O bar era no centro da cidade e semelhante a dezenas de
outros bares que parecem existir apenas no centro de cidades espalhadas pelo
Brasil. Sua decoração variava entre fotos de times campeões a cartazes antigos
de cervejas e a maior parte das mesas de metal, todas envelhecidas e mal conservadas,
estava ocupada por casais ou turma de amigos.
Como sempre, a última mesa, perto de uma geladeira que parecia
ser mais velha que alguns dos garçons, estava ocupada pelos três. Marcavam
presença ali pelo menos uma vez por semana há anos. Eram escritores – ou, pelo
menos, era assim que costumavam se apresentar – e o encontro no bar havia se
tornado uma espécie de ritual em suas vidas.
Nenhum dos três lembrava qual deles havia dado a ideia de frequentarem
aquele bar, mas todos se lembravam o objetivo dos encontros: buscar ideias para
histórias observando as pessoas das outras mesas ou, principalmente, captando
fragmentos de conversas que se espalhavam pelo ambiente.
E, a bem da verdade, material para transformar o bar num
laboratório de escrita havia de sobra. Como acontece em qualquer bar lotado,
bastava prestar atenção durante alguns instantes para constatar que promessas
de amor, pedaços de brigas e lamúrias de saudade flutuavam pelo lugar a noite
inteira.
Às vezes, uma gargalhada escapava alta demais e enchia o
bar, assustando esses trechos de histórias que pareciam correr para a rua ou se
esconder atrás do balcão. Mas, logo depois, o som da risada se diluía entre as
mesas e as conversas voltavam a aparecer, olhando com cuidado para os lados em
busca de sinais da gargalhada até, por fim, se sentirem à vontade o suficiente para preencher
o bar mais uma vez.
Mas, naquela noite, eles não estavam prestando atenção em
conversa alguma, pois conversavam apenas sobre a profissão. Já haviam falado
sobre falta de ideias, sobre técnicas de revisão e até mesmo truques para batizar
personagens. A cada assunto, mais garrafas de cerveja enchiam a mesa e, quando
Tracy Chapman começou a cantar Fast Car, o Primeiro inaugurou um novo assunto.
“O problema é a Síndrome de Escritor.”
Na verdade, ele não queria inaugurar assunto algum; apenas
jogou a frase na mesa como um desabafo, sem grandes pretensões. Mas existem
frases que você não pode jogar numa mesa com escritores, especialmente se ela
estiver repleta de garrafas de cerveja. Assim, o Segundo não perdeu tempo.
“Nem fale. Eu sofro o tempo inteiro com isso.”
“Mas você não tem motivo”, devolveu o Primeiro. Ele levantou
o copo para beber mais um pouco, mas desistiu no meio do caminho. “Seus textos
são bons. Aliás, você parece melhorar a cada história nova que cria”,
acrescentou.
“Isso não é verdade”, disse o Segundo. “Você leu a última
que fiz? Da menina que se apaixona por um garoto depois de ver sua foto numa revista,
no meio de uma reportagem sobre a Europa?
“Não, não li esse”, mentiu o Primeiro.
“Eu demorei dias para escrever aquela história, porque eu
não sabia como terminá-la”, o Segundo explicou, enchendo o próprio copo e
depois os dos companheiros. “Na verdade, eu quase desisti dela no meio, mas acabei
criando um final qualquer, apenas para não deixar o texto incompleto.”
Como ninguém falou nada, ele continuou.
“Muita gente veio me cumprimentar, dizendo que adorou a história
e coisas assim. Me falaram que eu construí um retrato do isolamento da
sociedade atual, que eu criei um romance que é a cara do século 21...” Ele
pareceu pensar um pouco antes de continuar. “E tudo o que eu consigo pensar é que
não imaginei nada isso e que eu só queria escrever uma história de amor.”
“Eu sei como é isso”, disse o Primeiro.
“E, claro”, emendou o Segundo. “Fico torcendo para as
pessoas não perceberem que o final é horrível e não funciona. Porque é claro
que ele é horrível e que eu não sabia como terminar a história, mas as pessoas
não enxergaram isso”. Ele bebeu mais um pouco e pousou o copo na mesa. “Quer
dizer, não perceberam isso ainda. Elas vão perceber. Mais cedo ou mais tarde,
alguém vai ler o texto e descobrir que ele é horrível. E pronto. Aí acabou-se
tudo.”
“Eu tenho certeza que isso vai acontecer comigo a qualquer
minuto”, disse o Primeiro. “Sinto isso toda vez que lanço uma história nova. As
pessoas vão descobrir que ela não presta. Aí alguém vai inventar de vasculhar
meus textos antigos e descobrir que todos eles são ridículos e mal escritos e
que eu não deveria nunca ter publicado nada.”
“É exatamente isso”, rebateu o Segundo. “Não é essa história
que é ruim. São todas. Um dia desses peguei uma história que lancei quatro,
cinco anos atrás. Não consegui passar da primeira página, de tanta vergonha.
Como as pessoas não percebem que eu nunca aprendi como começar histórias?”
“Você, eu não sei”, devolveu o Primeiro, depois de uma nova
golada. “Mas a minha sorte vai acabar um dia. Aliás, eu nem sinto mais medo
quando lanço uma história nova. Apenas espero a primeira crítica. Aquela que
vai mostrar para o mundo que eu sou uma farsa. E ela nunca veio, mas é questão
de tempo”.
“Exato”, o Primeiro disse, com ar resignado. “Essa crítica,
aquela que vai acabar com tudo, está apenas esperando para acontecer. E aí
vamos ver que era tudo mentira. Os prêmios, os elogios... O mundo vai perceber
que nada disso deveria ter acontecido.”
Tracy Chapman acabou de cantar e ambos ficaram em silêncio
junto com ela, cada um imaginando o seu próprio cenário apocalíptico e quanto
tempo – ou melhor, quantos textos – iria demorar até isso acontecer. O Segundo
já estava se imaginando na cadeia acusado de fraude quando o Terceiro, que
estava quieto até então, jogou a bomba.
“Eu não sinto isso”.
“Não?”, perguntou o Primeiro. “Você gosta dos textos que
escreve?”
“Gosto”, ele disse. “Eu leio e vejo que eles são bons. Eu
vejo ritmo, humor na medida certa... E acho que meus personagens são bem construídos.
Claro, eu tento melhorar o tempo todo, mas... Enfim, quando alguém vem me dar
os parabéns, eu agradeço. Me sinto como se eu merecesse”.
Silêncio. Os pedaços de conversas de amor e brigas
continuavam passando ao redor da mesa mas ninguém prestava atenção neles. Os
primeiros acordes de uma nova música começaram a tocar no bar e o Primeiro achou
que era Cranberries, mas não teve certeza e deixou isso de lado, porque estava
mais concentrado prestando atenção no Terceiro, que abaixou os olhos em direção
à mesa.
De repente, uma lágrima escorreu pelo seu rosto e ele falou,
talvez mais alto do que planejara:
“Vocês têm noção do quanto isso é difícil? De ler meus
textos e não ver defeito nenhum? Vocês sabem como eu me sinto vendo que todo
escritor que eu conheço, inclusive vocês, sofre de Síndrome de Impostor e eu
não?”
Os outros não sabiam o que responder.
“Eu sou a maior mentira de todas!”, ele disse, ainda mais
alto e com uma nova lágrima molhando seu rosto. “Vocês começam a falar que suas
histórias são ruins, que vão ser desmascarados em breve... E eu morro de vergonha!
Vocês fazem ideia de quantas vezes eu reli meus textos para encontrar defeitos?
Eu já cheguei até mesmo a tentar produzir histórias mal escritas de
propósito... Mas não consegui!”
E desatou a chorar.
A música realmente era Cranberries. E quando a letra começou
a ser tocada, o Terceiro ainda deixou escapar, entre lágrimas.
“Eu queria muito sentir isso que vocês sentem. Eu queria, de
verdade, me achar um escritor de merda, para poder me sentir um escritor de verdade.
Mas eu não consigo. Eu simplesmente não consigo”.
Uma gargalhada explodiu em outro canto do bar, dominando
completamente o ambiente. Por isso quase ninguém ouviu quando o Terceiro finalmente
concluiu.
“Eu sou um fracasso. Eu sou o maior fracasso de todos”.
5 leitores:
Síndrome do escritor-impostor!
Fico sempre me perguntando quando vão me desmascarar...
Também gosto de bares para ficar caçando histórias e personagens. Mas nos últimos tempos eles ficam só na minha cabeça...
Muito bom o seu texto!
Nossa, hein! Texto novo, e logo um com o qual me identifiquei do começo ao fim. Hehe.
Adorei, e é isso. Acho que você nunca acha que é bom o suficiente para suas próprias estórias.
Muito bom o texto Rob Gordon! Assim como os escritores do texto, busco observar pessoas, comportamentos e sentimentos para me inspirar e escrever. Acho que todo mundo que escreve acha que seu texto não está realmente bom, como acontece com o primeiro e o segundo escritor, mas também considero que quem escreve também passa pelo que acontece com o terceiro, de achar o texto realmente bom.
Vim pelo gente que escreve, foi o primeiro texto que li seu.
Eu vim pelo 'Gente Que Escreve'. E de tanto ouvir de vocês, criei o desejo de ler seus mundos. Sensacional, eu me sinto como o pior dos impostores quando novatos pedem conselhos para mim.
Postar um comentário