Para todo mundo, cartório significa fila. Mas não para Antônio.
Para ele, o cartório era sua vida.
Andava pelas salas e corredores desde quando o pai, Dr.
Freitas – fazia questão de ser chamado de doutor, alegava que era atestado de
seriedade e correção – era o dono do negócio. Cresceu lá dentro, entre documentos
e cópias autenticadas e aprendeu todos os macetes da coisa. Parece que foi
calculado. Quando sabia tudo, o pai morreu. E já no velório sua mãe avisou:
- O negócio agora é seu.
Antônio abriu a boca, não de espanto, mas porque ainda não
havia pensado nisso.
- O cartório do seu pai agora é seu.
Voltou para casa e se pôs a pensar. Agora era dono de um
cartório. Chamou a esposa, Veridiana, mulher correta, mãe e dona de casa por vocação
e disse que as coisas agora iam melhorar. Ela podia até mesmo fazer aquela reforminha
na área de serviço. Sentia saudade do pai, mas agora o cartório, era dele e agora
era hora de trabalhar e ia ficar muito pouco tempo em casa nas próximas semanas.
- Mas não vai te faltar nada, minha filha. Isso eu garanto!
Veridiana queria a reforma, mas não queria ficar sozinha em
casa. Pediu:
- Posso chamar minha irmã?
- Que irmã?
- Minha irmã Rute. Para passar uns dias aqui comigo. Não
gosto de ficar sozinha em casa. O tempo não passa.
Antônio nem ouviu direito. Disse que sim, que tudo bem, que
era bom ela ter companhia.
No Cartório
Alguns dias depois, quem apareceu no cartório foi o Dr. Vargas,
deputado eleito no terceiro mandato. Pilar da comunidade, Dr. Vargas havia desviado
as linhas de ônibus para o bairro e prometia demolir um prédio abandonado ali perto
da praça até o final do ano. Antônio ouviu a multidão antes que o político
chegasse ao cartório, e só entendeu o barulho quando o Jonas, menino negro que trabalhava
na recepção, apareceu em sua sala:
- Doutor Antônio, o deputado está aí para te ver!
Antônio levantou arrumando a gravata e colocando o terno.
Foi recebido com abraços pelo Doutor Vargas, que queria uma palavrinha com ele.
- O senhor aceita um café?
- Aceito, meu filho. Café sempre diz que tem papo bom vindo
aí.
Com duas xicarazinhas delicadas nas mãos, conversaram. Vargas
quis saber como estavam as coisas, prestou respeito ao pai Dr. Freitas – homem corretíssimo,
exemplo de cidadão! – e se o movimento do cartório estava bom. Antônio fez que
sim.
- Muita gente tirando documento esses dias.
Depois do café, o deputado colocou um envelope amarelado na
mesa.
- Preciso que você lavre esses documentos todos.
Antônio não se fez de rogado e apanhou o envelope, tudo para
agradar o ilustre. Mas antes que desse uma olhadela nos papeis, o Vargas já
avisou que seu nome não podia aparecer em nada ali.
- É tudo coisa do prédio da esquina. Vou demolir aquela
bomba, e esses são os documentos do terreno. Mas está tudo no nome de um amigo.
Preciso que você ateste tudo aí. O carimbinho, sabe?
Antônio fez que sim com a cabeça, mas pareceu titubear.
- Vai ter um centro de compras ali. Vai ser coisa grande,
mas para isso preciso dos documentos carimbados. Assim já vai estar tudo
vistoriado.
- Como assim vistoriado?
- Tudo, meu filho. Se você carimbar esses papéis aí, meu
amigo já pode começar a tocar a obra.
Antônio fez menção de puxar os papeis, mas Vargas foi mais
rápido.
- Meu filho, não perde tempo lendo. Deixa eu te falar. O
térreo vai ter uma loja gigante que ainda está vazia. O que você acha do seu
cartório ir para lá?
- Quem dera, doutor! Acabei de assumir o negócio, nem tenho
como mudar agora.
Mas é para isso que servem os amigos, disse o deputado. Bastava
assinar, o prédio era demolido e a obra começava. E o cartório podia mudar. Um
lugar mais bonito, com um ponto de ônibus na frente. Tinha até mesmo garagem
pro carro de Antônio, que assim não precisava mais parar no prédio do lado e se
molhar todo quando estava chovendo.
- Mas esses documentos...
- Tudo legal, meu filho. Tudo nos conformes. Fiz isso muitas
vezes com seu pai. Homem corretíssimo!
Antônio nem leu nada. O deputado foi embora com os
documentos assinados, e pediu que mandasse lembranças à senhora sua mãe.
Poucos meses depois, o cartório havia se mudado. Um lugar
mais elegante e arejado. Tinha até ar condicionado! E os negócios iam cada dia
melhor para Antônio. De vez em quando, o deputado aparecia para um café, com
uns documentos embaixo do braço. Antônio carimbava tudo.
Em sua casa, a reforma da área de serviço estava
acontecendo. Veridiana parecia cada dia mais feliz, escolhendo os azulejos e as
torneiras ao lado da irmã, que havia ficado de vez em sua casa.
Na Sala
Foi numa noite de chuva que Antônio chegou e encontrou a
mulher dormindo. Era tarde e por causa do trabalho Antônio chegava tarde todas
as noites. Mas aquele dia Veridiana estava com dor de cabeça e foi deitar mais
cedo, deixando o jantar do marido no forno, com o arroz por cima do feijão,
como ele gostava desde menino. Dona de casa exemplar.
Quem estava acordada era a cunhada. De camisola vendo TV na
sala escura. Antônio esquentou o jantar e começou a comer na mesa da cozinha.
- Quer companhia no jantar?
Era Rute parada na porta. Sua camisola mostrava mais que
escondia. Rute era mais nova que Veridiana e estava com os cabelos negros
soltos pela primeira vez. Sua pele era branca, suas coxas roliças e seus seios
mexiam conforme ela se respirava.
Antônio nem respondeu e Rute estava sentada ao seu lado.
- Está com fome?
- Sim, ele disse, arrumando o feijão no prato.
- Homem casado não deve jantar sozinho.
Ele não respondeu. Estava com a boca cheia de arroz. E
sentiu o pé de Rute em sua perna. Ela levantou os cabelos se espreguiçando,
mostrando um pedaço da nuca que Antônio achou melhor nem ver.
- Está calor. Detesto calor. Fico mole.
- Esquentou mesmo, disse Antônio, passando um pãozinho no
prato.
- Fico sem defesa. Ainda mais quando estou sozinha.
- Acabei de jantar, Antônio respondeu.
- Eu continuo com fome, Rute devolve. Faz tempo que estou
com fome.
- Minha filha...
Rute coloca o dedo na boca de Antônio pedindo silêncio. O
corpo de Antônio treme. Levanta e apaga a luz da cozinha. Antônio vê a silhueta
da cunhada andando pela cozinha.
- Estamos sozinhos, ela diz.
Antônio não sabe o que falar. Na verdade, nem sabe se quer
falar algo.
- E você não me vê. Pode fingir que sou quem você quiser.
Até a Veridiana. Eu sei que você sente falta dela por causa do seu trabalho.
Quer que eu seja minha irmã?
A voz dela era um sussurro, como se estivesse contando um
segredo.
- Não precisa ser minha irmã. Pode ser alguém do seu
trabalho. E esta mesa pode ser sua mesa. Ninguém vai saber.
Ele se levanta. Ela diz:
- É tudo em família.
Antônio esbarra no prato.
- Tudo aqui na cozinha. Tudo aqui dentro de casa.
No quarto
Antônio fumou três cigarros na janela. Acendeu o segundo na
brasa do primeiro, e jogou o terceiro pela metade janela afora. Mas não
conseguia dormir. Assim, se levantou e foi para o computador, tomando cuidado
para não acordar Veridiana.
Na sala, Rute também estava no computador. Estava nas redes
sociais reclamando do homem que mexeu com ela na rua, esbravejando que havia se
sentido como um pedaço de carne, e que ninguém respeitava mais nada seu corpo
não era um pedaço de carne. Antônio também estava nas redes sociais, reclamando
do novo imposto do governo corrupto que prejudicava as pessoas de bem que
queriam apenas trabalhar.
E Veridiana ali, dormindo e sonhando com a reforminha.
3 leitores:
Batata!
Sensacional!
Homenagem máxima ao mestre!
Grande abraço!
Putz!
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