V
Mateus descobriu que havia um mundo muito maior que a
gargalhada de Júlia numa quinta-feira. Como de costume, passaram a tarde
conversando – desta vez na frente da televisão – e tomando sorvete, até que
começou a anoitecer e Mateus precisou ir embora. Recolheu seus cadernos e, já
na porta do apartamento, chamou o elevador e virou-se para se despedir de
Júlia.
A garota se aproximou com seu cheiro doce.
Mateus já havia reparado que Júlia sempre tinha um cheiro
doce. Mais de uma vez, pensara em perguntar se era algum perfume, mas nunca
teve coragem. Não se sentiria muito à vontade iniciando uma conversa sobre
perfumes com Júlia ou, para falar a verdade, com qualquer outra garota. Além disso,
a simples ideia de Júlia saber que ele prestava atenção em seu cheiro o
deixaria ainda mais sem graça.
Assim, o cheiro doce de Júlia era algo que Mateus escondia
para ele. Na verdade, ele nem mesmo fazia ideia se Júlia sabia que seu próprio cheiro
era doce. Sempre que pensava sobre isso, Mateus concluía que não, já que ele
também não fazia ideia de como era seu próprio cheiro. Na verdade, ele nem
sabia se tinha algum cheiro, mas se tivesse, certamente não seria doce como o
de Júlia.
Porém, ignorar o cheiro de Júlia era algo que se tornava
ainda mais difícil no final da tarde. Isso porque a hora que se despediam,
antes de Mateus ir embora, era o único momento do dia em que trocavam um beijo.
Na escola, com todos os outros alunos no pátio, Mateus e
Júlia se cumprimentavam sem nenhum tipo de contato físico. Mateus preferia
assim. Já quando ele entrava na casa de Júlia, no começo da tarde, também se
cumprimentavam somente com palavras e sorrisos, mas sem beijo, mesmo estando apenas
os dois na sala, pois...
Pois...
Mateus não sabia ao certo o motivo disso. Sentia vontade
de dar um beijo em Júlia sempre que entrava em seu apartamento, e sabia que não
estaria fazendo nada de errado. Muito provavelmente, era até mesmo o que Júlia
esperava dele, mas... Faltava-lhe coragem.
Quando colocava os pés na casa de Júlia, depois do almoço, Mateus
era apenas um menino ansioso e se esforçando para não fazer nada de errado. Nessas
horas, a garota parecia muito maior que ele, quase inatingível, e o fato de que
Mateus mal conseguia disfarçar sua ansiedade só fazia isso aumentar.
Porém, começavam a conversar e, depois de algumas horas e
algumas risadas de Júlia, Mateus se sentia mais à vontade. Não totalmente à
vontade, mas o suficiente para beijá-la no rosto antes de ir embora. Isso porque
quando ia embora da casa de Júlia, Mateus não era mais menino. Não era um
homem, estava longe disso, mas também não era mais um menino.
No caminho de volta para casa, pouco depois do beijo, Mateus
pensava em todas as coisas que gostaria de ter dito para Júlia, e tinha a
certeza de que falar tudo o que pensava era muito mais fácil do que imaginava –
ou, ao menos, muito mais fácil agora do que horas antes, quando fazia o mesmo
caminho rumo ao apartamento de Júlia, acompanhado sempre do frio na barriga.
Mas, no dia seguinte, já acordava totalmente menino de novo
e o processo todo se repetia, encontrando seu auge – ao menos, na opinião de
Mateus – no final da tarde, quando o
menino-que-ainda-não-era-homem-mas-também-não-era-mais-menino ganhava um beijo
no rosto antes de ir embora para cara e voltar a ser menino durante a noite.
O beijo era o momento mais importante do dia de Mateus. Ele
detestava ir embora da casa de Júlia, mas também adorava ir embora, pois sabia
que era hora do beijo.
Era quase um ritual: Mateus tentava ignorar o cheiro doce de
Júlia e se beijavam rapidamente no rosto, na porta do apartamento. E o garoto logo
em seguida se refugiava sozinho no elevador, onde não precisa fingir que aquele
beijo era algo casual, era o beijo mais normal do mundo, e não um beijo que ele
estava querendo desde a hora que chegou. E, dentro do elevador, ele também
podia pensar se Júlia tinha entendido a mensagem secreta que ele tentou passar
no beijo, dizendo que não queria ir embora.
Todo dia era assim, e naquela quinta-feira não foi diferente.
Mateus chamou o elevador, tentando ignorar o cheiro doce de
Júlia. Assim que o elevador chegou, virou-se e se despediram com um beijo na
bochecha.
Foi um beijo igual aos beijos dos outros dias. Rápido, um
pouco embaraçado.
Mas, neste dia, foi entregue no canto da boca.
VI
Mateus nunca havia imaginado que era possível sentir seu
corpo se arrepiar e ferver ao mesmo tempo até aquele momento. Seus pés pareciam
flutuar sobre o chão e seu coração ameaçou pular pela boca e sair correndo de
volta para dentro do apartamento de Júlia.
Quando voltou a si, Júlia já havia fechado a porta do
apartamento e Mateus estava dentro do elevador. Não sentia mais nada. Era como
se o seu corpo não existisse mais, havia desaparecido e deixado um único
sobrevivente: o canto esquerdo da sua boca. Todas as sensações do mundo estavam
ali, perto dos seus lábios.
Ficou parado, olhando a porta, sem apertar nenhum botão,
durante alguns segundos. Pensou em tocar a campainha novamente. Chegou a sair
do elevador e ameaçou colocar o dedo no botão, mas mudou de ideia ao lhe
ocorrer que não saberia o que dizer para Júlia.
Voltou a entrar no elevador. Sentia-se mais seguro ali
dentro – caso Júlia abrisse a porta, bastava apenas apertar um botão e
desaparecer. Esperou ali por alguns instantes, até se convencer, com um misto
de alívio e desapontamento, de que Júlia não iria aparecer novamente, a não ser
que ele tocasse a campainha.
Finalmente apertou o botão que indicava o Térreo e, enquanto
o elevador descia, Mateus sentiu-se espremido por pensamentos.
Talvez Júlia nem tivesse percebido o que havia acontecido.
Talvez Júlia tivesse vontade de beijá-lo. Talvez tenha sido sem querer.
Provavelmente foi sem querer. Foi um acidente. Ele queria beijar Júlia, mas não
sabia se Júlia queria beijá-lo. Com certeza foi sem querer. Júlia era bonita
demais para querer beijá-lo. Júlia não teria errado o beijo. Júlia queria
beijá-lo. Júlia gostava dele. Júlia cheirava doce demais para querer beijá-lo.
Ninguém erra um beijo.
Ainda um pouco zonzo, saiu do prédio e ganhou a rua. Já na
calçada, subitamente teve a certeza de que tudo seria esclarecido facilmente. Bastava
olhar para o alto, na direção do apartamento de Júlia. Se ela estivesse na
varanda o observando ir embora, o beijo teria sido de propósito. Se a varanda
estivesse vazia, teria sido um acidente.
Mateus se sentiu bobo e fez força para não olhar para cima. Além
disso, percebeu que se sentia mais confortável com a dúvida que com a certeza. Queria
que tivesse sido de propósito. Queria que tivesse sido sem querer. Queria que
tivesse sido na boca. Apertou o passo, disposto a não pensar no assunto e ir
para casa.
Sua determinação durou menos de cinco metros.
Deu meia volta rapidamente e, tentando não imaginar se as
pessoas na rua estavam olhando para ele, ergueu os olhos, rapidamente, na
direção da varanda de Júlia, esperando encontrá-la ali, sorrindo e com as
mesmas dúvidas que ele.
Não havia ninguém.
Mateus voltou para casa e o beijo no canto da boca não saía de
sua cabeça. Jantou o beijo, ligou a TV e assistiu ao beijo, abriu um livro e
leu o beijo no canto da boca, tentou estudar e aprendeu um pouco mais sobre o
beijo.
Quando se deitou para dormir, Mateus não sabia mais o que
fazer com aquele beijo.
Deitado no quarto escuro, em algum momento antes do sono
chegar, jurou para si mesmo que, no dia seguinte, encontraria um jeito de
perguntar para Júlia o que eles eram. Não era uma pergunta difícil, a garota precisava
apenas dizer apenas se eles eram namorados ou amigos. Mais nada.
E ensaiou tudo o que falaria para ela, dependendo da resposta
que ouvisse. Na verdade, ele não conseguiu ensaiar o que falaria se ela dissesse
que eram apenas amigos, pois, ali, sozinho na cama e protegido pela escuridão, Mateus
tinha certeza: o beijo havia sido de propósito.
Júlia estava apaixonada por ele.
Deitado na cama e com a luz apagada, ensaiou diversas formas
de tocar no assunto até finalmente adormecer, decidido e corajoso. Mas no dia
seguinte, assim que chegou à escola e deu de cara com Júlia, logo na porta da
sala e antes do planejado, percebeu que havia esquecido sua coragem no
travesseiro.
A luz do dia trazia a certeza de que o beijo no canto da
boca havia sido um beijo no canto da boca por acidente e Mateus estava apenas imaginando
coisas. À tarde, decidiu não tocar no assunto, muito menos mencionar o beijo até
o dia seguinte; e no dia seguinte resolveu esperar até o próximo dia.
Finalmente mudou de estratégia: resolveu esperar até que
soubesse o que sentia por ela.
Sim, era uma boa saída. Afinal, ele não sabia ao certo nem
mesmo isso. Gostava dela mais do que como simples amiga, mesmo sem nunca ter assumido
isso em voz alta (na verdade, ele mal conseguia assumir isso para ele mesmo em
silêncio). Mas não sabia ao certo o que sentia.
Tinha apenas duas certezas.
Primeiro, seus dias podiam ser divididos em duas situações
diferentes: ou estava com Júlia ou estava esperando o tempo passar até a hora
de estar com Júlia.
Segundo: não admitir o que sentia era diferente de não saber
o que sentia.
Mateus sabia. Mas, por outro lado, Mateus também sabia que
era possível continuar ignorando o que sentia por mais tempo. Especialmente se conseguisse
não pensar mais naquele beijo no canto da boca, e na esperança e no medo que
ele trazia.
(Conclui aqui)
7 leitores:
Prendi a respiração ali no início e ela só voltou agora. Deu aquele frio na barriga que não sentia faz tempo. =)
Cara, chega a doer ler isso.
Cuidado com como você vai terminar isso.
Acho que eu, quero dizer, o Mateus não aguentaria a rejeição.
Ansiosa pelo final.
Rob, vou te dar um soco.
Você nem imagina como estou sofrendo com essa história.
Tô com dó do Mateus. Como disseram ali em cima, vê lá o que vai fazer com o menino...
Tô sofrendo...
Cara muito bom, parabéns !
só espero que o Matheus consiga coragem e não seja rejeitado .... hehe.
muito bom continue assim .....
"A garota se aproximou com seu cheiro doce."
Não sei exatamente ql o cheira da Júlia, mas sei qual é a sensação de sentir esse cheiro doce, e lendo este trecho uma pessoa me veio a mente e consegui sentir aquele cheiro denovo :)
Postar um comentário