que faz isso de manhã, come os bifes, toma sua cerveja e volta para a varanda, passando a tarde fazendo isso. Mexe o tempo aqui, mexe o tempo ali, com seus olhos de quem sempre acabou de acordar. Mexe o tempo aqui, mexe o tempo ali, com sua barba sempre mal feita.

Sempre com as mesmas roupas – às vezes, quando esfria, ele entra em casa e coloca um boné velho e surrado que carrega o nome de uma marca de tintas, e que ele não lembra quando ou onde encontrou.

E sempre mexendo no tempo. Mexe o tempo aqui, mexe o tempo ali até a noite, quando volta para o quartinho, frita os dois bifes, bebe sua cerveja e começa a fazer novas anotações em seus calendários.

Não se sabe o que ele escreve ali. Dizem que anota as reações das pessoas nos calendários. Dizem que ele apenas anota o número de calorias de cada bife, pois o Zelador do Tempo não quer engordar, pois aí teria que arrumar outra camiseta e outra calça e daria trabalho demais.

E, antes de dormir, o Zelador do Tempo ouve as pessoas falando mal dele – a pior parte de ser Zelador do Tempo é ouvir todas as pessoas que existem, que já existiram e que ainda vão existir o tempo inteiro. E elas sempre falam mal dele e do seu trabalho. Reclamam que o beijo durou menos tempo do que deveria, reclamam que a briga com o namorado durou a tarde inteira, reclamam que a semana passou rápido demais e o relatório já é para o dia seguinte, reclamam que a semana se arrastou e hoje ainda é quinta-feira e já começam a reclamam que o fim-de-semana sempre voa.

E ele sorri. Sorri porque sabe que um dia as pessoas vão parar de reclamar. Sabe que um dia as pessoas vão perceber que é justamente o fato delas reclamarem do tempo que faz o tempo passar.

Enquanto elas reclamam que o tempo se arrasta ou voa, os dias se tornam semanas que se somam e formam um mês que logo completam um ano e de repente o jovem se olha no espelho e vê um velho, e a mulher vai se arrumar e descobre que não é a mais a mesma garota. Seus amigos se foram, seus sonhos escaparam, seu amor murchou e as fotos não mostram mais lembranças de bons momentos, pois lembra apenas da foto e não da história dela.

Ninguém viu o tempo passar, pois estavam reclamando do tempo, reclamando da velocidade do passado e reclamando da velocidade do futuro e não viram a vida passar. Estavam tão preocupados contando os segundos que não contaram os anos.

Estão tão preocupados com o que já foi e com o que virá que não percebem que o tempo “presente” não tem esse nome por acaso. Afinal, o presente é justamente isso: um presente, que traz uma surpresa que precisa ser aproveitada independente do tempo passar rápido ou se arrastar. E se as pessoas não querem abrir o embrulho e descobrir qual presente recebem a cada segundo, não é problema seu.

Vira-se de lado e se ajeita na cama. E as luzes na janela do seu quartinho se apagam, porque ele foi dormir. E dorme tranquilo, pois sabe que o tempo está passando. Ele não pode impedir isso.

É apenas um zelador.

1 leitores:

Varotto disse...

Gaiman Dr. Manhattan style.

Próximo alvo da série Acumuladores. Assim que a produção arrumar tempo.

 

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