30 de janeiro de 2023

Certa Tarde, no Sport Sex Pub Bar...

7leitores

 15h30

– Você tá de sacanagem, Alfredo?
– Que foi, Maria Lúcia?
– Você quer ver o jogo aqui?
– Ué. Eu te disse que queria ver o jogo num bar.
– Esse bar é meio estranho, hein, Alfredo?
– Amigo! Mesa pra três! E perto da TV!
– Essas moças vieram com o senhor, né? Elas são de fora?
– Isso. Todo mundo comigo. E todo mundo é Inter!
– Então vou colocar na conta. Tem uma taxa.
– Como assim, taxa?
– Não atrapalha o sujeito, Maria Lúcia. Deve ser consumação. Campeão? Mesa perto da TV, hein?

15h50

– Alfredo... Que são aquelas meninas ali?
– Que meninas?
– Aquelas ali dançando... Olha as roupas. Parece que estão de lingerie.
– Deve ser roupa de praia, Maria Lúcia. Você, também, implica com tudo. Nunca vi igual.
– Eu vou lá dançar também!
– Você não vai em lugar nenhum, Maria Helena!
– Ah, mãe!
– Alfredo, fala com sua filha.
– Amigão? A gente pediu dois chimarrões, mas não veio ainda. E liga a TV no Colorado!
– É pay per view. Aí é cobrado na conta.
– Liga logo! Quero ver o hino!


16h10

– Mãe, deixa eu ir lá dançar um pouco!
– Maria Helena...
– Eu não vou tirar a roupa, mãe! Só vou dançar!
– Alfredo, manda sua filha ficar aqui.
– Merda de time.
– Pai, deixa eu beber algo?
– Tá. Você quer um suco?
– Pode ser gim?
– MARIA HELENA!
– Deixa a menina beber, Maria Lúcia. Ela tá com a gente, que problema tem? Amigão? Tem gim?
– Só de garrafa.
– Então traz uma. E traz três camisas do Inter!
– Alfredo, você tá louco?
– Moço, traz energético também?
– O time não está bem porque a gente está sem as camisas. Escuta o que eu estou falando, Maria Lúcia. Se a gente colocar camisa, o Inter ganha hoje, fácil.


16h20

– Alfredo, você pediu outra garrafa de gim enquanto eu tava no banheiro?
– Não sei. Pedi?
– Tem outra garrafa na mesa.
– Deve ter sido a Maria Helena que pediu. Deixa eu ver o jogo.
– Aliás, cadê a Maria Helena?
– Foi dançar.
– ALFREDO!
– Deixa eu ver o jogo, Maria Lúcia! O time não consegue jogar no meio de campo e você quer falar de gim?

 
16h30

– Alfredo, desce da mesa.
– EU TÔ FALANDO SÉRIO! SE O INTER FIZER UM GOL, EU VISTO A CAMISA DO GRÊMIO!
– Você bebeu essa merda inteira?
– Já tava vazia, Maria Lúcia. TRAZ MAIS UM GIM AQUI!
– Alfredo, desde da mesa!
– QUEM APOSTA COMIGO? EU VISTO A CAMISA DO GRÊMIO!
– Alfredo, descedamesapeloamordeDeus.

16h35

– FILHA DA PUTA!
– Alfredo, eu vou embora.
– APOSTA É SAGRADA! TÁ PRA NASCER O ALFREDO QUE VAI FUGIR DE APOSTA! AMIGÃO! TRAZ ESSA MERDA DESSA CAMISA DO GRÊMIO QUE EU VOU VESTIR. TRAZ MAIS UM GIM TAMBÉM.
– Alfredo, ainda tem gim na garrafa.
– Bebe aí, então, Maria Lúcia. Eu já pedi outra.
– Eu não vou beber gim puro.
– TRAZ UM ENERGÉTICO AQUI PRA MARIA LÚCIA!
– Não, eu gosto com água tônica.
– TEM ÁGUA TÔNICA? TRAZ OS DOIS!
– Só água tônica, Alfredo.
– OI? TRAZ TRÊS DE CADA!
– Alfredo!
– NÃO, CAMISA DO GRÊMIO É UMA SÓ, CARALHO! TRÊS TÔNICAS, TRES ENERGÉTICOS E A CAMISA DO GRÊMIO. E O GIM! NÃO ESQUECE DO GIM!

 
16h45

– Oi, mãe!
– O que é isso, Maria Helena?
– Ué, eu amarrei a blusa. Tava dançando.
– Maria Helena, arruma essa roupa agora.
– Deixa a menina, Maria Lúcia. Tá calor aqui dentro.
– Mãe, essas são minhas amigas.
– Amigas?
– Isso. É a Desirée, a Gislaine e a Lolô 69.
– Lolo o quê?
– Pode me chamar só de Lolô. O 69 é só no quarto mesmo.
– Pai, minhas amigas podem ver o jogo com a gente?
– Se não for gremista, pode.
– Não, nós três torcemos para o... Que time o senhor torce?
– EU SOU INTER! DESDE QUE NASCI!
– Nós três somos também. Desde que nascemos.
– Aí, sim! Pega um gim pra vocês.
  Mas se quiser a gente pode torcer para outro time. É só falar.
– Não! NEM PENSAR! OU É INTER, OU NÃO TEM GIM!
– Então a gente é Inter.
– ENTÃO TRAZ MAIS GIM, QUE AS AMIGAS DA MINHA FILHA TÃO AQUI PRA DAR SORTE!
– Aê, pai!
– Maria Helena, você chega de beber.
– Bebe também, mãe.
– Isso, bebe com a gente.
– Boa, Lolô!

 
17h10

– Alfredo, você precisa fazer alguma coisa.
– Que foi agora, Maria Lúcia? Acabou de começar o segundo tempo!
– Aquele homem ali perguntou se eu não quero ir para o quarto com ele.
– Como é que é?
– Aquele ali, olha. Aquele está bebendo uísque.
– Como assim, ir pro quarto com ele? Ele vai ver o jogo lá?
– Não, Alfredo. Presta atenção. Ele disse que gosta de mulher pequenininha. Ele disse que eu lembro a namorada que ele tinha na fazenda. Ele quer subir comigo. Entendeu?
– Entendi. Deve ser gremista.
– Ai, Alfredo, desisto.
– Pega mais gim, mãe.
– Chega você também, Maria Helena! Alfredo, você vai deixar isso barato?
– Tá bom, Maria Helena. Que inferno.
– Alfredo, larga esse gim. Já bebeu demais.
– Ele não gosta de gente pequena? Amigão! Ô amigão!
– O que você vai fazer, pai?
– Amigão, tá vendo aquele cara ali? Aquele gremista ali, bebendo uísque. Manda uma garrafa de gim pra ele. Mas olha só... Me dá o cardápio. Aqui, ó. Esse anão aqui. É de plástico?
– Borracha.
– Manda um também. Fala assim, olha: com os cumprimentos da sua namorada da fazenda. E manda pra ele.
– Alfredo, quanto custa esse anão?
– É tipo um brinquedo, Maria Lúcia. Não vai custar muito. Aliás, fazenda... Cara, você tem algo de fazenda aí? Tipo um chapeu, uma bota? Quero mandar junto com anão!
– Tem um cavalo.
– Cavalo?
– É, aquele ali. De pelúcia. Ali no bar, tá vendo? Tem uma menina dançando em cima dele.
– É isso! Põe o anão no cavalo e manda pra ele com um gim. Fala que foi a namorada dele da fazenda que mandou.
– Sim, senhor.
– E já jás mais um trim também.
– Oi?
– TRAZ MAIS UM TRIM TAMBÉM.
– Não entendi, senhor.
– GIM. Traz mais um gim.
– Alfredo, vai devagar com a bebida.
– Me deixa ver o jogo, Maria Lúcia.

 

17h25

– E AÍ? QUEM TOPA?
– Alfredo, eu vou chamar um Uber.
– SE O INTER EMPATAR, ALGUÉM VESTE A CAMISA DO INTER! SE O GRÊMIO FIZER MAIS UM GOL, EU VISTO A CAMISA DO GOL! NÃO, PERA! A CAMISA DO GRÊMIO. QUEM TOPA?
– Pai, você chutou o energético todo em cima da Gislaine!
– Não tem problema, meu amor. Eu tomo banho daqui a pouco.
– MENOS VOCÊ AÍ NO CANTO! VOCÊ, SE QUISER FAZER APOSTA, FAZ COM SEU ANÃO DE BRINQUEDO! TE DEI O ANÃO PRA ISSO! QUEM TOPA?

17h32

– MERDA! MERDA!
– Alfredo, pede a conta que o Uber está vindo.
– AQUI É INTER! EU VOU USAR A CAMISA DO GRÊMIO. Maria Lúcia, cadê a camisa?
– Que camisa, Alfredo?
– A que eu comprei antes! Cadê?
– Sei lá, Alfredo.
– TRAZ MAIS UMA CAMISA DO GRÊMIO PRA MIM, QUE EU VOU VESTIR ESSA MERDA! AQUI É INTER!
– Eu vou esperar o Uber lá fora. Alfredo, pede a conta.

 17h42

– O Uber chegou, Alfredo. Vamos embora.
– Pera, Maria Conta. Ainda precisa pedir a Lúcia.
– Então pede a conta, Alfredo.
– Vou caxar direto lá no pacha.
– Que foi, pai?
– VOU. PAGAR. DIRETO. LÁ. NO CAIXA.
– Alfredo, que que é isso aqui?
– É um consolo, Maria Lúcia. E um cinto também. É um cinto que é consolo. Ou consolo que é cinto. Depende de como você usa. Pode ser os dois.
– Mas quem pediu isso?
– Foi a hora que você foi esperar o Uber, mãe. O papai mandou a Desirée colocar esse cinto aí e a camisa da Inter. Aí o papai ficou com a camisa do Grêmio, de costas pra Desirée, e eles começaram a fingir que... Como se eles estivessem...
– CHEGA! EU NÃO QUERO OUVIR MAIS NADA!
– Calma, mãe. Parecia uma dança. O papai até pediu pra tocar o hino do Inter. Você não ouviu lá de fora?
– Seu pai fez essa imundície aqui?
– Aqui não. Lá naquela cama em cima do palco. Mas aí a cama quebrou e eles...
– TODO MUNDO APLAUDIU, MARIA LÚCIA! Quer dizer, teve alguém que jogou um gremista de cerveja em mim. deve ter sido algum latinha que jogou.
– Chega. Chega. Eu vou ter um troço. Alfredo, paga a conta.
– Tá bom. Maria Helena, vê se suas amigas querem alguma coisa antes de eu pagar.
– ALFREDO, VOCÊ FICOU MALUCO? ESSA CONTA JÁ TÁ UMA FORTUNA!
– Nada, Maria Lúcia. Vai dar uns 50 conto, 60 conto. Quer apostar?
– Alfredo...
– QUEM QUER APOSTAR QUE MINHA CONTA NÃO VAI PASSAR DE 60 REAIS?
– Cuidado, Pai. Você quase caiu da mesa.
– SE DER MAIS QUE ISSO EU COLOCO A CAMISA DO GRÊMIO!
– Alfredo, eu estou esperando no carro. Você tem cinco minutos pra pagar essa conta.
– QUER APOSTAR, MARIA LÚCIA? 60 CONTO! VAI, 70 COM O ANÃO! QUER APOSTAR?

 



Nota: essa crônica foi feita em cima dessa imagem acima, que está rolando pelo Twitter numa postagem da Bic Müller. Pesquisei qual foi o Grenal que aconteceu nesse dia (foi 2 x 0 para o Grêmio). Aí foi só deixar tudo por conta do Alfredo.

17 de janeiro de 2023

Alta Ansiedade

1 leitores

Começa como um vento um pouco mais forte que você não sabe de onde vem e antes que você consiga descobrir o vento se transformou em um tufão que pega todos seus pensamentos e joga para o alto e embaralha tudo e você fica apenas olhando como se fosse um coelho paralisado olhando para os faróis do carro que se aproxima e aí você leva as mãos ao rosto e tenta respirar fundo mas parece que tem 30 pessoas dentro da sua cabeça falando ao mesmo tempo cada um sobre um assunto cada um num idioma diferente e você não sabe qual deles escuta ou se escuta todos ou não escuta nenhum e você pede por favor para cada um falar de uma vez mas a confusão é tão grande que você se torna apenas mais um falando então você começa a tentar identificar o que cada um está dizendo e parece que todos eles estão lhe trazendo algum problema e tudo o que você quer é um pouco de silêncio mas como eles não calam a boca você tenta apanhar pedaços de conversas suas com você mesmo que passam pelo seu cérebro para ver o que consegue fazer com aquilo mas o problema é que cada problema pede uma resolução que mais se parece com outro problema então você volta a olhar os faróis do carro que se aproxima e sabe que precisa se mexer mas não consegue e começa a se sentir culpado porque não está se mexendo e parece que todo mundo consegue se mexer menos você e isso é outro problema que deixa você ainda mais congelado e você começa a pensar o que pode ter de errado com você e se pergunta se caso cinco anos atrás você tivesse virado à esquerda ao invés da direita sua vida não seria totalmente diferente e não estaria passando por isso mas aí você se sente culpado também por não ter feito essa escolha mesmo sabendo que aquele cruzamento de direita e esquerda sequer lembra que você existe então o problema deve ser outro e todas as outras pessoas começam a falar novamente na verdade elas nunca tinham parado era você que estava apenas ouvindo somente algumas delas e tudo se torna ainda mais confuso porque agora elas não estão apenas falando sobre problemas mas sim cobrando que você tome uma decisão agora e resolva isso de uma vez por todas mas tudo o que você consegue fazer é ver mais uma vez os faróis do carro se aproximando e sem conseguir se mexer pede para que o carro não seja tão grande assim ou apenas pegue você de raspão porque aí você vai ter escapado dessa paulada e poderá esperar pela próxima mas se sente culpado novamente por não ter conseguido desviar do carro e se sente culpado até mesmo por estar na estrada onde o carro passa porque isso não devia acontecer e só acontece porque é culpa sua então você precisa fazer algo a respeito mas não consegue porque aquela multidão dentro da sua cabeça não cala a boca e todos têm o seu rosto e todos têm sua voz e todos esperam que você faça algo mas ninguém diz o que você precisa fazer e por um lado isso começa a parecer bom porque você acha que talvez nem mesmo fosse conseguir fazer nada e se fizesse ia criar outro problema novo e com isso ganharia uma nova voz que ficaria azucrinando sua cabeça e não deixando você pensar e de repente você percebe que pensar um pouco sobre tudo é exatamente o que você precisa, mas quanto mais você pensa mais aquelas pessoas cobram algo de você então você respira fundo e você fecha os olhos e você se pergunta quanto tempo demora para ficar noite e você poder dormir porque quando você dorme todas aquelas pessoas dormem também e param de falar e o mundo fica em silêncio e você tem um pouco de paz, e quando você tem um pouco de paz as coisas voltam a ter o tamanho real.


mas aí você abre os olhos e os faróis do carro estão se aproximando e você olha os faróis do carro e todo mundo começa a gritar e você tem coisa para fazer e olha os faróis do carro

26 de agosto de 2022

Erros de Digitação

4leitores

 Eu não concordo com você!

– Espera. Você falou comigo?

– Claro. Não se faça de desentendido.

– Então usa o travessão!

– Como assim?

– Como eu vou saber se você está falando comigo se você não usa o travessão?

– Não muda de assunto. O . é que eu não concordo com você?

– O o quê que você não concorda comigo?

– O o que o quê?

– Repete o que você disse.

– Eu não concordo com você.

– Não. A frase inteira.

– O ponto é que eu não concordo com você.

– Você não disse ponto! Você colocou um ponto! Como você quer que eu entenda?

– Não. Você que escutou errado.

– Você não sabe se expressar!

– Não sei me expressar uma ,!

– Você não sabe se expressar o quê?

– Eu sei me expressar! Você que não presta atenção.

- Não dá para entender o que você fala!

– Ah, é! Olha quem diz! Ao invés de colocar travessão, você colocou hífen!

– Espera! Foi erro de digitação!

– Depois sou eu que faço isso!

– Foi erro de digitação!

– Outro dia eu estava conversando com seu ~, ele disse que você sempre faz isso! Você inverte a discussão.

– Quem?

– Seu tio.

– Não foi isso que você disse.

– Foi sim! Presta atenção em mim!

– Ou você começa a prestar atenção em mim, ou eu vou embora. Eu não vou avisar +.

– Não vai avisar quem?

– Mais, Marco Antônio! Mais! Eu não vou avisar mais!

– Pelo amor de Deus. Você fala desse jeito e espera que... Desisto.

– Ah! - Marco Antônio! -!

– Menos porra nenhuma. Eu não consigo acompanhar. É / entender você.

– Olha lá! Fez de novo! De novo! Fazendo o que você fala que eu faço! Todas as x você faz isso!

– ...

– O que é que você disse?

– Nada. Estou só pensando.

Pensando o quê?

– ...

– Pensando o quê, Marco Antônio? Responde,

– Ah, é que você não usou o travessão, então achei que... Deixa. Esquece.

– Eu vou embora.

– Tá. Depois a gente conversa.

– Tchau.

– ...

– Onde você colocou as {, Marco Antônio?

– Sei lá. Estavam com você.

– Não mente, Marco Antônio!

– Estavam com você, Juliana!

– Eu desisto! Você é = seu pai. Tchau!

– Não coloca meu pai no meio!

– Tchau, Marco Antônio!

– Você é > que isso, Juliana! Não se rebaixa e coloca meu pai no meu meio!

Vou pro bar. Tchau.

– ...

– Responde, Marco Antônio!

– Espera. Você falou comigo?

 

 

 

 

 

 

 

12 de julho de 2019

Síndrome de Impostor

5leitores

O bar era no centro da cidade e semelhante a dezenas de outros bares que parecem existir apenas no centro de cidades espalhadas pelo Brasil. Sua decoração variava entre fotos de times campeões a cartazes antigos de cervejas e a maior parte das mesas de metal, todas envelhecidas e mal conservadas, estava ocupada por casais ou turma de amigos.

Como sempre, a última mesa, perto de uma geladeira que parecia ser mais velha que alguns dos garçons, estava ocupada pelos três. Marcavam presença ali pelo menos uma vez por semana há anos. Eram escritores – ou, pelo menos, era assim que costumavam se apresentar – e o encontro no bar havia se tornado uma espécie de ritual em suas vidas.

Nenhum dos três lembrava qual deles havia dado a ideia de frequentarem aquele bar, mas todos se lembravam o objetivo dos encontros: buscar ideias para histórias observando as pessoas das outras mesas ou, principalmente, captando fragmentos de conversas que se espalhavam pelo ambiente.

E, a bem da verdade, material para transformar o bar num laboratório de escrita havia de sobra. Como acontece em qualquer bar lotado, bastava prestar atenção durante alguns instantes para constatar que promessas de amor, pedaços de brigas e lamúrias de saudade flutuavam pelo lugar a noite inteira.

Às vezes, uma gargalhada escapava alta demais e enchia o bar, assustando esses trechos de histórias que pareciam correr para a rua ou se esconder atrás do balcão. Mas, logo depois, o som da risada se diluía entre as mesas e as conversas voltavam a aparecer, olhando com cuidado para os lados em busca de sinais da gargalhada até, por fim, se sentirem à vontade o suficiente para preencher o bar mais uma vez.

Mas, naquela noite, eles não estavam prestando atenção em conversa alguma, pois conversavam apenas sobre a profissão. Já haviam falado sobre falta de ideias, sobre técnicas de revisão e até mesmo truques para batizar personagens. A cada assunto, mais garrafas de cerveja enchiam a mesa e, quando Tracy Chapman começou a cantar Fast Car, o Primeiro inaugurou um novo assunto.

“O problema é a Síndrome de Escritor.”

Na verdade, ele não queria inaugurar assunto algum; apenas jogou a frase na mesa como um desabafo, sem grandes pretensões. Mas existem frases que você não pode jogar numa mesa com escritores, especialmente se ela estiver repleta de garrafas de cerveja. Assim, o Segundo não perdeu tempo.

“Nem fale. Eu sofro o tempo inteiro com isso.”

“Mas você não tem motivo”, devolveu o Primeiro. Ele levantou o copo para beber mais um pouco, mas desistiu no meio do caminho. “Seus textos são bons. Aliás, você parece melhorar a cada história nova que cria”, acrescentou.

“Isso não é verdade”, disse o Segundo. “Você leu a última que fiz? Da menina que se apaixona por um garoto depois de ver sua foto numa revista, no meio de uma reportagem sobre a Europa?

“Não, não li esse”, mentiu o Primeiro.

“Eu demorei dias para escrever aquela história, porque eu não sabia como terminá-la”, o Segundo explicou, enchendo o próprio copo e depois os dos companheiros. “Na verdade, eu quase desisti dela no meio, mas acabei criando um final qualquer, apenas para não deixar o texto incompleto.”

Como ninguém falou nada, ele continuou.

“Muita gente veio me cumprimentar, dizendo que adorou a história e coisas assim. Me falaram que eu construí um retrato do isolamento da sociedade atual, que eu criei um romance que é a cara do século 21...” Ele pareceu pensar um pouco antes de continuar. “E tudo o que eu consigo pensar é que não imaginei nada isso e que eu só queria escrever uma história de amor.”

“Eu sei como é isso”, disse o Primeiro.

“E, claro”, emendou o Segundo. “Fico torcendo para as pessoas não perceberem que o final é horrível e não funciona. Porque é claro que ele é horrível e que eu não sabia como terminar a história, mas as pessoas não enxergaram isso”. Ele bebeu mais um pouco e pousou o copo na mesa. “Quer dizer, não perceberam isso ainda. Elas vão perceber. Mais cedo ou mais tarde, alguém vai ler o texto e descobrir que ele é horrível. E pronto. Aí acabou-se tudo.”

“Eu tenho certeza que isso vai acontecer comigo a qualquer minuto”, disse o Primeiro. “Sinto isso toda vez que lanço uma história nova. As pessoas vão descobrir que ela não presta. Aí alguém vai inventar de vasculhar meus textos antigos e descobrir que todos eles são ridículos e mal escritos e que eu não deveria nunca ter publicado nada.”

“É exatamente isso”, rebateu o Segundo. “Não é essa história que é ruim. São todas. Um dia desses peguei uma história que lancei quatro, cinco anos atrás. Não consegui passar da primeira página, de tanta vergonha. Como as pessoas não percebem que eu nunca aprendi como começar histórias?”

“Você, eu não sei”, devolveu o Primeiro, depois de uma nova golada. “Mas a minha sorte vai acabar um dia. Aliás, eu nem sinto mais medo quando lanço uma história nova. Apenas espero a primeira crítica. Aquela que vai mostrar para o mundo que eu sou uma farsa. E ela nunca veio, mas é questão de tempo”.

“Exato”, o Primeiro disse, com ar resignado. “Essa crítica, aquela que vai acabar com tudo, está apenas esperando para acontecer. E aí vamos ver que era tudo mentira. Os prêmios, os elogios... O mundo vai perceber que nada disso deveria ter acontecido.”

Tracy Chapman acabou de cantar e ambos ficaram em silêncio junto com ela, cada um imaginando o seu próprio cenário apocalíptico e quanto tempo – ou melhor, quantos textos – iria demorar até isso acontecer. O Segundo já estava se imaginando na cadeia acusado de fraude quando o Terceiro, que estava quieto até então, jogou a bomba.

“Eu não sinto isso”.

“Não?”, perguntou o Primeiro. “Você gosta dos textos que escreve?”

“Gosto”, ele disse. “Eu leio e vejo que eles são bons. Eu vejo ritmo, humor na medida certa... E acho que meus personagens são bem construídos. Claro, eu tento melhorar o tempo todo, mas... Enfim, quando alguém vem me dar os parabéns, eu agradeço. Me sinto como se eu merecesse”.

Silêncio. Os pedaços de conversas de amor e brigas continuavam passando ao redor da mesa mas ninguém prestava atenção neles. Os primeiros acordes de uma nova música começaram a tocar no bar e o Primeiro achou que era Cranberries, mas não teve certeza e deixou isso de lado, porque estava mais concentrado prestando atenção no Terceiro, que abaixou os olhos em direção à mesa.

De repente, uma lágrima escorreu pelo seu rosto e ele falou, talvez mais alto do que planejara:

“Vocês têm noção do quanto isso é difícil? De ler meus textos e não ver defeito nenhum? Vocês sabem como eu me sinto vendo que todo escritor que eu conheço, inclusive vocês, sofre de Síndrome de Impostor e eu não?”

Os outros não sabiam o que responder.

“Eu sou a maior mentira de todas!”, ele disse, ainda mais alto e com uma nova lágrima molhando seu rosto. “Vocês começam a falar que suas histórias são ruins, que vão ser desmascarados em breve... E eu morro de vergonha! Vocês fazem ideia de quantas vezes eu reli meus textos para encontrar defeitos? Eu já cheguei até mesmo a tentar produzir histórias mal escritas de propósito... Mas não consegui!”

E desatou a chorar.

A música realmente era Cranberries. E quando a letra começou a ser tocada, o Terceiro ainda deixou escapar, entre lágrimas.

“Eu queria muito sentir isso que vocês sentem. Eu queria, de verdade, me achar um escritor de merda, para poder me sentir um escritor de verdade. Mas eu não consigo. Eu simplesmente não consigo”.

Uma gargalhada explodiu em outro canto do bar, dominando completamente o ambiente. Por isso quase ninguém ouviu quando o Terceiro finalmente concluiu.

“Eu sou um fracasso. Eu sou o maior fracasso de todos”.

19 de abril de 2017

O Pedido do Cliente

6leitores
O redator bebeu um gole de café e olhou pela janela, vendo os painéis estampados com o rosto do Líder Supremo na rua. Tudo indicava que seria um dia normal na agência. Todos os trabalhos estavam entregues de acordo com o briefing e ele poderia passar o dia colocando os e-mails em dia.

Ele ainda não havia terminado seu café quando viu a executiva de atendimento entrando na sala e caminhando apressada em sua direção. O redator sabia que isso significava problemas. Mas decidiu não tentar adivinhar qual seria o assunto e esperou que ela falasse.

– O cliente pediu algumas refações.

O redator suspirou e olhou pela janela. Pelo menos nos painéis, o cliente não parecia estar preocupado com refações. Estava olhando para o alto, como quem olha para o futuro, de forma grandiosa e sorridente. Um sujeito com um sorriso daqueles jamais pediria refações.

Por outro lado, um sujeito que sorria assim jamais pediria aquele tipo de trabalho.

– Quais refações?

– A maior delas é no vídeo. O cliente adorou a peça, mas acha que falta algo.

– Não falta nada. O briefing era mostrar os Estados Unidos destruídos. Isso está no vídeo.

– Que tal a Casa Branca?

– Nós conversamos sobre isso. Isso ia ficar parecido com Independence Day. As pessoas iam fazer piadas e a ideia é fazer com que elas sintam medo.

– Fale mais baixo. Ninguém pode saber que a gente viu esse filme para fazer a pesquisa. A amiga da minha irmã que conseguiu o DVD está desaparecida faz uma semana.

– Mesmo?

– Sim. Olha, não precisa ser a Casa Branca, mas algum monumento. Algo que as pessoas conheçam.

– Tem a bandeira pegando fogo. As pessoas não conhecem a bandeira?

– Mas ele quer mais destruição. Disse que pode aumentar o orçamento, desde que tenha algo famoso sendo destruído.

– Bom... A Casa Branca não ia funcionar.

– E Nova York?

– O que tem Nova York?

– Nova York não é conhecida?

– Acho que sim. Mas Nova York não foi explodida pelo pessoal do Oriente Médio?

– Eu acho que não explodiram a cidade inteira. Só um bairro.

– Olha, assim fica difícil. Eu posso mostrar o que o cliente quiser, mas eu preciso entrar na internet para pesquisar as coisas.

– Não. Nós não temos autorização.

– Eu não posso explodir um país sem saber o que tem no país. Imagine que vergonha seria se o vídeo mostrasse os Estados Unidos sendo destruídos, e aí tem uma imagem daquela torre na Itália.

– A torre fica na Itália? Eu achei que ficasse na França.

– Eu não sei. E se eu abrir a internet para procurar isso, eu sou morto. Ele não pode dizer especificamente o que ele quer que a gente exploda no vídeo?

– Não. Ele disse só “uma cidade americana”. E se você procurar algo no banco de imagens?

– O banco de imagens só tem foto do Líder Supremo e da sua família!

– Bom, eu vou ver o que eu faço aqui.

– Certo. Ah, ele também quer bombas maiores.

– Maiores? Mas as que eu coloquei têm quase cinquenta metros!

– Ele quer uma de trezentos metros.

– Trezentos metros?!

– Isso.

– Mas isso existe?

– Bom, vai estar no vídeo. E se vai estar no vídeo, é porque existe. Ou, pelo menos, o mundo vai achar que existe.

– Certo. Mas, e olha, desculpe eu ser chato, mas não adianta nada a gente ter uma bomba desse tamanho no vídeo e mostrar a cidade errada.

– Sim. Eu concordo. Confio em você.

– Acho que a estátua da Liberdade fica lá.

– Nos Estados Unidos?

– Isso. Ela fica perto de uma praia, mas acho que é ali.

– Uma estátua perto da praia? Isso não é o Cristo?

– Que Cristo?

– Aquele Jesus com os braços abertos. Isso fica perto da praia também.

– Não conheço isso. Mas, se é Jesus, deve ficar no Vaticano, ali na França.

– Na Itália.

– Pode ser. Bom, vamos lá. Mostrar uma cidade. Bombas maiores. Que mais?

– Acho que é só. Ah! Ele quer uma família sul-coreana.

– Oi?

– É. No meio da explosão. Ele quer uma família sul-coreana ali no meio da destruição.

– Mas fazendo o quê?

– Sei lá. Pegando fogo. Morrendo. Essas coisas que as pessoas fazem quando bombas caem em cima delas.

– Mas como eu vou colocar uma família sul-coreana no meio dos Estados Unidos? Como as pessoas vão saber que eles são sul-coreanos? Isso não tem como ser feito.

– Bom, se você não colocar um vídeo com os sul-coreanos, é bem capaz de sermos eu e você vestidos como sul-coreanos no lugar que a bomba explodir.

– Mas o problema é que... Espere! A bomba vai explodir mesmo?

– A bomba vai explodir no vídeo. E se ela vai explodir no vídeo...

– É porque vai explodir de verdade. Eu sei.

– Então é bom você colocar alguns sul-coreanos ali.

– Certo. Vou ver o que eu faço.

– Consegue o novo roteiro até a hora do almoço?

– Acho que sim.

O redator jogou o copo de café no cesto do lixo ao lado da mesa. Abriu o roteiro, pensando qual pedaço dos Estados Unidos poderia explodir quando a Executiva de Atendimento, já perto da porta, olhou de volta para ele e gritou.

– Ah, quase esqueci! Ele quer encerrar mostrando as nossas tropas marchando numa cidade americana! Mostrando as ruas e o povo americano completamente entregue!

O redator olhou de volta para ela.

– Eu não sei nem o lugar que vou explodir! Como eu vou arrumar uma cidade inteira? Que cidade ele quer?

– Vê se consegue algo até a hora do almoço?

O redator suspirou. Pensou em arrumar as coisas e ir embora, mas mudou de ideia quando olhou para o lado e viu a cadeira vazia. Lembrou-se do diretor de arte que se sentava ali. Havia desaparecido há dois anos, depois de ter afirmado que um briefing do cliente era irrealizável. A cadeira continuava ali, na agência, como exemplo.

Respirou fundo e olhou pela janela, em busca de inspiração. O Líder Supremo continua ali, olhando para o futuro. E sorrindo.

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