Eram quatro amigos que se encontravam às vezes para colocar
o papo em dia. Dois homens e duas mulheres, mas que não eram casais – mesmo
porque mal conseguiam concordar em tudo como amigos. Sempre que estavam juntos
falavam, brigavam, discutiam, davam risada... E desce cerveja.
E, como acontece em qualquer encontro que reúne amigos e
cerveja, as horas passaram sem ninguém ver. De repente, existiam mais garrafas
de cerveja que assuntos restantes sobre a mesa. O bar já havia esvaziado –
somente outra mesa, ali num canto, estava ocupada por um velho que parecia já estar
cochilando – e os quatro ficaram em silêncio.
Cada um perdido em seus próprios pensamento, antes de um
deles voltar a falar.
É neste momento que a crônica começa, com o Romantismo
cutucando o Sonho com o braço.
Romantismo: Você não estava escrevendo um livro?
Sonho: Sim. Na verdade, ainda estou. Só não consigo
terminá-lo.
Experiência: Está empacado em um trecho? Posso tentar
ajudar.
Sonho: Não. Não consigo terminar por causa dela.
Realidade: Por que vocês estão olhando para mim?
Sonho: Porque é você que não me deixa terminar o livro.
Realidade: Eu? Eu não tenho nada a ver com isso.
Sonho: Toda vez que eu sento para escrever... Não é uma vez,
duas vezes... É toda vez. Eu sento para escrever, ela liga para me interromper.
Realidade: Mas eu não ligo para interromper, eu ligo para
falar coisas importantes.
Romantismo: Que coisas importantes?
Realidade: Dinheiro. Trabalhos. Essas coisas.
Romantismo: Ah, achei que tivesse paixão no meio.
Experiência: Como assim?
Romantismo: Coisa importante para mim é se apaixonar.
Realidade: Pelo amor de Deus, você não cresce nunca? Tem que
se apaixonar o dia inteiro?
Romantismo: Cada um com suas prioridades. Você gosta de
falar sobre contas e saldo bancário, eu prefiro continuar com quinze anos de
idade.
Experiência: Olhe, esse negócio de se apaixonar é
complicado. Você se expõe demais, e a outra pessoa...
Romantismo: Eu não disse que precisa ser por uma pessoa. Eu
disse “se apaixonar”. Pode ser por um livro, um seriado, uma bebida. Pode até
ser por uma pessoa, mas não precisa ser por isso.
Realidade: Se apaixonar por um livro? Para com isso.
Romantismo: Se apaixonar significa pensar no objeto da
paixão vinte e quatro horas por dia. Vai dizer que você nunca leu um livro que
fica pensando nele o dia inteiro? Você sai de casa querendo voltar para ele.
Isso é estar apaixonado. O Sonho está de prova, quando eu me apaixono, fico dias sem nem falar com ele. Com nenhum de vocês, na verdade.
Experiência: Ficar pensando no livro? Porque metade dos
livros que eu leio eu descubro como eles vão terminar quando estou na metade.
Romantismo: Não. Se apaixonar é querer estar lá quando você
está aqui, e querer estar lá até quando você está lá, sabe?
Realidade: Isso não faz o menor sentido.
Romantismo: Não faz sentido para você, que fica o tempo
inteiro pensando em pagar o aluguel.
Sonho: É por isso que eu não consigo terminar meu livro.
Vocês ficam tirando meu foco.
Romantismo: Nós?
Sonho: Sim. Ela me liga para falar do aluguel. Você me liga
para dizer que não consegue fazer nada enquanto não terminar não sei qual
temporada de qual série. E a Experiência me liga dez minutos depois de você,
para me dizer que a série não é tudo isso, ela já viu coisa melhor. E eu ali
tentando escrever. Não dá.
Experiência: Você devia sentar e escrever esse livro de uma
vez. Ou desistir logo disso. Fica sonhando com essas coisas...
Sonho: Nem começa. Vocês já me atrapalham com o livro, não
vão me atrapalhar com a vontade de escrever o livro.
Romantismo: Vamos pedir mais uma?
Sonho: O papo está bom. E eu não vou escrever hoje, então eu
topo.
Experiência: Não sei, não. Eu sei o que acontece quando bebo
demais.
Romantismo: Você sempre diz que sabe tudo. Vamos beber.
Sonho: Traz mais duas aqui! E amendoim!
Realidade: Esse amendoim é por conta da casa?
Sonho: Tomara.
Realidade: Dá uma olhada na conta, depois, para ver se não
estão cobrando esse amendoim.
Sonho: Esquece a conta. Vamos beber, a noite é uma criança!
Romantismo: Um brinde às paixões que ficaram no passado!
Sonho: Um brinde ao meu livro que ainda vai ser um sucesso!
Experiência: Um brinde a tudo o que vivemos juntos!
Realidade: Olha, esse amendoim está meio estragado, não come
não.
Sonho: Pelo amor de Deus, você é muito chata!
Realidade: Pô, peguei um amendoim meio azedo. Não tem nada
pior que amendoim azedo, ele vem junto com os outros na boca, escondido, e,
quando você vê, a boca inteira está azeda. Você devia escrever um livro sobre
isso. Amendoins azedos.
Romantismo: Sério? Seria um baita livro horrível.
Realidade: Aposto que as pessoas iriam se identificar. Todo
mundo já comeu um amendoim azedo. Acho que iriam se interessar.
Sonho: Não, não quero falar mais do livro. Vocês sempre
estragam todas as ideias que tenho.
Experiência: Que culpa eu tenho se acho que suas ideias
podiam ser melhores?
Realidade: Que culpa eu tenho se você, como qualquer outro
sonho, não paga conta alguma?
Romantismo: Que culpa eu tenho se você... Puta que pariu,
Sonho, olha isso.
Todos olharam na direção da porta, fixando os olhos a garota
que havia acabado de entrar no bar e pedido um maço de cigarros. Devia ter
cerca de uns vinte anos, ou qualquer outra idade que fica entre a adolescência
e a vida adulta, fazendo meninas terem corpo de mulher e mulheres terem cara de
menina.
Usava um pequeno vestido branco colado ao corpo e saltos
altos. Seus cabelos dourados pareciam refletir o Sol, independente de estarem
no meio da madrugada.
Sonho: Porra...
Realidade: Esquece. Essa garota nem vai olhar para vocês.
Experiência: Tomara. Mulher assim sempre traz problema.
Romantismo: Entenderam o que eu quis dizer com “se
apaixonar”?
Enquanto esperava pelo cigarro, a garota olhou para eles. E
sorriu. Experiência desconfiou, Realidade duvidou, Romantismo se arrepiou e
Sonho pensou como seria estar ao lado dela, e não na mesa. Experiência não se aguentou:
Experiência: Qual seu nome?
A garota sorriu ainda mais.
– Vida.
Pagou o cigarro, guardou na pequena bolsa e ainda sorrindo
saiu do bar. Mas ficou na calçada, esperando algo acontecer. Ou alguém ir falar
com ela, quem sabe. Experiência desconfiou, Realidade não entendeu, Romantismo estava
pensando num poema e Sonho imaginou como seria ter filhos com ela.
Mas nenhum deles teve tempo de ir até a calçada. Quem
apareceu ali foi o Velho da mesa do canto de quem eles nem se lembravam mais.
Aparentemente, ele não apenas estava acordado como estava ali, na calçada, ao
lado da Vida que vestia branco. E não demorou muito até ela colocar o braço ao
redor da cintura dele e irem embora.
O silêncio no bar se tornou quase sólido. E foi quebrado
pelo garçom, que veio até a mesa perguntar se queriam mais cerveja. Quem respondeu
foi Romantismo, mas com uma pergunta:
Romantismo: Você conhece esse velho?
Garçom: Esse que levou a Vida embora?
Romantismo: Isso.
Garçom: Sim. Ele vem aqui às vezes. Mas não se sintam mal
com o que aconteceu. É sempre assim.
Sonho: Como assim?
Garçom: Ele sempre fica ali no canto e ninguém presta atenção.
De repente, ele passa e leva algo embora. Ele ganha todas.
Realidade: Que velho filho da puta.
Sonho: Como ele se chama?
Garçom: Tempo.
E foi embora, arrastando os pés, buscar mais cervejas, deixando todos em silêncio, enquanto a Realidade olhava para o pote de amendoins, com medo de comer um que estivesse azedo.
9 leitores:
Sem brincadeira.
Essa crônica está FANTÁSTICA.
De dar arrepios. E me fazer bater palmas em pé diante do pc.
Meus parabéns! Inspirado demais dessa vez. =)
Arrepiou, Rob!!!
forte abraço!
Não vou me alongar, porque qualquer coisa que eu disser estará muito abaixo do nível desse texto.
Parabéns, Rob!
Texto perfeito!
Apenas um conselho:
Continue mostrando seus escritos para a Ana e sempre confie na opinião de quem entende de coisa boa. :)
CACETE!
Cara, na boa. E quem acaba ficando milionário é o Paulo Coelho dizendo que o "Universo conspira a seu favor" ou whatever. Se você não chegar lá é porque esse tal de Universo deve gostar de uma piada sem graça.
uau...fera esse texto. Realmente o tempo não perdoa ninguém!
Nossa que bosta.
Abs
Pedro
Cara, que texto foda...
O mais engraçado é que estou terminando de ler Sandman e foi impossível não ler esse texto sem imaginar os Perpétuos ali conversando...
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