Os dias de XP-36 seguiam uma rotina quase fanática.
Pontualmente, deixava seu alojamento ao nascer do Sol e seguia rumo ao enorme pomar, retomando a vistoria das árvores no mesmo
ponto que havia parado o trabalho no dia anterior.
Analisava árvore por árvore, coletando dados como
profundidade da raiz, grossura do tronco, cor e espessura das folhas e
projetava o rendimento e a conversão de cada planta para a próxima safra.
Quando começava a escurecer, retornava ao seu alojamento e sentava-se em um
banco, sozinho e em silêncio, esperando até que um novo dia começasse.
Os dias de XP-36 seguiam uma rotina quase fanática, pois era
isso que se esperava dele.
XP-36 era um robô.
Quando a humanidade começou a colonizar planetas fora do
sistema solar, não demorou até que o trabalho mais pesado nas colônias,
sobretudo nas fazendas, fosse entregue nas mãos de robôs. Era mais seguro –
sobretudo em planetas com animais hostis –, mais preciso e especialmente mais
rápido. Ou, ao menos, mais rápido que qualquer ser humano.
Foi por isso que XP-36 foi planejado, fabricado e enviado
para uma fazenda frutífera em uma colônia distante. Era humanoide e usava um
macacão da colônia, mas dificilmente seria confundido com um humano, mesmo
visto de longe.
Era totalmente prateado, media quase dois metros de altura e
pesava cerca de trezentos quilos de metal e circuitos eletrônicos. De perto, o
fato de não ser humano se tornava ainda mais evidente: seus cabelos e olhos
eram negros e visivelmente artificiais, e não possuía nariz.
Quando XP-36 falava, seus lábios se movimentavam de forma
pouco articulada e nunca correspondendo ao som que emitia. Isso porque ele não
precisava mover sua boca para falar, já que o som vinha de um pequeno alto
falante instalado dentro de sua boca metálica. Os lábios se mexiam como num
antigo filme dublado somente para fazer com que ele se parecesse mais humano em
seu dia a dia.
Entretanto, mesmo longe de parecer humano, estava há tanto
tempo na fazenda que era tratado como um funcionário normal pelos colonos. De
manhã cedo, todos lhe desejavam bom dia. Alguns conversavam com ele sobre a
plantação e ele fazia questão de fornecer o maior número de informações
possível, mas sem jamais de ouvir e absorver o que lhe falavam. E, no final do
dia, quando se encaminhava para o alojamento, desejava um “boa noite, senhor”
aos colonos que encontrava.
XP-36 era feliz na fazenda. Ou, ao menos, tão feliz quanto
um robô poderia ser. Para ele, a fazenda não era apenas o seu local de
trabalho. Era seu lar. E vistoriar as árvores não era sua função, mas sim sua
forma de contribuir com o mundo que vivia.
Por isso que ele não entendeu quando um dia o dono da
fazenda o procurou.
“Nós teremos outro robô para vistoriar as árvores”.
“Mas este é meu trabalho”, disse XP-36, com seus lábios se
movendo de forma estranha, quase cômica.
“Não é mais”, disse o colono. “Agora, é o outro robô que
fará isso”.
XP-36 ficou em silêncio alguns instantes, analisando as
possibilidades. “Qual será minha função a partir de agora?”, ele disse, sem
conseguir enxergar uma alternativa.
“Nós não precisaremos mais de você aqui.”
“Eu não compreendo.”
“Nós não temos como bancar a manutenção de um robô sem
função. Você pode ir embora da colônia.”
O robô olhou para seu mestre sem demonstrar surpresa ou
espanto. Isso estava além de suas capacidades, pois o revestimento do seu rosto
nunca fora projetado para demonstrar sentimentos ou sensações, apenas para
esconder os circuitos que ocupavam seu cérebro.
“Ir embora? Esta será a minha nova função, senhor?”
O colono pareceu pensar um pouco.
“Não. Não é sua função. É apenas o que precisa ser feito.”
“Mas uma função não é justamente executar aquilo que é
preciso ser feito?”
“Não é sua função”, o colono respirou fundo. “Você não tem
mais função. É por isso que precisa partir”.
“O meu serviço não correspondeu com suas expectativas?”
“Nós apenas teremos um robô novo, XP-36. Por isso você está
livre para deixar a colônia”, disse o colono, querendo encerrar a conversa.
“Livre?”
“Isso.”
“Mas eu nunca me considerei um prisioneiro da colônia. Logo,
eu não tenho a ambição de ser livre.”
“Eu tenho coisas para resolver, XP. Você pode partir”.
“Sim, senhor”, disse o robô, olhando ao redor.
Sem olhar para trás, o colono começou a se afastar, mas foi
surpreendido pela voz do robô.
“Senhor?”
“Sim?”, disse o colono, virando-se para trás e encontrando o
robô parado no mesmo lugar.
“Para onde o senhor deseja que eu vá?”, perguntou XP-36, com
seu tom de voz neutro.
O colono não respondeu, apenas fez um sinal para que o robô
seguisse em frente. E foi exatamente o que ele fez.
Andou durante horas. Nunca havia estado naquela parte do
planeta, já que nunca havia colocado os pés fora da colônia. Aos poucos,
começou a reparar que o céu se tornou avermelhado, e logo começou a escurecer.
A noite caiu, mas XP-36 continuou a andar.
Em um determinado momento, olhou para trás e percebeu que
era impossível avistar a colônia de onde estava. Considerou a hipótese de
parar, mas lembrou-se que sua instrução era apenas “andar em linha reta”, e não
“andar até a colônia desaparecer de vista”. Assim, voltou a caminhar olhando
para frente. Esta era sua função. Ou melhor, era o que precisava ser feito. Não
era sua função porque ele não tinha mais função.
As horas viraram dias. Os dias viraram semanas. O planeta
era totalmente desabitado, com exceção da colônia, então não havia muito a ser
visto. XP-36 continuava caminhando em linha reta sempre que possível. Em
determinado momento foi obrigado a diminuir o ritmo por atravessar uma floresta
e, em outro, teve que desviar de uma montanha íngreme demais para ser escalada,
mas calculou o ponto do outro lado que o colocaria na mesma rota.
De tempos em tempos, fazia uma inspeção em seus circuitos
para averiguar o funcionamento do seu corpo. Mas o diagnóstico sempre apontava
que não havia nada de errado com ele, e assim XP-36 continua marchando em
frente, sem rumo, obedecendo a sua última instrução. E foi andando conforme as
estações do ano mostravam o tempo passando: os dias quentes deram lugar ao céu
fechado, que logo se transformou em neve e depois em gelo, que perdurou durante
meses até que o Sol aparecesse novamente e começassem a derreter a imensidão
branca.
E XP-36 continuou andando. Sempre em frente. Sempre em busca
de um objetivo que ele não sabia qual era, porque não fora informado.
Os meses logo passaram a ser medidos em anos. XP-36
continuou caminhando, sozinho e em silêncio, enquanto suas roupas terminavam de se desfazer. Sol, chuva, neve, gelo, sol,
chuva, neve, gelo, sol, chuva. Os anos se somaram em décadas e XP-36 continuou
avançando. Sozinho. Tendo apenas o som dos seus passos e das juntas eletrônicas
de suas pernas como companhia.
E sempre em frente.
Seu cérebro processava todo o ambiente ao seu redor. O
deserto que atravessou. As florestas que ficaram para trás. O lago que ele foi
obrigado a gastar semanas contornando. Seu cérebro continuava processando
informações sobre o ambiente e sobre todas as alternativas de rotas que o
levariam sempre em frente. E também sobre o tempo que já havia gasto em sua
jornada.
E estava prestes a completar vinte e três anos andando quando
avistou construções no horizonte. Analisou a estrutura dos prédios, com sua
programação o alertando sobre o fato do planeta ser desabitado, concluindo apenas
que os prédios eram velhos e construídos com materiais humanos.
Conforme se aproximava, os edifícios começaram a ganhar
formas e cores. Logo, percebeu plantações ao seu redor, ao mesmo tempo em que
os prédios tomaram forma. Eram estranhamente familiares.
Era a colônia que havia deixado para trás.
Ele havia dado a volta ao redor do planeta e voltado ao
ponto de origem.
Mas vinte e três anos havia se passado e a colônia parecia
deserta. Abandonada. A vegetação invadia os prédios, reclamando as áreas
construídas pelo homem. Passou por entre os prédios sem descobrir indícios do
que poderia ter acontecido. Doença. Guerra. Fome. Nada explicava a colônia
vazia.
Entrou nos primeiros prédios e percebeu que a colônia havia
sido abandonada, já que não havia sinal de violência, de corpos ou mesmo dos
objetos pessoais dos colonos. Os outros edifícios não mostraram nada de novo. O
laboratório estava deserto. No centro médico, somente camas e um estojo de
primeiros socorros largado para trás.
Foi até seu alojamento. As plantas haviam invadido o local,
e a porta estava levemente emperrada, mas ele conseguiu abri-la sem muito
esforço. Dentro do pequeno aposento, somente um antigo banco, no qual ele se
sentou virado para a porta.
E esperou.
Assim que o Sol nasceu, ele se levantou e caminhou até o que
sobrava do pomar, e começou a examinar as árvores. Fez isso até o entardecer,
quando voltou para o alojamento e sentou-se, esperando a noite passar. Repetiu
esta rotina por dias, semanas, parando somente para olhar a colônia em sua
volta, em busca de algum sinal de vida. Quando não encontrava nada, voltava sua
atenção para as árvores e continuava suas tarefas.
E o robô ainda está lá. Está há séculos trabalhando num
pomar, sozinho, esperando o retorno de seus mestres, numa colônia abandonada em
um planeta esquecido. E cumprindo suas tarefas com dedicação, pois sabe que
precisa mostrar aos seus mestres que ele não se tornou obsoleto. E mesmo que
ninguém apareça, ele não irá parar.
Pois este é o seu trabalho. É um robô e é isso que se espera
dele.
E, afinal de contas, aquele é o seu lar.
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