III
Júlia havia entrado na escola de Mateus naquele ano.
Sem conhecer ninguém, acabou se aproximando do garoto que,
por coincidência, se sentou ao seu lado no primeiro dia de aula. O menino se
chamava Mateus e estudava naquele colégio desde criança.
Com o tempo, ela fez amizade com outras duas meninas da
sala, mas nunca deixou Mateus de lado. Sempre dava um jeito de estar perto
dele. Ela passava a maior parte do tempo na escola ao lado das garotas, mas, depois
da aula, ela e Mateus costumavam passar a tarde juntos em sua casa.
Começou quase por acidente, na verdade, em um dia que eles
tiveram que fazer um trabalho de História. Passaram a tarde inteira na varanda
do apartamento dela, conversando sobre tudo e sobre nada ao mesmo tempo (à
noite, depois que ele foi embora, Júlia fez a tarefa sozinha e eles tiraram
oito).
Gostaram tanto da conversa que repetiram a dose no dia
seguinte, combinando estudar Ciências juntos. Mas novamente passaram a tarde
conversando, sem sequer abrir os livros. No dia seguinte, mesma coisa: ficaram
a tarde conversando na sala da casa dela, com os livros de Português
abandonados sobre a mesa.
Durante alguns dias, esta rotina se repetiu: combinavam
estudar juntos e ficavam batendo papo durante horas, sem nem tocar nos livros
ou cadernos. Logo perceberam que não era mais preciso inventar desculpas para
eles mesmos. Nunca chegaram a conversar abertamente sobre isso. Apenas
desistiram de fingir que iam estudar e começaram a combinar apenas o horário em
que Mateus chegaria.
Mesmo assim, Mateus levava os livros. Fazia parte da mentira
que contava em casa. Todos os dias, terminava o almoço, pegava os primeiros
livros que encontrava pela frente e partia para a casa de Júlia, dizendo que ia
estudar na casa de um amigo. Ela, por outro lado, não precisava mentir para
ninguém, já que passava o dia inteiro sozinha em casa. Júlia morava somente com o pai – ela nunca
falava sobre a mãe – que trabalhava o dia inteiro.
Era fácil para Júlia, porque ela tinha a casa toda para ela.
Era excitante para Mateus, porque ninguém mais sabia disso. Nem seus pais, nem
Lucas, nem ninguém. Era um segredo só deles, e Mateus gostou da sensação de ter
um segredo com alguém.
Não. Mateus gostou da sensação de ter um segredo com Júlia.
Na verdade, havia uma terceira pessoa que sabia de tudo: o
porteiro do prédio de Júlia. Entretanto, depois de alguns dias, o sujeito
começou a abrir o portão para Mateus assim que o via na calçada. Mateus nem precisava
mais tocar o interfone. Era tratado como um morador. Ou como o namorado de uma
moradora, pensou um dia.
Mateus sabia apenas que entrar no prédio sem ser anunciado
fazia com que ele se sentisse importante. E fazia com que ele enxergasse o porteiro
como uma espécie de aliado. Não, mais que um aliado. Um cúmplice.
IV
As tardes que passava com Júlia desobedeciam tudo o que
Mateus sabia sobre o tempo. Elas passavam rápido demais, às vezes num piscar de
olhos, mas cada uma delas era uma vida inteira.
Conversavam sobre tudo. Sobre a vida, sobre música, sobre a
vida, sobre filmes e mais um pouco sobre a vida. Ela tinha quase dois anos a
mais que ele e havia nascido em outro estado – estava sempre se mudando por
causa do trabalho do pai. Sem irmãos, estava acostumada a ficar sozinha em casa
a maior parte do tempo.
Nos primeiros dias, Mateus não se sentia exatamente à
vontade ao lado dela. Júlia parecia ser muito mais madura que ele e, às vezes, parecia
se divertir quando ele ficava sem saber o que falar. Isso acontecia com
frequência nos primeiros dias, mas logo ele começou a se sentir mais confortável
ao lado dela e passou a se abrir mais.
Contava histórias do seu passado, coisas que havia aprontado
com seus amigos, normalmente aumentando discretamente um pouco sua participação
em cada uma delas.
Não sabia ao certo porque fazia isso. Talvez para competir com
as histórias que Júlia contava. Em algumas vezes, elas eram bem parecidas com
as de Mateus. Em outras, porém eram sobre viagens com amigas e festas com meninas
e meninos e música alta e garrafas de bebida escondidas dos pais. Não eram
muitas – eram bem poucas, na verdade – mas estavam ali e, na opinião de Mateus,
formavam um pequeno muro entre ele e Júlia.
Mateus, que normalmente se reunia com os amigos somente para
jogar videogame, e sempre com os pais por perto, ouvia tudo tentando parecer
experiente e com medo de Júlia perceber que aquele mundo com festas e bebidas era
bastante misterioso para ele. Assim, disfarçava isso aumentando suas histórias,
normalmente fazendo com que ela parecesse mais engraçada do que era realmente,
somente para ver Júlia rindo, algo que reduzia a distância entre eles. Ao
menos, era o que Mateus acreditava.
Na verdade, fazer Júlia sorrir sempre fez Mateus se sentir
bem, mas se tornou algo especial na vida do menino depois daquela terça-feira.
Não estava nem frio nem calor, e ela vestia uma camiseta de rock e seus os
cabelos estavam presos preguiçosamente com uma caneta.
Ambos estavam na varanda comentando um negócio qualquer que
havia acontecido na escola. De repente, Mateus soltou um comentário que fez a garota
gargalhar como ele nunca havia visto. Ela jogou a cabeça para trás e riu alto e
gostosamente. Seus cabelos escaparam do nó improvisado com a caneta e algumas
mechas caíram sobre seu rosto.
Mateus observou tudo aquilo vidrado.
De repente, tudo o que importava para ele desapareceu. Os brinquedos,
os amigos, a escola, os videogames, os desenhos animados, os jogos do seu time
que assistia ao lado do pai... Nada mais importava. Na verdade, nada mais
existia. De repente, tudo aquilo que ele tratava como tesouros – como a coleção
de miniaturas de soldados da II Guerra que seu tio havia trazido da Inglaterra –
sequer chegava perto da risada de Júlia para ele.
Teve que se esforçar para desviar o olhar antes que Júlia percebesse.
Percebeu imediatamente (e com uma certeza que nunca havia sentido antes) que
jamais se esqueceria daquele momento. E, quando Júlia estava conseguindo parar de
rir e falou algo sobre ele ser a pessoa mais legal que ela havia conhecido, ele
tentou responder alguma coisa, mas não conseguiu e percebeu que também havia se
esquecido de respirar nos últimos segundos.
Horas depois, foi embora para casa sob uma espécie de
encantamento. Há anos, Mateus entrava em casa e ligava a televisão no canal de
desenhos animados. Fazia isso quase automaticamente. Neste dia, ele seguiu o
mesmo ritual. Tirou o tênis, ligou a televisão e se largou no sofá.
Mas, neste dia, diferente dos outros, ele não assistiu nada.
Ficou olhando para a televisão pensando em Júlia, em sua risada, em ele ser a
pessoa mais legal que ela havia conhecido e como ele devia ter falado alguma
coisa, e não apenas desviado os olhos e quase engasgado como uma criança.
Pensou em diversas respostas que poderia ter dado, e jurou para si mesmo que se
um dia Júlia falasse aquilo de novo, ele iria responder alguma coisa. Qualquer
coisa.
Mas ao imaginar Júlia falando de novo que ele era a pessoa
mais legal do mundo fez com que ele percebesse que estava morrendo de medo de
um dia ela falar aquilo de novo. Tentou imaginar se Júlia estava pensando nele
naquele momento, o que ela estaria fazendo e se sentiu vontade de sair de casa
e ir vê-la dela de novo, mesmo sem conseguir numa desculpa para tocar a
campainha da casa dela.
Acomodou-se melhor no sofá e fechou os olhos. E, dentro de
seus olhos, Júlia gargalhou mais uma vez à sua frente e falou que ele era a
pessoa mais legal que ela havia conhecido – desta vez, não distraidamente como
horas antes, mas mais séria e olhando diretamente para ele. Desta vez,
esperando por uma resposta de Mateus. Desta vez, querendo uma resposta de
Mateus.
Sentia-se confuso e um pouco idiota. Sentia um buraco no seu
peito, mas também se sentia a pessoa mais importante do mundo. Sem conseguir
encontrar uma resposta, acabou pegando no sono, sem prestar a menor atenção no gato
e no rato que se espancavam com martelos e marretas cada vez maiores na
televisão.
(Continua aqui)
8 leitores:
Por favor, nunca pare de escrever.
Amando tudo.
Isso é lindo pra caralho! Tô com o Matheus nessa
Meu coração até diminuiu o ritmo da batida um pouco. Que coisa mais linda.
Tu é muito foda!
Uma das coisas mais lindas que eu já li!
Desconfio que o pobre Mateus não vai se dar muito bem nessa...
Vou repetir o pedido do Anônimo lá em cima, porque realmente preciso que você me (nos) faça esse favor: "nunca pare de escrever."
"As tardes que passava com Júlia desobedeciam tudo o que Mateus sabia sobre o tempo. Elas passavam rápido demais, às vezes num piscar de olhos, mas cada uma delas era uma vida inteira."
Grande imagem.
E a cena da gargalhada: ÉPICA
(e, desta vez, nenhum figurante do Ben Hur vai morrer).
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