17 de fevereiro de 2014

Crônica de uma Crônica Apaixonada



Era quase fim da tarde quando a Crônica entrou no consultório arrastando os pés. Visivelmente desanimada, deu boa tarde sem mal olhar para o psicólogo e deitou-se no divã. O médico aguardou alguns instantes. Mas, ao concluir que o texto não parecia disposto a falar, resolveu puxar assunto.

- Você não parece bem.

- Estou desanimada.

- O que houve?

- Eu não consigo mais ver qual meu papel no mundo. Ou melhor, minha função.

- Como assim?

- Eu não tenho mais função. Não tenho mais valor.

- O que faz você pensar dessa forma?

A Crônica não respondeu imediatamente. Permaneceu fitando o teto, antes de se sentar no divã e olhar diretamente para o doutor.

- Hoje em dia, todos os textos precisam ter uma opinião. E uma opinião forte. Não precisa nem ser uma opinião correta, mas precisa ser forte. Qualquer texto hoje precisa a ser favor disso, contra aquilo. Não basta estar bem escrito. Aliás, nem precisa ser bem escrito. Precisa atacar ou defender algo ou alguém.

- E você não se encaixa nisso.

- Não. Eu sou uma crônica. Eu sou uma história pequena. Eu tenho personagens que são pessoas reais e que podem ser qualquer pessoa. E eu posso ser o que você quiser. Posso ser uma crônica de amor, posso fazer você rir ou chorar. Mas isso não tem mais muito valor. Hoje, se você não tiver opinião, você é um texto qualquer. As pessoas não querem mais se emocionar, não querem se entreter... Elas querem somente concordar ou discordar.

- Como se elas estivessem procurando um líder?

- Não, não acho que elas queiram seguir alguém. Elas querem apenas textos para, concordando ou discordando, reafirmarem para elas mesmas e para os outros, que aquilo que acreditam é o correto. Por isso que a maioria destes textos é sobre algum assunto do momento. E normalmente repetindo o óbvio, falando aquilo que todos já sabem.

- E, com isso, você...

Neste momento, a Crônica se levantou e ficou em pé no consultório.

- Olhe para mim.

O psicólogo ergueu os olhos diretamente para a paciente. A Crônica, em pé, tinha uns dez ou doze parágrafos e a mesma quantidade de linhas de diálogo. O texto continuou:

- Eu sou uma crônica! Eu sou a história do menino que tem a paixão platônica, eu sou a história da esposa que precisa encontrar o troféu de futebol do marido antes que ele entre em casa, eu sou os pensamentos da velhinha viúva que resolveu não sair mais do apartamento por medo do cheiro do marido desaparecer do lugar. É isso que eu sou! É isso que eu sei fazer!

- Mas você já teve opiniões, mesmo como crônica.

- Sim. Mas eu não sou obrigada a dar opiniões. Às vezes, eu posso somente contar uma história, sem dar opinião nenhuma. Eu não preciso dizer toda hora o que é certo e o que é errado. E outra coisa, eu não dou opiniões, eu...

- Ensina lições?

- Não. Ensinar lições seria arrogante demais. Eu... Não sei, eu... Eu passo uma mensagem!  É isso! Lembra quando eu fui a história do menino que se apaixona no metrô? Aquela que termina com a menina indo embora sem nem olhar para a cara dele e mesmo assim o menino vive feliz para sempre?

- Sim.

- Ali tem uma lição. A crônica termina com “o menino viveu feliz para sempre”, porque você não precisa ser correspondido para ser feliz, você precisa amar para ser feliz. É uma mensagem, não uma opinião.

- Não é a mesma coisa?

- Não, claro que não. Olhe, esta história do menino no metrô... Ela existiria mesmo sem a mensagem. O que importa é o amor do menino, e não a mensagem. A mensagem apenas enriquece a história. Eu não fui esta história apenas para mostrar que “amar é mais importante que ser correspondido”, eu fui esta história para mostrar para as pessoas que se apaixonam no metrô que isso acontece com todo mundo, e que pode ser bonito.

- Entendi.

- Agora, a mensagem, o “você precisa amar para ser feliz”... A pessoa aprende isso se quiser. E mesmo se ela não perceber esta mensagem, ela pode se emocionar com o texto da mesma maneira. Agora, os textos de opinião... Eles só existem por causa da opinião. Se você tirar a opinião, sobre o quê? Nada. Nem um parágrafo.

- E você acha isso errado?

A Crônica fez uma pausa e foi até a janela. Olhou para fora e franziu o primeiro parágrafo, observando as pessoas na rua, antes de concluir.

- Eu faço as pessoas sonharem. E isso deveria ser importante.

- Concordo. Mas textos com opinião também são importantes. Eles têm seu papel no mundo.

- Sim. Você perguntou se eu acho esses textos errados. Não, não acho. Eles também são importantes. Mas a questão aí não é o “importante”, é o “também”.

- Como assim?

- Eles também são importantes, porque eu e qualquer outro texto somos importantes. Se o mundo vivesse apenas de crônicas, ele seria uma fantasia. Mas se o mundo viver sem crônicas, ele será mais chato. Mais teórico. Mais preto e branco. Ambos têm a mesma importância. Mas textos sem opinião estão perdendo o valor.

- E uma crônica não pode dar opinião?

- Claro que pode. Mas para quê? Pegue qualquer assunto do momento e veja os textos sobre dele. Você tem centenas de textos sobre a mesma coisa. Uns dez dizem algo de interessante. Os outros apenas repetem o que todos já sabem, e são aplaudidos por isso. Isso sem falar nos textos com raiva, nas piadas sem graça em cima do tema... Sabe... Hoje, falar sobre o assunto se torna mais importante que ter algo a falar sobre o assunto.

- Você tem razão.

- Eu não quero fazer parte disso.

- Entendi.

- Então você não pode ser uma crônica sobre o assunto do momento? E passar uma mensagem sobre ele?

- Nem sempre. Existem assuntos que não existe uma mensagem fixa. Cada pessoa acredita em algo. Se eu escolher um lado, se eu começar a apontar o certo e o errado, eu deixo de ser universal. Eu deixo de ser uma crônica e viro um texto de opinião.

- Concordo.

A Crônica ficou em silêncio por alguns instantes, concentrada em algo na rua. Pareceu se esquecer de que estava no consultório por alguns instantes.

- Tem uma menina chorando lá fora.

O texto parecia ter falado isso mais para ele mesmo que para o psicólogo. Mesmo assim, o médico continuou a conversa.

- Como assim?

- Ela estava discutindo com o namorado quando cheguei aqui. Era uma briga feia. Agora ela está sozinha na calçada. Está sentada ali, chorando.

- Isso incomoda você?

- Não. É normal. Casais se apaixonam e terminam. Eu já fui histórias de casais apaixonados, já fui histórias de casais brigando, já fui histórias de casais que se separaram. É normal.

O médico levantou-se e foi até a janela para ver a menina.

- Neste momento, ela não deve estar achando isso normal.

A Crônica respirou fundo.

- Não. Está doendo demais nela. Quando a alma dói, o mundo deixa de ser normal. Mas vai passar.

- Ela não sabe disso.

- Nós nunca sabemos. Não em horas como essa, quando tudo o que podemos fazer é sentar na calçada e chorar.

O psicólogo colocou a mão no ombro da Crônica e sorriu.

- Aquela menina precisa de você.

A Crônica desviou os olhos da garota e olhou para o médico.

- Oi?

- Aquela menina. Ela vai voltar para casa e procurar um sentido no que aconteceu. E vai ler textos sobre relacionamentos. Alguns vão mostrar que ela errou. Outros vão mostrar que o namorado errou.

- Sim. As pessoas fazem isso nessas horas. Procuram explicações.

- Ela não precisa disso. Ela não precisa entender, ela precisa de uma crônica que mostre que ela ainda vai ser feliz.

Os olhos da Crônica brilharam e ela sorriu discretamente.

O psicólogo conhecia aquele olhar. Uma história estava se formando dentro da cabeça da Crônica, que começou a resmungar coisas como “pode ser a história de uma menina que sobe uma montanha em busca de uma flor... Não... Talvez a história de uma menina que corre o mundo atrás do amor, até descobrir, de alguma forma, que o amor estava dentro dela.”

O psicólogo não respondeu. Sabia que não adiantava falar com a Crônica quando ela começava a bolar histórias.

Parado à sua frente, o texto continuou resmungando. Seus parágrafos, frases e palavras mudavam conforme ele pensava em histórias diferentes.

- Ou a história de uma mulher que, já velhinha, reencontra seu amor dos tempos de colégio e descobre que hoje moram no mesmo prédio. Isso! E faço uma brincadeira no texto, ela começa velhinha e conforme o tempo passa, ela vai, ao lado dele, se tornando mais jovem, até voltar a ser adolescente. Isso! Tem tudo aí. Mensagem, emoção, amor, final feliz. Tem tudo aí.

O médico sorriu. A crônica olhou para ele ansiosa.

- Posso ir embora? Preciso me escrever para fazer aquela menina chorar de uma vez tudo o que ela precisa, para finalmente voltar a sorrir quando a velhinha voltar a ser jovem, e ela perceber que também poderá ser jovem de novo.

O médico sorriu de volta.

- Não se esqueça. Talvez o mundo não precise mais de crônicas. Mas as pessoas que amam dependem de você para continuar amando.

Mas a Crônica não ouviu.

Já havia saído correndo do consultório e estava entrando no elevador enquanto redigia o segundo parágrafo.

4 leitores:

Unknown disse...

Você é muito criativo!

Daniel disse...

Obrigado, Rob. Obrigado, Crônica

Varotto disse...

Sublime.

Anônimo disse...

O senhor poderia me dar opiniões sobre crônicas ?

 

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