O chão saindo de foco a cada passo não significava nada. Era
o maior homem do mundo e seu terno amassado mostrava isso. Achava que estava
andando rápido demais, mas quando tentava diminuir o ritmo perdia a paciência e
voltava a acelerar, tropeçando em sonhos esquecidos na calçada, exigindo que as
árvores abrissem caminho para ele. Sacou a garrafa de vodca barata já e deu um
gole no cheiro forte que havia sobrado dela. Vazia. Não precisava mais dela.
Queria, mas não precisava. Nem da vodca, nem dela. Tinha um terno que, mesmo
amassado, era um terno. E tinha a calçada toda para seu poder de fazer o chão
sair de foco. Suspirou e cantarolou baixinho uma canção de sua terra. Não sabia
o nome. Sabia apenas aquele trecho e não fazia ideia porque ela havia surgido
em sua mente. Talvez estivesse bêbado? Já havia reparado nisso: sempre que
cantava sozinho era porque havia bebido uma a mais. Mas nunca seria a mais,
porque era o maior homem do mundo. Com graça etílica, desviava de amores
frustrados e paixões não consumidas. Com a leveza que somente o álcool traz, equilibrava-se
numa corda bamba imaginária, tomando cuidado para não escorregar na saudade e
mergulhar no fosso de tristeza fria que chamava seu nome, metros abaixo. Fora
de foco. Igual ao chão. Mas chegaria ao outro lado da corda. Sentia-se vivo
demais para morrer. Sentia-se vivo demais para não ser. Mas, ao mesmo tempo,
queria apenas sentar um pouco. Sentar e descansar os pés de um dia que terminou
tarde demais, de um dia que não devia ter começado prometendo que seria apenas
igual ao outro. Novo gole no ar quente da garrafa. Vazia. Vazia como sua mente,
incapaz de segurar cada pensamento por mais de um instante. Mas não queria
pensar. Não precisa. Queria apenas se arrepender de ter bebido a última dose.
Não. O problema não era a última dose e sim o fato dela não ser a penúltima.
Queria apenas mais uma. Dois dedos. Dois dedos e um chorinho porque seria a
última. E chorou o fato da bebida ter acabado, não porque dependia dela, mas
sim do torpor feliz que ela escondia. A garganta ardia mas as memórias
suavizavam. Era o maior homem do mundo e queria ser homem. Queria se apaixonar
feito príncipe e amar feito rei, fazendo castelos tremerem com os gritos.
Queria ter a força de um animal ferido e fazer sexo furiosamente até ficar tão
saciado que a felicidade seria um detalhe. Era o maior homem do mundo e estava
indo para sua casa velha, com armários vazios e fogão quebrado. Era o maior
homem do mundo e tinha um terno surrado que detestava por usar em entrevistas
de emprego. Novo gole no ar quente da garrafa vazia. Não precisava mais dela.
Não hoje. Amanhã sim, mas não hoje. Hoje, ele era o maior homem do mundo. E
logo o chão entenderia isso e pararia de sair do foco. Pois a bebida o
transformava numa espécie de deus. O mundo era dele e o chão precisaria
entender isso. Queria também que seus pés parassem de doer. Queria entrar em
casa e tirar um pouco os sapatos. Deitar. Só um pouco. Um último gole, apenas
para matar a sede e estender sua divindade. Queria cochilar um pouco e sonhar só
um pouquinho com um mundo onde ele pudesse sonhar. Um mundo onde ele seria rei e
a garrafa estaria sempre cheia. Não de cheiro quente, mas de calor. Do calor dos
gritos dela. Para sempre.
(Uma pequena homenagem ao sujeito que passou em frente a
minha casa às três horas da manhã, cambaleando e com um garrafa de vodca barata
nas mãos).
5 leitores:
"E chorou o fato da bebida ter acabado". Que forte isso. Lembrei do clipe O Salto, d'O Rappa, já viu? https://www.youtube.com/watch?v=NRcL5QIYoEQ
Gostei da cronica cheia de lirismo e analogias poderosas,parabéns!
"Um último gole, apenas para matar a sede e estender sua divindade", certamente essa foi uma das coisas mais maravilhosas que já li sobre bêbados. Adorei!
Ótima crônica como sempre!
E meus parabéns pelos 10 anos de blog!!
Texto poderoso! Adorei!
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