(leia a primeira parte aqui)
– Que morena do sorriso largo?
– Eu estava numa estalagem italiana, bebendo vinho, o dia em que ela entrou. Morava numa vila ali perto, e entrou para comprar algo. Nunca mais esqueci, ela andava descalça e usava um vestido simples. No momento em que ela olhou para mim e sorriu, eu finalmente percebi o sabor do vinho que eu estava bebendo. Pela primeira vez na vida, me apaixonei.
– Espere... Essa morena nunca existiu?
– Ela sempre existiu. Só que você irá torná-la real no seu livro. Não, no nosso livro. Eu sempre imaginei essa mulher. Sou amante dela há mais de dez anos. Posso descrevê-la como se ela estivesse aqui. Você apenas irá consumar o fato.
– Dr. Couto, isso não é exatamente uma biografia.
– Espere, ouça sobre a morena. Sorriso largo, olhos grandes. Faço questão que você use, em algum momento, uma frase dizendo “que o hálito dela tinha o perfume de maçãs”. Isso está no Cântico dos Cânticos, mas ninguém vai reparar. E fale bastante sobre a inconstância dela.
– Inconstância?
– Sim. Às vezes, ela era toda minha. Fazíamos amor num celeiro lá perto, e esse celeiro virava nosso universo. Às vezes, ela não era minha, mas do mundo e ficava sentada no campo, ao meu lado, horas e horas, olhando as estrelas. De vez em quando, falava o meu nome, baixinho, com sotaque italiano. “Colto, Colto”, carregando o “l”. Isso é um bom começo, não acha? Vamos dos Alpes para o Tibet, do Tibet para a Itália, da Itália para a morena.
– Mas como chama a morena?
– Nunca pensei nisso. Sempre pensei nela como “Ela”.
– Mas nada disso aconteceu!
– Ainda não aconteceu, meu rapaz! Ainda! Você irá tornar tudo realidade. Eu já tentei escrever, mas ficou chato demais, só sei escrever petição. Minha vida está em suas mãos. Torne-a emocionante. Quero que os homens me invejem e as mulheres me desejem. Cansei de ser um advogado. Quero viver de novo, quero outra vida. Mas não dá mais tempo. Então, vou ter que criar uma. A partir do momento que minhas memórias forem publicadas, elas se tornarão as minhas memórias também.
– Mas como o senhor vai da morena para um escritório aqui no Arouche? Por que hoje o senhor está aqui.
– É aí que você entra. Eu sempre paro na morena. “Colto, Colto”. Hum... Quem sabe eu perdi tudo no jogo?
– Mas e a morena? O que aconteceu com ela?
– Nunca mais vi.
– Bem, faz sentido. Afinal, ela não existe.
– Detalhes, meu rapaz. Apenas detalhes perto do que eu e ela tivemos. E está na hora do mundo conhecer nossa história. Minha história, na verdade. Ela é parte importante, mas a história é minha. Mas, a morena... Hum... Podemos dizer que o namorado dela jurou que iria me matar e tive que fugir da Itália. Ela queria ir comigo, mas eu, num ato de nobreza, disse que o lugar dela era ali, com a família. Ainda me lembro dela, no aeroporto, chorando... “Colto, Colto”, ela dizia. Eu quis ficar, mas criei coragem e vim embora. Nunca mais tive notícias dela. Mas nunca a esqueci. E vou dedicar o livro a ela.
– Dr. Colto... Couto, perdão. Eu não sei se posso aceitar esse trabalho. É diferente demais de tudo o que eu fiz.
– São apenas crônicas, rapaz. Mas o personagem de todas elas sou eu.
– Mas o senhor vai vender isso como verdade!
– Não, as pessoas vão comprar achando que é verdade. É diferente!
– Olhe, Dr. Couto, eu acho que vou ter que recusar. Não sou a pessoa mais indicada para esse trabalho.
– Bobagem!, gritou o homem, socando a mesa. É fácil! Basta apenas escrever e preencher as lacunas!
– Bem, entre Alpes e Arouche há uma lacuna bem grande.
– Paolla.
– Quê?
– Paolla. O nome dela. Paolla. O que você acha? Mas com dois “l”. Paolla. Pa-o-lla, ele disse, mexendo a língua no “olla”, como se estivesse saboreando o nome.
– Eu não sei. Eu preciso pensar. Até quando eu posso responder para o senhor?
– O mais rápido possível! Minha história tem que ser escrita rapidamente. Porque, depois, eu vou lançar a versão não-autorizada, com detalhes sórdidos sobre minha passagem pela Austrália e minhas caçadas no Canadá, quando tive que fugir da Polícia Montada.
– De lá para o Arouche?
– Depois pensamos nisso! Quando começamos?
– Eu ligo para o senhor até o final da semana. Fechado?
– Muito bem, meu rapaz. Já vá rabiscando algumas coisas para o nosso próximo encontro.
– Sim, senhor. Eu mando uma amostra para o senhor por e-mail.
– Ótimo. Fico aguardando.
Rafael se levantou, apertou a mão do advogado, que sorria, despedindo-se. Girou nos calcanhares e saiu apressado do escritório, apertando o passo conforme descia as escadas. Quando Couto percebeu que o rapaz não havia seu e-mail, era tarde demais. Ele já havia desaparecido na rua. O advogado voltou para sua sala e deixou-se afundar na cadeira de couro envelhecido. Era o terceiro escritor que recusava sua proposta.
Pegou o porta-retratos e olhou para a foto. Ou para o espaço da foto, já que não tinha retrato nenhum ali, apenas um restinho da cola da etiqueta do preço, arrancada na unha.
– Colto, Colto... disse o homem em voz baixa.
Recolocou o porta-retratos na mesa e pegou o paletó para ir almoçar. Ao menos, o sujeito do bar da esquina acreditava nele. Ou, ao menos, parecia acreditar, já que pedia sempre para ele falar da Itália. Já era um começo, pensou o Dr. Couto, apagando a luz e fechando a porta do escritório.
2 leitores:
O Rafael faz o serviço e o Couto, como bom advogado, processa ele por calúnia! Fez bem em recusar... hehehehehe
Muuuuito bom o conto!
o/
Juro.Pensei que você fosse dizer,que o rapaz ía pegar a idéia,fazer um conto e ganhar muito dinheiro com isso!kkkkk
Muito bom!rs
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