1 de julho de 2013

Caminhada



I
Estava andando em uma floresta, junto com outras três pessoas.

À frente do grupo, um velho caminhava com dificuldade. Sua barba branca mal feita não disfarçava as rugas de cansaço que marcavam seu rosto. Apoiava-se num cajado para manter o equilíbrio e, vez ou outra, tropeçava em uma pedra, resmungando.

Atrás do velho seguia uma mulher com algo em torno de 30 anos. Seus cabelos acumulavam folhas e galhos, como se ela estivesse há anos caminhando por aquela trilha – suas roupas, rasgadas e puídas, não desmentiam esta ideia. Apesar da aparência cansada, seus olhos mantinham aquele brilho típico das pessoas que têm certeza de que possuem mais futuro que passado, e que a vida ainda encontrará um modo de dar certo.

Atrás dele, uma criança com ar assustado. Não devia ter mais do que cinco anos, talvez seis, e olhava ao redor como um coelho sentindo a presença de predadores por perto. Caminhava com dificuldade para conseguir manter o passo do resto do grupo, mas invariavelmente acaba ficando para trás, precisando correr alguns metros para alcançá-los.

Ele era o terceiro do grupo. E não fazia ideia de como havia chegado ali.


II
Enquanto caminhavam, o silêncio era quebrado somente por eventuais resmungos do velho. No mais, tudo era surpreendentemente quieto, como se a floresta não estivesse morta. Ou não existisse.

Em fila indiana, eles caminhavam de forma determinada, rumo a uma direção que ele não soube precisar. Olhou para o alto em busca do Sol, mas a copa das árvores impedia sua visão. Não sabia que horas eram, para onde seguiam ou de onde haviam partido.

Não fazia ideia de que lugar era aquele, de quem eram aquelas pessoas, ou de como havia parado ali. Num momento, estava andando pela floresta no meio daquelas pessoas. Mas, no momento anterior, lembrava-se de estar... No momento anterior, estava...

No momento anterior não havia nada.

Forçou a memória e tentou se lembrar do que estava fazendo antes de surgir no meio da floresta, mas suas lembranças eram um vazio quase dolorido, ocupado somente por alguns flashes de imagens que brilhavam aqui e ali, mas pareciam não se encaixar uns com os outros de forma alguma.

Desconcentrou-se quando ouviu um grito baixinho atrás de si. Interrompeu o passo e ajudou a criança, que havia tropeçado em uma pedra, a levantar-se. O menino sorriu para ele e pôs-se de pé. Teve a vaga sensação de já ter visto esta cena antes, mas o pensamento escapou de sua mente antes de se tornar certeza.

Em silêncio, os quatro continuaram caminhando.


III
O velho liderava o grupo com determinação, apesar da dificuldade em caminhar. Jamais olhava para trás. O tempo todo parecia ter a certeza de que os outros estavam acompanhando. A única vez em que ele parou foi quando chegaram a um ponto onde a trilha se dividia em duas. O velho parou poucos passos antes da bifurcação e todos os outros o imitaram.

Em silêncio e sem olhar para os outros, observou os dois caminhos por alguns instantes e, de repente, jogou o cajado para o alto com uma força que parecia não possuir. O pedaço retorcido de madeira subiu alguns metros, até perder cada velocidade e ficar praticamente parado no ar por um breve momento, antes de começar a cair.

O velho acompanhava tudo em silêncio. E, ainda sem dizer palavra alguma, observou o pau que usava como apoio cair no chão, próximo à trilha da direita. Abaixou-se com dificuldade, apanhou o cajado e deu os primeiros passos pelo caminho da direita.

Todos os outros o seguiram.


IV
Andavam por horas, sem parar para descansar.

Sentia o suor escorrendo pelo seu próprio corpo. Suas roupas, que não indicavam nada de especial sobre quem ele era ou como havia chegado ali, começavam a perder a guerra com a floresta. As pernas de sua calça já estavam cobertas por espinhos que se agarraram a ele durante a caminhada e uma das mangas de sua camisa já havia rasgado, depois que ele se enroscou em um galho.

Chegou a perguntar vez ou outra para onde iam, mas foi ignorado pelos demais e acabou desistindo de entender. Mesmo porque, sentia que precisavam continuar andando, mesmo sem saber quem eram aquelas pessoas ou o que estava fazendo ali. E, mais importante, qual era o destino ou o propósito da caminhada.

Em alguns momentos, olhava ao redor e suspeitava de que já haviam passado por aquele local. As árvores ao redor da trilha e as pedras e folhagens no chão começaram a parecer todas iguais. Mas, quando prestava atenção, encontrava sempre um detalhe diferente do que se lembrava, lhe dizendo que era apenas impressão. Não estavam andando em círculos, mas a floresta estava tentando lhes pregar peças.

Caminharam por horas. Ou dias. Não sabia precisar. A luz não atravessava as árvores e o silêncio dos pássaros tornava impossível precisar se era dia ou noite.

Mas, se tivesse que apostar, apostaria que era noite o tempo inteiro.


V
Andaram floresta adentro por dias que pareciam meses.

Não trocavam uma palavra. O velho liderava, a mulher o seguia. Atrás dele, a criança corria para alcançá-los, quando ficava muito para trás.

Começou a detestar tudo aquilo. Aos poucos, o silêncio do velho começou a ser arrogante, e a submissão da mulher lhe pareceu idiotice. Só não era mais idiota que a criança ficando para trás o tempo todo. Com o suor escorrendo pela face e a sede estrangulando a garganta, começou a ter visões.

Primeiro, tomaria à frente do grupo e os lideraria. Já que não iam para lugar algum, não faria diferença quem guiaria o grupo. Empurraria o velho de lado e assumiria a liderança do grupo. E se a criança ficasse para trás, problema dela. Os outros que tomassem conta do menino.

Esfregou o rosto molhado e observou o velho. Tomaria o cajado para si e se tornaria líder do grupo. Era de longe o mais forte, e não fora feito para seguir. Não era fraco. E a primeira coisa que faria ao colocar as mãos no cajado seria interromper a caminhada. Montariam acampamento e descansariam por um tempo. Iriam atrás de água e caçariam algum animal, porque toda floresta tem um animal esperando para ser caçado.  Mandaria o velho acender uma fogueira e a criança buscar água. Sairia para caçar. A mulher prepararia o jantar. E a maior porção seria a dele. Mesmo que os outros passassem fome.

Era o líder. Era justo.

O suor escorria pela sua testa. Daria tudo por um gole de água.


VI
Os outros não pareciam transpirar nem sentir cansaço ou sede.

Somente ele.

Por três ou quatro vezes, perguntou se poderiam descansar um pouco, mas foi ignorado pelos outros. Detestava aquelas pessoas, detestava aquela floresta. Não fazia ideia de onde estava, mas tinha certeza de que queria estar em outro lugar. Em casa, provavelmente. Não se lembrava de ter uma casa ou de como ela seria, mas certamente ele deveria ter uma casa. Todo mundo tem uma casa.

Olhou ao redor e estudou a floresta mais uma vez. Se soubesse onde estava, poderia deixar aquelas pessoas para trás e ir embora para casa. Precisava apenas saber qual direção seguir, e aqueles três que ficassem com sua floresta imbecil.

A sede apertou ainda mais e, com a voz raspando na garganta seca, perguntou mais uma vez se podiam parar um pouco. Foi ignorado mais uma vez.

Seus planos começaram a se materializar novamente na cabeça. Não iria mais assumir a liderança do grupo. No que dependesse dele, aquelas três pessoas podiam morrer naquela floresta, de fome, sede ou de exaustão.

Tudo o que ele precisava era de um pequeno desvio no caminho. Ficaria parado, esperando para ver por qual caminho eles seguiriam e iria pelo outro. Sozinho. O problema é que desde o desvio em que o velho jogara o bastão para o alto, não haviam passado por nenhuma outra bifurcação. A floresta era fechada demais.

Bateu com força no rosto molhado para matar um mosquito e abandonou a ideia. Só existiam dois caminhos: para frente ou para trás. Virou a cabeça rapidamente e olhou além da criança. Foi quando percebeu que poucos metros atrás deles, a floresta estava totalmente fechada, sem o menor sinal da trilha pelo qual haviam passado segundos antes. Era como se eles nunca tivessem andado ali. Era como se ninguém nunca tivesse andado ali.

Certo de que estava vendo coisas, colocou a culpa na sede. Esperou mais alguns momentos e olhou novamente para trás. Viu a criança andando apressada poucos metros atrás dele. E, além dela, árvores e plantas fechavam o caminho, tornando impossível voltar por onde vinham.

Não era ilusão. A floresta estava se fechando.

Só havia um caminho: à frente.

Deu um tapa no próprio rosto mais uma vez e tentou espantar o mosquito que grudava no seu suor. Odiava aquela floresta, odiava aquelas pessoas, odiava tudo.


VII
Horas ou dias depois, encontraram uma nova bifurcação.

Já fazia tempo que ele ouvia barulho de água ao redor deles, como se estivessem próximos de um rio. Isso o animou um pouco, mas logo descobriu que a proximidade com a água atraía ainda mais mosquitos. E nunca chegavam ao rio. Sua garganta implorava por uma gota, mas o barulho parecia mudar de lugar. Às vezes vinha da direita, às vezes da esquerda. Em alguns momentos, tinha certeza de que vinha de todos os lados.

À frente do desvio, o velho parou e observou o caminho, se preparando para jogar o cajado para o alto. Todos assistiram o pau subir, flutuar no ar e começar a descer.

É agora. Eu preciso desse cajado.

Andou alguns passos para frente, para apanhar o cajado antes que ele caísse – e antes do velho. Iria pegar o pedaço de pau e reclamar para si a liderança do grupo. Expulsaria todos da floresta. Obrigaria todos eles a lhe obedecerem, ou os expulsaria da trilha. Tudo o que precisava era do cajado. Do cajado e de um pouco de água. Mais nada.

Deu dois passos para frente e se aproximou do velho. Mas não conseguiu apanhar o cajado pois, no meio do passo, a mulher segurou seu braço e impediu que ele avançasse.

Foi quando ele perdeu o controle.

Tinha certeza de que a mulher estava rindo dele. Toda a sede, o ódio, o cansaço de andar naquela merda de floresta com aquelas pessoas, o fato de não saber o que estavam fazendo ali explodiram dentro de si. Tinha certeza de que todos estavam rindo dele. Suado, fraco, faminto, exausto, explodiu.

E tudo – as pessoas, a floresta, o chão – ficou vermelho.

Vermelho sangue.


VIII
Estava de joelhos quando voltou a si.

O mundo não era mais vermelho e havia voltado à sua cor normal. As únicas coisas que permaneciam vermelhas eram a pedra na sua mão e a cabeça da mulher – ou o que havia sobrado dela – deitada à sua frente.

Largou a pedra no chão com nojo e olhou suas próprias mãos. Estavam cobertas de sangue. Sentiu um gosto salgado em seus lábios e percebeu que seu rosto também estava vermelho-sangue.

- Demorou mais que o normal, desta vez.

Olhou na direção e deu de cara com o velho. Ele estava sentado em uma pedra, segurando o cajado. A criança estava em pé ao seu lado. Ambos olhavam para ele ignorando o corpo destroçado da mulher no chão. Era como se o cadáver fosse parte da floresta. Sem demonstrar emoção alguma, o velho continuou:

- Mas nós sabíamos que você iria matá-la. Você sempre faz isso.

Esfregando o sangue das mãos, levantou-se e olhou para o corpo da mulher. Não sabia como começar a colocar em palavras o que não entendia. Mesmo porque não entendia nada do que estava sendo falado. Chegou a imaginar que estava caído na floresta, com febre e delirando, mas o sangue em suas mãos lhe mostrava que aquilo não era sua imaginação.

- Sempre? Como assim, sempre? Quem são vocês?

- Nós estamos há anos andando nesta floresta. E você sempre mata esta mulher. Às vezes demora mais, às vezes você menos. Nós já vimos você afogá-la, golpeá-la com paus ou pedras. Já a vimos morrer estrangulada por suas próprias mãos. Não importa o método. Você sempre a mata. É só o que você sabe fazer.

De repente, tudo ficou claro. A lembrança de não ter dinheiro, e da proposta de assaltar o banco. A garantia de que nada aconteceria de errado, que se estilhaçou no momento em que a mulher reagiu. Era a mulher da floresta. Podia ver claramente. O dedo apertando o gatilho, o barulho do disparo machucando seus ouvidos, a mulher caindo ensanguentada aos seus pés. Usava vermelho e tinha uma aliança na mão esquerda. E estava morta. Foi com a imagem da aliança na memória que foi preso e julgado. Foi com o barulho do tiro ecoando nos ouvidos que foi jogado numa prisão para ser esquecido para sempre.

- Eu matei esta mulher, ele disse mais para si mesmo do que para os outros.

- Sim. E é por isso que estamos aqui. Já andamos nesta floresta centenas de vezes e andaremos por outras centenas. E, em todas elas, você só entenderá porque estamos aqui quando matar a mulher. Porque você sempre mata a mulher. De um jeito ou de outro. Em breve, nos começaremos outra caminhada. E você não entenderá nada até tirar mais uma vez a vida dela. E assim será até decidirem o contrário.

- Até quem decidir o contrário?

O velho e o menino não responderam.

- Até quem decidir o contrário? Quem são vocês?

O velho respirou fundo e apoiando-se no cajado, levantou-se.
- Nós? Nós somos você. Eu sou você. Ou melhor, sou o homem que você nunca chegou a ser. Sou um velho em paz consigo mesmo. Algo que você nunca será. Sou um homem que você nunca vai alcançar. E este garoto – o velho colocou a mão sobre a cabeça do menino – também é você. Este garoto é a criança que você foi um dia. Uma criança que tinha tudo para se tornar um homem feliz, até que você decidiu estragar tudo. Uma criança que você abandonou totalmente atrás de si, e que nunca mais conseguirá lhe alcançar.

O homem não soube quando percebeu que o velho tinha razão. Estava olhando duas versões de si próprio: uma era ele na infância; outro era um homem que ele não conhecia, mas que inegavelmente era uma versão sua envelhecida.

- E agora nós vamos começar de novo a caminhar. E você vai matá-la novamente. E assim será para sempre.

O homem deu um passo à frente.

- Para sempre? Por que vocês dois não pegam esta pedra e não me matam logo de uma vez?

Desta vez, foi a vez do garoto responder:

- Matar? Você ainda não entendeu? É somente por causa disso que estamos aqui.

Um flash brilhou na mente do homem. A imagem de presos acordando e saindo de sua cela. Menos ele, que permanecia deitado em seu catre, olhos abertos e uma mancha de sangue nas costas, indicando o local da punhalada. Provavelmente, morto por causa de um cigarro, de uma sobremesa ou apenas por ter olhado torto para alguém.

Ele já estava morto. Ele havia morrido há anos.

Abriu os olhos e tudo havia desaparecido da sua frente.


IX
Estava andando em uma floresta, junto com outras três pessoas.

À frente do grupo, um velho caminhava com dificuldade. Atrás dele, seguia uma mulher com algo em torno de 30 anos. Por último, uma criança com ar assustado.

Ele era o terceiro do grupo.

Algo naquilo tudo lhe parecia estranhamente familiar. Mas não fazia ideia de como havia chegado ali.

1 leitores:

Larissa disse...

Se a intenção do texto era provocar agonia e desconforto, parabéns, conseguiste. Confesso que não sou muito fã do gênero, mas gostei da experiência.
Abraço
Larissa

 

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