I
Estava andando em uma floresta, junto com outras três
pessoas.
À frente do grupo, um velho caminhava com dificuldade. Sua
barba branca mal feita não disfarçava as rugas de cansaço que marcavam seu
rosto. Apoiava-se num cajado para manter o equilíbrio e, vez ou outra,
tropeçava em uma pedra, resmungando.
Atrás do velho seguia uma mulher com algo em torno de 30
anos. Seus cabelos acumulavam folhas e galhos, como se ela estivesse há anos
caminhando por aquela trilha – suas roupas, rasgadas e puídas, não desmentiam
esta ideia. Apesar da aparência cansada, seus olhos mantinham aquele brilho
típico das pessoas que têm certeza de que possuem mais futuro que passado, e
que a vida ainda encontrará um modo de dar certo.
Atrás dele, uma criança com ar assustado. Não devia ter mais
do que cinco anos, talvez seis, e olhava ao redor como um coelho sentindo a
presença de predadores por perto. Caminhava com dificuldade para conseguir
manter o passo do resto do grupo, mas invariavelmente acaba ficando para trás,
precisando correr alguns metros para alcançá-los.
Ele era o terceiro do grupo. E não fazia ideia de como havia
chegado ali.
II
Enquanto caminhavam, o silêncio era quebrado somente por
eventuais resmungos do velho. No mais, tudo era surpreendentemente quieto, como
se a floresta não estivesse morta. Ou não existisse.
Em fila indiana, eles caminhavam de forma determinada, rumo
a uma direção que ele não soube precisar. Olhou para o alto em busca do Sol,
mas a copa das árvores impedia sua visão. Não sabia que horas eram, para onde
seguiam ou de onde haviam partido.
Não fazia ideia de que lugar era aquele, de quem eram
aquelas pessoas, ou de como havia parado ali. Num momento, estava andando pela
floresta no meio daquelas pessoas. Mas, no momento anterior, lembrava-se de
estar... No momento anterior, estava...
No momento anterior não havia nada.
Forçou a memória e tentou se lembrar do que estava fazendo
antes de surgir no meio da floresta, mas suas lembranças eram um vazio quase
dolorido, ocupado somente por alguns flashes de imagens que brilhavam aqui e
ali, mas pareciam não se encaixar uns com os outros de forma alguma.
Desconcentrou-se quando ouviu um grito baixinho atrás de si.
Interrompeu o passo e ajudou a criança, que havia tropeçado em uma pedra, a
levantar-se. O menino sorriu para ele e pôs-se de pé. Teve a vaga sensação de
já ter visto esta cena antes, mas o pensamento escapou de sua mente antes de se
tornar certeza.
Em silêncio, os quatro continuaram caminhando.
III
O velho liderava o grupo com determinação, apesar da
dificuldade em caminhar. Jamais olhava para trás. O tempo todo parecia ter a
certeza de que os outros estavam acompanhando. A única vez em que ele parou foi
quando chegaram a um ponto onde a trilha se dividia em duas. O velho parou
poucos passos antes da bifurcação e todos os outros o imitaram.
Em silêncio e sem olhar para os outros, observou os dois
caminhos por alguns instantes e, de repente, jogou o cajado para o alto com uma
força que parecia não possuir. O pedaço retorcido de madeira subiu alguns
metros, até perder cada velocidade e ficar praticamente parado no ar por um
breve momento, antes de começar a cair.
O velho acompanhava tudo em silêncio. E, ainda sem dizer
palavra alguma, observou o pau que usava como apoio cair no chão, próximo à
trilha da direita. Abaixou-se com dificuldade, apanhou o cajado e deu os
primeiros passos pelo caminho da direita.
Todos os outros o seguiram.
IV
Andavam por horas, sem parar para descansar.
Sentia o suor escorrendo pelo seu próprio corpo. Suas
roupas, que não indicavam nada de especial sobre quem ele era ou como havia
chegado ali, começavam a perder a guerra com a floresta. As pernas de sua calça
já estavam cobertas por espinhos que se agarraram a ele durante a caminhada e
uma das mangas de sua camisa já havia rasgado, depois que ele se enroscou em um
galho.
Chegou a perguntar vez ou outra para onde iam, mas foi
ignorado pelos demais e acabou desistindo de entender. Mesmo porque, sentia que
precisavam continuar andando, mesmo sem saber quem eram aquelas pessoas ou o
que estava fazendo ali. E, mais importante, qual era o destino ou o propósito
da caminhada.
Em alguns momentos, olhava ao redor e suspeitava de que já
haviam passado por aquele local. As árvores ao redor da trilha e as pedras e
folhagens no chão começaram a parecer todas iguais. Mas, quando prestava
atenção, encontrava sempre um detalhe diferente do que se lembrava, lhe dizendo
que era apenas impressão. Não estavam andando em círculos, mas a floresta
estava tentando lhes pregar peças.
Caminharam por horas. Ou dias. Não sabia precisar. A luz não
atravessava as árvores e o silêncio dos pássaros tornava impossível precisar se
era dia ou noite.
Mas, se tivesse que apostar, apostaria que era noite o tempo
inteiro.
V
Andaram floresta adentro por dias que pareciam meses.
Não trocavam uma palavra. O velho liderava, a mulher o
seguia. Atrás dele, a criança corria para alcançá-los, quando ficava muito para
trás.
Começou a detestar tudo aquilo. Aos poucos, o silêncio do
velho começou a ser arrogante, e a submissão da mulher lhe pareceu idiotice. Só
não era mais idiota que a criança ficando para trás o tempo todo. Com o suor
escorrendo pela face e a sede estrangulando a garganta, começou a ter visões.
Primeiro, tomaria à frente do grupo e os lideraria. Já que
não iam para lugar algum, não faria diferença quem guiaria o grupo. Empurraria
o velho de lado e assumiria a liderança do grupo. E se a criança ficasse para
trás, problema dela. Os outros que tomassem conta do menino.
Esfregou o rosto molhado e observou o velho. Tomaria o
cajado para si e se tornaria líder do grupo. Era de longe o mais forte, e não
fora feito para seguir. Não era fraco. E a primeira coisa que faria ao colocar
as mãos no cajado seria interromper a caminhada. Montariam acampamento e
descansariam por um tempo. Iriam atrás de água e caçariam algum animal, porque
toda floresta tem um animal esperando para ser caçado. Mandaria o velho acender uma fogueira e a
criança buscar água. Sairia para caçar. A mulher prepararia o jantar. E a maior
porção seria a dele. Mesmo que os outros passassem fome.
Era o líder. Era justo.
O suor escorria pela sua testa. Daria tudo por um gole de
água.
VI
Os outros não pareciam transpirar nem sentir cansaço ou
sede.
Somente ele.
Por três ou quatro vezes, perguntou se poderiam descansar um
pouco, mas foi ignorado pelos outros. Detestava aquelas pessoas, detestava
aquela floresta. Não fazia ideia de onde estava, mas tinha certeza de que
queria estar em outro lugar. Em casa, provavelmente. Não se lembrava de ter uma
casa ou de como ela seria, mas certamente ele deveria ter uma casa. Todo mundo
tem uma casa.
Olhou ao redor e estudou a floresta mais uma vez. Se
soubesse onde estava, poderia deixar aquelas pessoas para trás e ir embora para
casa. Precisava apenas saber qual direção seguir, e aqueles três que ficassem
com sua floresta imbecil.
A sede apertou ainda mais e, com a voz raspando na garganta
seca, perguntou mais uma vez se podiam parar um pouco. Foi ignorado mais uma
vez.
Seus planos começaram a se materializar novamente na cabeça.
Não iria mais assumir a liderança do grupo. No que dependesse dele, aquelas três
pessoas podiam morrer naquela floresta, de fome, sede ou de exaustão.
Tudo o que ele precisava era de um pequeno desvio no
caminho. Ficaria parado, esperando para ver por qual caminho eles seguiriam e
iria pelo outro. Sozinho. O problema é que desde o desvio em que o velho jogara
o bastão para o alto, não haviam passado por nenhuma outra bifurcação. A
floresta era fechada demais.
Bateu com força no rosto molhado para matar um mosquito e
abandonou a ideia. Só existiam dois caminhos: para frente ou para trás. Virou a
cabeça rapidamente e olhou além da criança. Foi quando percebeu que poucos
metros atrás deles, a floresta estava totalmente fechada, sem o menor sinal da trilha
pelo qual haviam passado segundos antes. Era como se eles nunca tivessem andado
ali. Era como se ninguém nunca tivesse andado ali.
Certo de que estava vendo coisas, colocou a culpa na sede. Esperou
mais alguns momentos e olhou novamente para trás. Viu a criança andando apressada
poucos metros atrás dele. E, além dela, árvores e plantas fechavam o caminho,
tornando impossível voltar por onde vinham.
Não era ilusão. A floresta estava se fechando.
Só havia um caminho: à frente.
Deu um tapa no próprio rosto mais uma vez e tentou espantar
o mosquito que grudava no seu suor. Odiava aquela floresta, odiava aquelas
pessoas, odiava tudo.
VII
Horas ou dias depois, encontraram uma nova bifurcação.
Já fazia tempo que ele ouvia barulho de água ao redor deles,
como se estivessem próximos de um rio. Isso o animou um pouco, mas logo
descobriu que a proximidade com a água atraía ainda mais mosquitos. E nunca
chegavam ao rio. Sua garganta implorava por uma gota, mas o barulho parecia
mudar de lugar. Às vezes vinha da direita, às vezes da esquerda. Em alguns
momentos, tinha certeza de que vinha de todos os lados.
À frente do desvio, o velho parou e observou o caminho, se
preparando para jogar o cajado para o alto. Todos assistiram o pau subir,
flutuar no ar e começar a descer.
É agora. Eu preciso desse cajado.
Andou alguns passos para frente, para apanhar o cajado antes
que ele caísse – e antes do velho. Iria pegar o pedaço de pau e reclamar para
si a liderança do grupo. Expulsaria todos da floresta. Obrigaria todos eles a
lhe obedecerem, ou os expulsaria da trilha. Tudo o que precisava era do cajado.
Do cajado e de um pouco de água. Mais nada.
Deu dois passos para frente e se aproximou do velho. Mas não
conseguiu apanhar o cajado pois, no meio do passo, a mulher segurou seu braço e
impediu que ele avançasse.
Foi quando ele perdeu o controle.
Tinha certeza de que a mulher estava rindo dele. Toda a sede,
o ódio, o cansaço de andar naquela merda de floresta com aquelas pessoas, o
fato de não saber o que estavam fazendo ali explodiram dentro de si. Tinha
certeza de que todos estavam rindo dele. Suado, fraco, faminto, exausto,
explodiu.
E tudo – as pessoas, a floresta, o chão – ficou vermelho.
Vermelho sangue.
VIII
Estava de joelhos quando voltou a si.
O mundo não era mais vermelho e havia voltado à sua cor
normal. As únicas coisas que permaneciam vermelhas eram a pedra na sua mão e a
cabeça da mulher – ou o que havia sobrado dela – deitada à sua frente.
Largou a pedra no chão com nojo e olhou suas próprias mãos.
Estavam cobertas de sangue. Sentiu um gosto salgado em seus lábios e percebeu
que seu rosto também estava vermelho-sangue.
- Demorou mais que o normal, desta vez.
Olhou na direção e deu de cara com o velho. Ele estava
sentado em uma pedra, segurando o cajado. A criança estava em pé ao seu lado.
Ambos olhavam para ele ignorando o corpo destroçado da mulher no chão. Era como
se o cadáver fosse parte da floresta. Sem demonstrar emoção alguma, o velho
continuou:
- Mas nós sabíamos que você iria matá-la. Você sempre faz
isso.
Esfregando o sangue das mãos, levantou-se e olhou para o
corpo da mulher. Não sabia como começar a colocar em palavras o que não
entendia. Mesmo porque não entendia nada do que estava sendo falado. Chegou a
imaginar que estava caído na floresta, com febre e delirando, mas o sangue em
suas mãos lhe mostrava que aquilo não era sua imaginação.
- Sempre? Como assim, sempre? Quem são vocês?
- Nós estamos há anos andando nesta floresta. E você sempre
mata esta mulher. Às vezes demora mais, às vezes você menos. Nós já vimos você
afogá-la, golpeá-la com paus ou pedras. Já a vimos morrer estrangulada por suas
próprias mãos. Não importa o método. Você sempre a mata. É só o que você sabe
fazer.
De repente, tudo ficou claro. A lembrança de não ter
dinheiro, e da proposta de assaltar o banco. A garantia de que nada aconteceria
de errado, que se estilhaçou no momento em que a mulher reagiu. Era a mulher da
floresta. Podia ver claramente. O dedo apertando o gatilho, o barulho do
disparo machucando seus ouvidos, a mulher caindo ensanguentada aos seus pés.
Usava vermelho e tinha uma aliança na mão esquerda. E estava morta. Foi com a
imagem da aliança na memória que foi preso e julgado. Foi com o barulho do tiro
ecoando nos ouvidos que foi jogado numa prisão para ser esquecido para sempre.
- Eu matei esta mulher, ele disse mais para si mesmo do que
para os outros.
- Sim. E é por isso que estamos aqui. Já andamos nesta
floresta centenas de vezes e andaremos por outras centenas. E, em todas elas,
você só entenderá porque estamos aqui quando matar a mulher. Porque você sempre
mata a mulher. De um jeito ou de outro. Em breve, nos começaremos outra
caminhada. E você não entenderá nada até tirar mais uma vez a vida dela. E
assim será até decidirem o contrário.
- Até quem decidir o contrário?
O velho e o menino não responderam.
- Até quem decidir o contrário? Quem são vocês?
O velho respirou fundo e apoiando-se no cajado, levantou-se.
- Nós? Nós somos você. Eu sou você. Ou melhor, sou o homem que
você nunca chegou a ser. Sou um velho em paz consigo mesmo. Algo que você nunca
será. Sou um homem que você nunca vai alcançar. E este garoto – o velho colocou
a mão sobre a cabeça do menino – também é você. Este garoto é a criança que
você foi um dia. Uma criança que tinha tudo para se tornar um homem feliz, até
que você decidiu estragar tudo. Uma criança que você abandonou totalmente atrás
de si, e que nunca mais conseguirá lhe alcançar.
O homem não soube quando percebeu que o velho tinha razão.
Estava olhando duas versões de si próprio: uma era ele na infância; outro era
um homem que ele não conhecia, mas que inegavelmente era uma versão sua
envelhecida.
- E agora nós vamos começar de novo a caminhar. E você vai
matá-la novamente. E assim será para sempre.
O homem deu um passo à frente.
- Para sempre? Por que vocês dois não pegam esta pedra e não
me matam logo de uma vez?
Desta vez, foi a vez do garoto responder:
- Matar? Você ainda não entendeu? É somente por causa disso
que estamos aqui.
Um flash brilhou na mente do homem. A imagem de presos
acordando e saindo de sua cela. Menos ele, que permanecia deitado em seu catre,
olhos abertos e uma mancha de sangue nas costas, indicando o local da
punhalada. Provavelmente, morto por causa de um cigarro, de uma sobremesa ou
apenas por ter olhado torto para alguém.
Ele já estava morto. Ele havia morrido há anos.
Abriu os olhos e tudo havia desaparecido da sua frente.
IX
Estava andando em uma floresta, junto com outras três
pessoas.
À frente do grupo, um velho caminhava com dificuldade. Atrás
dele, seguia uma mulher com algo em torno de 30 anos. Por último, uma criança
com ar assustado.
Ele era o terceiro do grupo.
Algo naquilo tudo lhe parecia estranhamente familiar. Mas
não fazia ideia de como havia chegado ali.
1 leitores:
Se a intenção do texto era provocar agonia e desconforto, parabéns, conseguiste. Confesso que não sou muito fã do gênero, mas gostei da experiência.
Abraço
Larissa
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