7 de julho de 2014

Débora e a Colômbia

Este texto é o quinto de uma série. A ideia – ambiciosa e sugerida pelo leitor @cmmarcondes – é desenvolver este conto conforme o Brasil avança na Copa. A cada jogo do Brasil, a história ganha um novo desenrolar, um novo capítulo, que não apenas acompanha o desempenho da seleção na Copa, como mostra de que forma cada jogo reflete em seus personagens. E os capítulos são sempre postados antes do jogo seguinte.

Para ler os capítulos – ou jogos anteriores, clique abaixo:




– Onde você vai assistir ao jogo?

A pergunta pegou Débora de surpresa. Havia acabado de acordar e estava tomando café da manhã, quando seu pai entrou na cozinha com o jornal debaixo do braço perguntando sobre o jogo. A garota respondeu apenas que “não sei ainda” e não disse mais nada, torcendo para que o assunto morresse ali. Não queria conversar. Não sobre isso.

Havia passado os últimos dias com medo do jogo.

Não que Débora se importasse muito com futebol. Não acompanhava futebol e conhecia somente os jogadores principais e mais famosos. Mas gostava de Copa do Mundo como qualquer outra pessoa que conhecia e, como qualquer outra pessoa que conhecia, torcia pelo Brasil. Como não entendia do assunto, não ficava palpitando sobre táticas, escalações e jogadores adversários. Apenas assistia aos jogos e comemorava quando o Brasil vencia.

Assim, Débora não estava com medo do jogo ser contra a Colômbia. Não fazia ideia se o time colombiano era forte ou fraco. Nunca havia ouvido falar a respeito da seleção da Colômbia – ela sabia que Alemanha e Argentina eram times fortes porque todos falavam isso – mas seu pai havia dito que era um time perigoso e muito rápido. E que talvez o Brasil não ganhasse.

Débora não estava preocupada com isso. Se o Brasil ganhasse, ficaria feliz. Se o Brasil fosse eliminado, sua vida continuaria normalmente.

Mesmo assim, Débora estava com medo.

Sabia que precisava tomar uma decisão até a hora do jogo.

Não havia pensado sobre outra coisa nos últimos dias.

Os primeiros dias após o jogo contra o Chile foram os mais difíceis. Tentava se concentrar em outras coisas, mas bastava se distrair um pouco para o assunto voltar para sua cabeça. Incomodando. Perturbando. Cutucando.

As noites eram mais fáceis. Sozinha no quarto escuro antes de dormir, o problema parecia menor. Ou mais fácil de ser resolvido. Débora sabia o que tinha que fazer e mentia para si mesma dizendo que iria fazer exatamente isso. Mas, quando acordava de manhã, a dúvida parecia voltar com força total.  À luz do dia, todas as decisões que havia tomado antes de dormir agora pareciam infantis, e ficavam esquecidas no travesseiro até a hora que ela se deitava para dormir.

Porém, com o passar dos dias, o problema apelou para um velho truque muito usado pelos problemas: ele se distanciou. Problemas adoram fazer isso. Fingem que não existem mais ou que estão longe demais para incomodar e ficam em silêncio, num cantinho da mente, esperando o melhor momento para agir.

Como o jogo do Brasil não chegava nunca, Débora criou a falsa sensação que teria pelo menos mais um dia para tomar a decisão com calma. Assim, acabou relaxando e começou a pensar em outras coisas, sempre se enganando e pensando que “depois eu penso naquilo”, enquanto o problema, em silêncio, sorria, sabendo – como todo problema sabe – que o tempo estava a favor dele.

Assim, quando seu pai perguntou onde ela assistiria ao jogo, Débora percebeu que não tinha mais o dia seguinte para tomar uma decisão. O jogo era naquele dia. E Débora não havia decidido nada.

De repente, o problema, que parecia ter desaparecido nos últimos dias, voltou com o triplo do tamanho original. Débora teve a certeza de que se ficasse na cozinha mais alguns minutos, seu pai – ou qualquer pessoa que estivesse perto dela – iria reparar facilmente no nervosismo que ela estava sentido.

Por isso ela respondeu qualquer coisa. Por isso ela terminou rapidamente seu café e disse que iria tomar banho. Por isso ela entrou no seu quarto e fechou a porta – coisa que nunca fazia – e deitou-se um pouco na cama.

Precisava ficar sozinha.

Teve vontade de ligar o computador e ler as notícias para não começar a pensar tudo novamente, mas mudou de ideia antes mesmo de se levantar. Em poucos minutos estaria olhando fotos e mais fotos em busca de uma resposta e sabia que isso não iria ajudar em nada. Não precisava olhar para o passado, precisava olhar para o futuro.

E, ao perceber isso, deixou escapar um sorriso cínico. Alguns meses atrás, Débora jurava que seu futuro estava decidido. Estava começando a decolar em sua carreira e estava feliz, em um namoro estável. Quando pensava em como sua vida seria em cinco, dez ou vinte anos, ela enxergava somente desdobramentos deste cenário. Seu trabalho se transformaria em carreira e seu namoro se tornaria um casamento. Seu caminho estava traçado. Débora tinha certeza disso.

Mas, nas últimas semanas, Débora começou a perceber que as coisas estavam mudando. Seu trabalho estava indo bem, mas havia algo de errado em seu namoro.

Ou melhor, havia algo de errado com ela.

Começara alguns meses atrás, depois de uma briga feia que tiveram. Já haviam brigado antes, mas nunca dessa forma, com gritos e lágrimas. Passaram até mesmo alguns dias sem se falar, coisa que nunca havia acontecido antes – desde o primeiro dia do namoro, se falavam todo dia, pessoalmente ou por telefone. Nunca havia ficado quase uma semana sem ouvir a voz dele.

E foi nesses dias que Débora descobriu que não sentia falta dele. Sentia falta de falar com ele, mas não sentia falta dele.

No começo, acreditou que isso era por causa da raiva que estava sentido pela briga. Mas a raiva passou e a saudade não voltou. Chegou a conversar sobre isso com sua mãe, que respondeu que isso era normal, que Débora não era mais uma menina e que não iria morrer de paixão e saudade o tempo inteiro, que as coisas não precisavam mais ser questões de vida ou morte o tempo inteiro.

(Caso Débora tivesse perguntado para sua mãe se a falta de saudade não era por causa da raiva que sentira, sua mãe teria dito que “se você sentiu raiva dele é porque você não o ama como imagina”. Débora teria, então, perguntado “como assim?” e sua mãe teria emendado que “sabe, Débora, às vezes a gente quer tanto amar alguém só porque parece ser o mais certo a fazer, que acaba imaginando que ama”. Débora, então, perguntaria “como eu vou saber a diferença?” e sua mãe finalizaria a conversa dizendo que “a gente sempre sabe”. Se este diálogo tivesse existido, muitos dos problemas de Débora estariam resolvidos. Mas ele nunca aconteceu fora destes parênteses).

Assim, ela e o namorado acabaram se entendendo normalmente. O namoro voltou ao normal, a rotina voltou ao normal, as conversas voltaram ao normal. Tudo voltou ao normal.

Menos Débora.

Débora, por mais que estivesse feliz com a volta do namoro, passou a ser ver em uma encruzilhada o tempo inteiro.

De um lado, enxergava uma vida sem paixões arrebatadoras como o caminho normal a ser seguido. Mas, do outro lado, via uma vida muito mais intensa, com corações disparados, uma eventual falta de ar, uma saudade que chegava a doer quase fisicamente.

Às vezes, conseguia dizer para si mesma que todas as pessoas do mundo haviam passado por aquela mesma dúvida e que algumas delas haviam escolhido o caminho correto e se tornado adultos – e que as que haviam escolhido a outra opção eram aquelas que viveriam eternamente como adolescentes, pulando de um relacionamento para o outro sem sequer saber direito o que estava procurando.

Sempre que estava ao lado do namorado essa escolha parecia fazer sentido. Pensava no amanhã, fazia planos, compartilhavam alguns sonhos – e Débora conseguia esquecer que não sentia falta dele quando estava sozinha. Pois, quando estava sozinha, Débora não sentia saudade do namorado, mas sim de sentir seu coração disparado. Porém, sempre conseguia enterrar isso em algum lugar dentro de si mesma e conseguia ignorar o que sentia.

Até o dia em que a Copa começou.

Até a hora em que ela foi ao bar.

Até o momento em que ela ficou de frente com o ex-namorado.

Ali seu coração disparou tudo o que não havia disparado em anos. Sempre se perguntou se um dia se reencontrariam, mas nunca imaginou que isso fosse acontecer na porta de um banheiro de um boteco sujo. Pega de surpresa e sem tempo para se preparar, se viu sozinha frente a frente com ele, e o susto fez suas pernas perderem a força e descobriu que tinham tanto o que conversar que Débora não sabia nem como começar.

Mas, quando alguém o empurrou e ele acabou se aproximando dela, tudo o que ela poderia perguntar para ele desapareceu. Não existia mais passado nem futuro. Existia somente aquele corredor meio escuro – o chão estava molhado? Débora não lembrava mais, apesar de ter a impressão que sim – e eles ali. Presos num passado que Débora sempre imaginou que seria seu futuro.

Mas, assim como acontecera anos atrás, cada um foi para um lado. Ela voltou para sua mesa e ele para outra, cheia de gente com a camisa da Croácia. Mas ela não conseguia mais ver o jogo. Cada vez que olhava para a televisão se pegava olhando para ele, e cada vez que olhava para ele se pegava olhando para memórias. Procurava algum sinal que mostrasse que ele estava tão nervoso quanto ela, mas ele parecia mais concentrado na televisão. Estava nervoso e ansioso, mas com o jogo, e não com ela ali. Débora lembrava o quanto ele gostava de futebol.

E quando Neymar fez dois a um em cima da Croácia, Débora percebeu que não apenas continuava gostando de futebol, mas ainda era um menino, comemorando um gol com uma alegria tão espontânea que fez com que ela até mesmo sentisse um pouco de... Inveja, talvez.

Porque, neste momento, Débora percebeu que para o ex-namorado ainda existiam questões de vida e morte.

Mas o que Débora não percebeu foi que, neste instante, seus olhos brilharam. E também não percebeu que deu a mão para o namorado, em busca de algum refúgio para se esconder de si mesma e do que estava sentindo.

Mas era tarde demais. Seus olhos voltavam insistentemente na direção do ex-namorado – e às vezes se cruzavam com os dele. O que seria apenas um jogo do Brasil se tornou um evento na vida de Débora. Ela ouviu alguém no bar reclamando que o Brasil ficava mandando a bola direto da defesa para o ataque, e percebeu que estava fazendo a mesma coisa, jogando sua vida do passado para o presente e de volta para o passado o jogo inteiro.

Quando o namorado perguntou por que ela estava tão quieta, respondeu – sem mentir – que estava nervosa, mas decidiu fazer força para voltar a si e começar a pensar direito. Ela e o namorado moravam perto um do outro, era inevitável que, um dia, se reencontrariam. Na verdade, achava até estranho não terem se reencontrado antes. E, se convencendo de que era adulta e que aquela situação era normal, decidiu que, assim que fosse embora do bar após o jogo, não pensaria mais no assunto.

Estava tão disposta a colocar isso em prática que fez questão até mesmo de cruzar seu caminho com o dele, na hora de ir embora, para se despedir. E estava determinada a dar adeus (e não “tchau”), mas ele foi mais rápido e disse que assistiria a todos os jogos do Brasil ali. Ali naquele bar.

E o coração de Débora disparou.

Para qualquer pessoa ao redor, tudo o que seu ex-namorado havia dito era que ele iria ver os jogos do Brasil no bar. Mas, para ela, seu ex-namorado havia dito “quero ver você de novo e não tenho como pedir isso”.

Débora não conseguia se lembrar do que havia falado para ele, mas não fazia diferença. Ela não precisava se lembrar de sua resposta para saber que nunca mais esqueceria aquele momento.

Horas depois, ao voltar para casa, Débora descobrira que, pela primeira vez na vida, estava esperando ansiosamente por um jogo de Copa do Mundo. Não era o jogo do Brasil que havia se tornado um evento em sua vida, mas sim a Copa inteira. Conforme o torneio avançava, ela se via dividida: enquanto estava ao lado do namorado, conseguia esconder de si mesma o que sentia; mas, sozinha, contava os minutos para que o Brasil entrasse em campo e ela pudesse reencontrar o ex-namorado no bar.

Mesmo que por alguns instantes.

Mesmo que não pudesse falar com ele.

Foi assim contra México. O bar estava lotado, e ninguém reparava que ela e o ex-namorado estavam disputando uma espécie de jogo particular e secreto, ao se reencontrarem secretamente e “por acidente”, mas impedidos de conversarem a respeito. Era como se testassem um ao outro. Era como se tentassem um ao outro.

E Débora mudou. Passou a acompanhar a Copa com mais atenção. Mesmo os jogos dos outros times. Ela sabia que o ex-namorado estava fazendo isso e descobriu que, ao assistir às partidas, se sentia um pouco mais perto dele.

Logo, ela percebeu que não estava brincando somente com o ex-namorado, mas também consigo mesma: deixava seu pensamento dançar ao redor do seu ex-namorado o dia inteiro, sabendo que estava segura por uma rede de proteção: e se as coisas saíssem de controle, tudo o que ela precisava fazer era não ir mais ao bar e continuar com sua vida.

Sim, era egoísmo. Débora sabia disso.

Mas era viciante. Débora sabia disso também.

Mas o que Débora não sabia é que as coisas estavam escapando do controle sem que ela percebesse. Pois você consegue disfarçar a tristeza – existe gente que passa a vida inteira fazendo isso – mas não consegue esconder a felicidade. Logo, o namorado de Débora passou a perceber que os olhos da namorada brilhavam mais que o normal quando ela estava no bar.

E, como era de se esperar, não demorou muito para ele surpreender ela e aquele cara da outra mesa – justamente aquele que conversava com ela às vezes – se olhando discretamente, como se tentassem esconder o olhar não somente dos outros, mas até deles mesmos.

Não demorou muito até ele tirar satisfações com a Débora antes de um jogo, ao ver que o sujeito estava no bar. Deveria ter sido uma discussão normal, mas acabou virando uma briga feia antes da partida contra Camarões. Enquanto era interrogada pelo namorado, pensava o tempo inteiro que o ex-namorado poderia estar do outro lado da rua, dentro do bar, vendo tudo. E Débora não queria que ele visse aquilo.

No jogo particular que travava com o ex-namorado, ela tinha uma vantagem ao aparecer no bar ao lado do namorado. Era seu modo de mostrar que “posso fugir de você a qualquer minuto”. Mas a partir do momento que o ex-namorado visse que seu namoro estava longe, bem longe de ser perfeito, esta vantagem desaparecia. Na verdade, se tornava uma desvantagem. Era como se anunciassem uma substituição: a segurança do “não esqueça que eu posso fugir de você a qualquer minuto” saía de campo, dando lugar ao desespero do “preciso que você me roube daqui”.

Mas a briga serviu com o namorado – e saber que o ex-namorado havia visto tudo – serviu pata trazer Débora de volta ao chão. Assim, quando seu namorado disse que eles não poderiam ir ao bar assistir ao jogo contra o Chile, ela achou que era melhor assim. Não tinha mais idade para ficar brincando. E, por mais que seu namorado tivesse falado que o motivo era que ele iria ver com os amigos do trabalho, Débora sabia que a verdade era outra. Sabia que o namorado não iria mais levá-la para o bar.

Débora viu o jogo contra o Chile em casa, sozinha com seus pais. E, quando um amigo do namorado ligou, dizendo que o namorado havia se metido numa briga com outros torcedores e estava machucado em casa, ela correu para a casa dele. No caminho, pensava que isso era um sinal para ela parar de ficar brincando com os sentimentos dos outros, mas logo pensava que era apenas coincidência. Mas, ao entrar na casa do namorado e vê-lo com a cara roxa e inchada, não pensou mais nada. Só chorou e jurou que iria tomar conta dele, e entendeu quando ele não quis nem falar sobre a briga.

Assim, Débora passou os dias antes do jogo contra a Colômbia dividida. Queria ir ao bar, mas sabia que o certo era assistir ao jogo com seu namorado. Mas, ao mesmo tempo, não queria ver o jogo com ele. Desde o dia da briga, ele andava arredio e de poucas palavras. Quase não se viam e se falavam muito menos que o normal, e novamente a ausência de saudade começou a perturbar Débora. E, sempre que isso acontecia, ela começava a sentir saudade de ir ao bar onde encontraria o ex-namorado.

E o ex-namorado estava esperando por ela. Ela sabia disso. E sabia que isso era culpa dela. Caso ela não tivesse aparecido ali do segundo jogo em diante, nada disso estaria acontecendo. O namorado provavelmente não teria assistido ao jogo com os amigos, e não teria brigado num bar qualquer. O ex-namorado não estaria indo ao bar em todos os jogos, na esperança de encontrá-la.

E ela não estaria sozinha em casa, sem saber o que fazer.

Ou melhor: sabendo o que deveria fazer, mas sem encontrar coragem para isso.

Olhou no relógio e já passava da hora do almoço. Saiu do quarto e encontrou seu pai.

– A Alemanha ganhou, ele disse.

– É?, ela perguntou, sem saber muito bem o que fazer com essa informação.

– Sim. A França está fora.

– Entendi.

– Você já sabe onde vai ver o jogo?

– Não sei ainda, pai. Talvez na casa de uma amiga.

– E o seu namorado?

– Ele vai trabalhar hoje, Débora mentiu.

– Pena. Vocês podiam assistir aqui. Aliás... Eu estava lembrando outro dia daquele seu ex-namorado que morava aqui perto.

Débora deu um pulo e tentou disfarçar. O pai continuou:

– Eu gostava de conversar de futebol com ele. Gostava daquele menino. Como era mesmo o nome dele?

Débora teve vontade de dar um soco no pai, mas apenas disse o nome do ex-namorado e disse que iria para a casa da amiga e que se fosse assistir ao jogo lá, ligaria avisando.

E entrou no elevador sabendo que aquilo não havia acontecido por acidente. O ex-namorado e o pai sempre conversavam sobre futebol, e uma coisa que eles concordavam é que não existe coincidência em Copa do Mundo. Ambos acreditavam que Copa do Mundo é um daqueles eventos onde tudo está escrito. E o pai ter se lembrado do ex-namorado justamente agora não era coincidência. Era um sinal.

Assim, Débora desligou o celular e saiu do prédio. Saiu andando pelo bairro e fingiu que não estava caminhando em direção ao bar. Chegou lá minutos antes do jogo e viu que o lugar já estava lotado, e se perguntou se o ex-namorado estava lá dentro, mesmo sabendo a resposta.

Mas não teve coragem de ir. Lembrou-se da sua mãe dizendo que a vida é assim mesmo, e entrou em um café do outro lado da rua, sentando-se numa mesa e pedindo uma água. Quando o garçom trouxe a garrafinha, ela perguntou:

– Eu estou sem as chaves de casa. Posso ver o jogo aqui com vocês?

– Pode. Nós vamos ficar abertos durante o jogo.

E foi sentada sozinha num café, de onde podia ver o bar lotado, que Débora viu o Brasil entrar em campo contra a Colômbia. Não entendia muito do assunto, mas acreditava que o Brasil estava jogando bem. Tanto que fez um gol logo no início. Débora não viu o replay, estava olhando para dentro do bar com a esperança de ver o ex-namorado. Nada.

Pediu mais uma água e um cappuccino, e continuou assistindo ao jogo. Quando percebeu, os garçons estavam sentados na mesa ao lado dela e começou a bater papo. Com eles, aprendeu que o número 10 da Colômbia era um dos melhores jogadores da Copa, que o time deles tinha um cara chamado Cuadrado que era muito rápido. Mas um garçom mais velho disse que a defesa deles bate muito, como todo time da América do Sul.

Débora queria estar ouvindo o ex-namorado falar isso, e não o garçom de um café. Mas sorriu assim mesmo, fingindo preocupação.

Fim do primeiro tempo. Débora pensou em ir até o bar e tentar procurar o ex-namorado, mas sabia que não devia. Não agora. No intervalo, ele certamente não estaria olhando para a TV, mas sim para o bar em busca dela. Esperaria o segundo tempo começar. Olharia para o bar, se despediria dele em silêncio e voltaria para casa e para o namorado.

Mas despedir-se em silêncio não era suficiente. Assim, abriu a bolsa e pegou um caderninho e uma caneta e, sem pensar, rabiscou com tinta preta.

Desculpe.

Era suficiente. Ele entenderia. Ele sempre entendeu. Dobrando com cuidado, transformou a folha em um bilhete. E, assim que o juiz apitou o início do segundo tempo, esperou alguns minutos e pagou a conta no café– apesar do convite dos garçons em ver o resto do jogo ali – partindo rumo ao bar.

Parou em frente ao bar, no meio da multidão. Ninguém olhava para ela, somente para a televisão. Alguém gritou um palavrão, mas ela não olhou para a TV. Olhou diretamente para o ex-namorado, que olhava fixa e nervosamente para a televisão.

Com o rosto todo roxo e inchado.

E, de repente, tudo ficou claro. Seu namorado não havia brigado em outro bar com outros torcedores. A briga havia sido aqui. Provavelmente ele estava com os amigos, e veio atrás do ex-namorado, e rolaram trocando socos no meio dessas mesas, durante o jogo contra o Chile. E Débora sabia quem havia começado com a briga. Débora conhecia o ex-namorado e o namorado. Sabia quem tinha começado com a briga.

E sentiu ódio do namorado por tudo. Sentiu ódio por ele ter brigado, sentiu ódio por ele ter mentido. Sentiu ódio por fazer com que ela não sentisse saudade dele. Sentiu ódio porque ele não era seu ex-namorado.

De repente, o bar explodiu num grito. Gol do Brasil. Todos levantaram e começaram a se abraçar, mesmo seu ex-namorado, com certa dificuldade – provavelmente ele estava com as costas machucadas. Mas, mesmo com o rosto cheio de hematomas, ele ainda comemorava os gols como menino.

Porque ele seria um menino para sempre.

Mas Débora percebeu também que não era mais menina. Pelo contrário, estava se sentindo mais velha que gostaria. Estava se sentindo exausta, mental e emocionalmente, e queria ir para casa. Queria apenas entrar em casa, deitar em sua cama e ficar quieta um pouco, longe de presente de passado, longe de jogos e falta de saudade, longe de Copa do Mundo e de bares, longe de tudo.

Mas, antes de sair, aproveitou a confusão e puxou um garçom pelo braço, pedindo uma caneta.

– Só tenho vermelha. Pode ser?

– Sim.

Débora pegou a caneta, abriu o bilhete e escreveu outra coisa. Dobrou o papel, apontou para o ex-namorado e pediu:

– Você entrega este bilhete para ele, ali, naquela mesa?

E foi embora.

Ao entrar em casa, o jogo já havia acabado. Pelos palavrões que ouviu na rua, imaginava que a Colômbia tivesse marcado um gol. Sim, a Colômbia havia marcado um gol, mas a outra notícia era pior ainda.

– Tiraram o Neymar da Copa.

– Quê?

– Um colombiano quebrou uma vértebra dele com uma joelhada.

Débora não quis ver a cena e foi para o quarto. Estava cansada de briga e sabia que esse lance passaria à exaustão na televisão nos dias seguintes. Deitou na cama, fechou os olhos. E pensou no bilhete que havia escrito para o ex-namorado. Haviam trocado muitos bilhetes quando namoravam, mas nunca um escrito em duas cores, como esse.

Desculpe. Por tudo.
Com amor,
Débora


E, antes de dormir, sorriu pela primeira vez no dia.

Sorriu ao descobrir que, quando você não toma uma decisão sobre sua vida, a vida dá um passo à frente e decide por você.

Para ler Débora e a Alemanha, clique aqui.

6 leitores:

Tuíla disse...

Não sei se to mais ansiosa pelo jogo do Brasil ou pelo próximo texto!
Muito bom, Rob!

Luis disse...

Foda demais, estou ansioso com o Jogo da Alemanha, estou ansioso com a Débora, esta é realmente a copa das copas hahahha

Varotto disse...

Agora sim! GOLAÇO!!

K.P. disse...

Ah. Meu. deus.

<3 que coisa linda esse texto.

Climão Tahiti disse...

Torcendo agora por um texto com o ponto de vista do Batata.

Esse romance rende um filme, heim?

Tullio Dias disse...

KD A PARTE DA ALEMANHA, VEEEEEI???? TO ANSIOSO BAGARAI!

 

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