6 de janeiro de 2011

Danos Morais

Caminhando silenciosamente, o advogado entrou no castelo. O local aparentemente havia sido construído há séculos – e provavelmente não via uma faxina pelo mesmo tempo. Teias de aranha recobriam os tetos do amplo salão.

No meio do salão, havia uma escada. No meio da escada, um homem. Era alto e magro, com cabelos negros. Sua roupa também era preta, com exceção do interior de sua capa, totalmente vermelho. Mas o que chamou a atenção do advogado não foi o fato de o sujeito usar capa, e sim sua pele, branca como uma folha de papel.

Sem fazer um ruído sequer, como se estivesse flutuando desceu os degraus, estendendo a mão ao visitante.

– Doutor Freitas?

– Às suas ordens.

– Obrigado por me visitar no início da noite. Eu realmente não poderia tê-lo atendido durante o dia.

– Não tem problema, respondeu o advogado. É um prazer.

– Obrigado. Pode me acompanhar até meu escritório?

– Claro.

O homem de capa saiu flutuando e o advogado foi atrás. Poucos segundos depois, entraram numa sala grande e escura, iluminada somente por alguns poucos castiçais escurecidos. As paredes eram forradas de livros e pergaminhos antiqüíssimos. A exceção era a parede oposta à porta, onde próximo a uma janela suja, havia um mapa amarelado da região emoldurado. Num canto, havia um globo, mas somente com metade do planeta. Nada da América.

O dono da casa se sentou na ponta de uma mesa feita de madeira envelhecida. Sobre a mesa, apenas uma garrafa e uma taça.

– Aceita vinho?

– Sim obrigado, senhor...?

– Vlad.

– Vlad... Vlad de Vladimir?

– Não. Apenas Vlad.

– Estou vendo apenas uma taça. O senhor não me acompanhará?

– Não. Eu nunca bebo... Vinho. Obrigado.

Enquanto o advogado dava os primeiros goles na taça, um cão latiu na rua. Provavelmente, era o mesmo vira-latas sarnento que havia perseguido sua carruagem até o castelo. O homem de preto ergueu os olhos e ouviu atentamente.

– Ah! As crianças da noite! Que música eles fazem!

O advogado deu um gole no vinho e olhou o homem cuidadosamente. De perto, ele parecia ainda mais branco.

– Bem... Em que posso ajudá-lo?

– Eu gostaria de processar editoras de livros e estúdios de cinema por danos morais.

– Como assim?

– Sinto que diversos filmes e livros estão denegrindo minha imagem.

– Não sei se estou entendendo.

O homem branco apoiou os cotovelos nos braços da cadeira e encostou uma mão na outra, à frente do peito, se acomodando melhor.

– O senhor gosta de histórias de vampiros?

– Sim. Acho. Faz tempo que não assisto a nenhum filme de vampiros.

– Senhor Freitas, se eu pedir para o senhor pensar em um vampiro... Em quem o senhor pensaria?

– No Drácula, claro.

– Sim... E o primeiro nome do Drácula é...?

– Hum... Drácula... Drácula... Não sei. Desculpe.

– Vlad.

– Vlad? Vlad como... Vladimir?

– Não. Somente Vlad.

– Vlad como... o senhor?

– Exatamente.

O advogado quase engasgou com o vinho, mas conseguiu se controlar. Era durão.

– E o senhor quer processar estas empresas... Por danos morais?

– Isso. Outro dia, Reinfeld apareceu no meu castelo com diversos livros que encontrou numa livraria.

– Renfield?

– Meu assistente. Aparentemente, os vampiros estão em moda novamente.

– Sim, por causa dos filmes da série...

– Eu não quero ouvir este nome! Deixe-me continuar, por favor?

– Claro.

– Nunca foram publicados tanto livros sobre vampiros. E é um pior que o outro. Vampiros apaixonados. Vampiros sentimentais. Vampiros preocupados com a natureza e com as causas sociais.

– Sim, sim. Isso vende como água hoje.

– Até mesmo alguns com meu nome. Drácula – Ano Um. Drácula vai à Fazenda. O Cachorrinho Samba encontra Drácula.

– Esses eu não conheço, respondeu o advogado.

– Cachorrinho Samba? Daqui a pouco eu vou estrelar livros da Coleção Vaga-Lume! Eu sou um membro da Ordem do Dragão! Príncipe dos Cárpatos! Vlad, o Empalador! Eu não posso admitir isso!

– Mas o senhor tentou fazer algo a respeito antes de vir me consultar?

– Liguei para os herdeiros do irlandês que escreveu meu livro.

– Bram Stoker?

– Isso. Queria saber se não poderíamos mover uma ação. Nem me atenderam, os filhos da puta. Devem estar ganhando rios de dinheiro com isso. E eu, claro, não vejo um centavo.

– Mas o senhor é um vampiro, porque precisa de dinheiro?

– Você faz ideia de quanto custa manter este castelo? Metade das faxineiras que eu contratei está me processando, alegando que é impossível trabalhar ali, que ouvem barulhos durante a noite e que é difícil chegar ao castelo por causa dos penhascos. Se não fosse o Reinfeld, este lugar estaria tomado por insetos.

– Ele quem cuida da limpeza?

– Não exatamente. Na verdade, ele come os insetos. Mas isso mantém o castelo limpo. Enfim, o que quero é ganhar dinheiro, mas não porque preciso dele, mas sim por causa dos danos morais.

– Como assim?

– Não sei se o senhor sabe, já existem cinemas nos Cárpatos.

– Não sabia.

– E a população inteira assistiu aquele filme daquele vampiro.

– O que gosta da menina?

– Isso. O senhor já viu?

– Não. Mas minha filha adora.

– Ele brilha! Ele não morde as pessoas. Tudo bem, tinha aquele filme do Brad Pitt, ele não gostava de morder as pessoas. Mas era o Brad Pitt. Agora, este menino... Ele brilha! Ele sai ao Sol e brilha!

– Sim, eu ouvi dizer.

– O senhor faz ideia do que isso tem feito, especialmente com as novas gerações? Eles acham que todo vampiro brilha!

– E o senhor não brilha?

– Nenhum vampiro brilha! Nenhum! Sabe... Outro dia...

– Sim?

– Tenho até vergonha em dizer... Mas, enfim. Eu estava faminto e me infiltrei em uma pequena aldeia aqui perto. Queria uma garota. Sangue fresco. Me transformei em névoa e me materializei no centro da cidade. Normalmente, as pessoas sairiam correndo ao me encontrarem. Sabe o que aconteceu?

– Não.

– Um grupo de crianças me viu e veio correndo na minha direção, gritando “Um vampiro! Um vampiro!”. Elas não sentiam medo! Pelo contrário, elas me cercaram e deram as mãos. Fiquei no meio da roda. E elas começaram a rodar, comigo no meio. Preciso mesmo continuar?

– Por favor.

– Uma loirinha... Deveria ter uns quatro anos. Se aproximou de mim e começou a cantar “brilha, brilha, estrelinha!”. Eu quase morri de vergonha.

– Deve ter sido constrangedor.

– Eu comecei a gritar que era Vlad, o Empalador e exigia respeito. Nem me ouviram. Tive que fugir dali. Eu não consigo mais trabalhar agora, por causa destes filmes. E os livros? Vampiros apaixonados? Tudo bem, eu sempre fui apaixonado, mas por Mina. E somente ela. Não por uma garota que usa All Star e chora por qualquer coisa.

– Sim, eu me lembro do último filme... Do mesmo cara que fez o Chefão.

– Isso! Aquele sou eu! Um monstro! Tudo bem, no filme eles me deixaram com a cara do Lenine, mas não me senti ofendido. Aquela é a minha essência. Até mesmo naquele filme com o Abbot e Costello... Era uma comédia, mas não me ofendeu. Agora, brilhar ao Sol, feito uma pedrinha preciosa? Jamais! Quero processar a todos!

– Claro. No seu lugar, faria a mesma coisa.

– E não quero que mais nenhum livro ou filme com meu nome seja publicado sem que eu aprove o material.

– Bem... Verei o que posso fazer. Vou entrar em contato com os advogados do estúdio e entrarei em contato com o senhor. Meus honorários são de 20%.

– Obrigado, Senhor Freitas.

Levantou-se, virou as costas e saiu, novamente sem fazer um ruído. O advogado terminou seu vinho, pegou sua pasta e foi embora do castelo.

**************

Três dias depois, o vampiro estava em seu castelo meditando, lendo pergaminhos do século 16. Foi interrompido por Reinfeld, que entrou na sala.

– Mesfre! Mesfre! Fefelone para o fenhor!

– Reinfeld, tire essa mariposa da boca. Que nojo.

– Desculpe. Telefone para o senhor. É o seu advogado.

O vampiro pegou o aparelho e dispensou o criado com um sinal.

– Alô?

– Sr. Vlad? Doutor Freitas aqui. Tenho excelentes notícias.

– Diga.

– Entrei em contato com o estúdio e eles resolveram propor um acordo para o senhor. Estão dispostos a limpar sua imagem e farão um filme sobre o senhor. E o senhor poderá aprovar o roteiro.

– Excelente, Doutor Freitas!

– Mas eles querem que seja uma comédia. Tudo bem?

– Desde que eu possa aprovar o roteiro, sim.

– Mas o senhor terá apenas controle sobre o roteiro. Não poderá interferir com a escolha do elenco ou do diretor.

– Não tem problema.

– Ótimo, porque eles já estão selecionando elenco. Parece que estão quase fechando o papel principal com a Whoopi Goldberg. A idéia deles é fazer uma mistura da sua história com os filmes Mudança de Hábito e...

O vampiro bateu o telefone e deu um grito de raiva.

Dias depois, o advogado desapareceu. Nunca mais foi visto.

O filme já está em produção, para desgosto do vampiro.

14 leitores:

Climão Tahiti disse...

FANTÁSTICO.

Apenas isso.

M. disse...

Chorei de rir na parte do "Cachorrinho Samba"...

littlemarininha disse...

Preciso parar de ler seus contos no trabalho. Começo a rir loucamente e o pessoal acha meio estranho, kkkk
AMEI, de verdade, Rob!
E rolei de rir com o Cachorrinho Samba, e com o "brilha brilha estrelinha" hahahaha
BRILHANTE!

Pri disse...

Lindo, simples assim!

Cristine Martin disse...

Sensacional! Estou aqui rindo sozinha... :-)

Filipe Ribeiro disse...

"Era alto e magro, com cabelos negros. Sua roupa também era preta, com exceção do interior de sua capa, totalmente vermelho."

Só eu lembrei NA HORA do Zé Vampir, da Turma do Penadinho?

A propósito, genial, como sempre.

Ana disse...

Puxa, saudades do Cachorrinho Samba.

Marina disse...

Hhahuahuahuhauahuaahuh!

Morri de rir aqui, Rob. Fantástico.

(Vou dar uma de detalhista agora: se o cara disse "não, obrigado" quando foi oferecido vinho, por que ele acabou bebendo?)

Rob Gordon disse...

Marina:

Aquele "Não, obrigado" escapou na revisão.

Valeu pelo toque, já arrumei!

Rob

Renata disse...

E pensar que eu, na quinta série, aos dez anos, assisti Drácula de Bram Stoker num colégio de freiras durante as aulas de inglês.
Nunca vou esquecer desse dia mágico, e da cena memorável que presenciei: quase 40 pirralhos e um professor correndo de medo de um morcego que estava escondido na sala e deu um vôo rasante na frente da tv, na cena do desfiladeiro.
E as crianças de hoje se divertindo com Crepúsculo...

Alessandra Costa disse...

Cachorrinho Samba? Coleção Vaga-Lume? Brilha, brilha, estrelinha? Que maravilha.
Ainda estou imaginando a cena, pobre Vlad.

Moisés Dalfior disse...

realmente... Brilha, brilha estrelinha...kkkk
quando li Drácula de Stoker, nunca pensei que poderiam acabar com a moral dele!
Um Salve para os vampiros de verdade!

Unknown disse...

hahahaha
Sempre imaginei o quão vergonhoso pro Drácula seria essa coisa de brilhar no sol e outras viadagens.
Adoro seu tom humorístico!

Varotto disse...

CAZZO! "O Cachorrinho Samba encontra Drácula" foi uma das coisas mais engraçadas que você já escreveu!

Seguida de perto pela história do Conde Lenine...

 

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