10 de setembro de 2015

O Abutre e a Cegonha

Eram oito horas da manhã quando a cegonha chegou. Voando de lugar algum por cima dos prédios, encontrou o telhado e pousou suavemente, abrindo suas asas brancas. Como era de se esperar, o abutre já estava ali. Estava com as costas curvadas, olhando fixamente em direção a uma casa no outro lado da rua.

Trocaram um bom dia casual, mas não conversaram mais. Na verdade, nenhum dos dois tinha muito a dizer um com o outro, já que faziam isso todos os dias. De acordo com as contas da cegonha, eles repetiam esse mesmo ritual há centenas de anos. Segundo o abutre, no quarto dia eles já não tinham mais assuntos para conversar. Por isso, passaram-se uns dois minutos depois do bom dia até a cegonha olhar para o alto e concluir.

– Acho que vai chover hoje.

O abutre ergueu os olhos rapidamente e observou as nuvens.

– Tomara.

A cegonha suspirou.

– Eu nunca entendi o prazer que você sente quando chove no aniversário dos outros.

– Eu gosto. Acho aniversário algo extremamente melancólico. E chuva combina com isso. Aliás, não precisa nem chover. Se o céu ficar cinza já está ótimo.

– Como assim, melancólico? Aniversários são dias felizes.

– Bobagem.

– Claro que sim. É um marco na vida de cada pessoa. O término de um ciclo e o início de outro.

O abutre olhou para a cegonha pela primeira vez. Odiava quando ela vinha com essas conversas. Se você perguntasse a ele, ele não tinha nada contra as cegonhas, mas detestava quando elas começavam com essas conversas meio hippies. Normalmente, ele teria ignorado. Mas, desta vez, resolveu responder.

– Não, não é. É apenas um jeito de tornar a passagem do tempo menos dolorida. A cada ano, eles são lembrados que estão mais longe de você e cada dia mais perto de mim. E tudo o que ganham em troca é um bolo.

– Um bolo?

– Sim. Imagine só: você está na sua casa e de repente batem na porta. Você vai atender e encontra um sujeito dizendo que você precisa trocar um ano de vida por uma fatia de bolo. Não me parece um acontecimento muito alegre.

– Eles não comemoram isso. O bolo não é por causa disso.

– Ah, não?

– Não. Eles comemoram, na verdade, o...

– Você não vai falar dos ciclos, certo?

– Oi?

– Aquela conversa de ciclos. De completar uma volta ao Sol, uma nova primavera e aquelas babaquices.

– Não, não.

– Porque você não precisa de mim para isso. Se você quiser falar sobre isso, eu posso pegar um aparelho de som e trazer para cá. Aí eu vou para outro telhado e você fica aqui sozinha, falando sobre começos e finais de ciclos e ouvindo new age.

A cegonha respirou profundamente e olhou novamente o céu. As nuvens estavam mais carregadas. Ia fazer um comentário sobre o humor do abutre, mas ele falou primeiro.

– Aliás, qual o propósito disso?

– Disso o quê?

– De nós virmos para cá?

– Como assim?

– Eu e você fazermos isso. Todos os dias, nos encontramos perto da casa de alguém que está fazendo aniversário para observar a pessoa. É o que mandam a gente fazer e a gente faz. Mas, se você pensar bem... Não tem motivo.

– Não?

– Claro que não. Que adianta olharmos para a pessoa? Porque ninguém pode ver a gente. Então, não é como se estivéssemos aqui para ela ir até a janela e escolher um de nós. Nós ficamos aqui observando a pessoa. Vemos que ela está mais velha, e só. Todo ano é a mesma coisa.

– Eu não venho aqui para isso. Você também não.

– Aliás, você não devia nem aparecer aqui. Você não é necessária só na hora do nascimento?

– Sim. Da mesma forma que você só trabalha mesmo na hora da morte.

– Então, não faz sentido a gente vir para cá.

O abutre disse isso e voltou a olhar a casa. Não queria mais conversar. Aliás, tudo o que queria era ficar quieto no telhado até escurecer. Iria para casa e ficaria sozinho até a hora de dormir. Mas a cegonha não se deu por vencida.

– Bom, por que você não pede transferência então?

– Transferência?

– Sim. Vai para outro departamento. Quem sabe eles mandam outro pássaro no seu lugar para fazer isso.

– Outro pássaro?

– Sim. Uma maritaca, talvez.

O abutre olhou indignado para a cegonha.

– Maritaca? Você enlouqueceu? Qual a simbologia disso?

– Ué, mas se você não quer mais fazer isso...

– Mas uma maritaca é exagero! Você significa o nascimento, eu significo a morte. Uma maritaca significa o quê? Um prato de salada? Teria que ser um pássaro ligado à morte.

– Bom, não sei se tem isso. Uma fênix, talvez.

Ao ouvir isso, a indignação do abutre se transformou em raiva.

– Eu odeio fênix.

– Oi?

– Odeio. Bicho imbecil. Morre e nasce. Morre e nasce. Morre e nasce. Odeio gente que não leva a morte a sério. Acho muito falta de respeito. Fênix e super-heróis de quadrinhos fazem isso o tempo inteiro. Tenho uma bronca disso que você não imagina.

A cegonha mordeu discretamente o bico. Ela sempre fazia isso quando estava segurando a risada.

– Certo. Mas a gente acha outro pássaro, aí você pede sua transferência.

– Esquece. Eu não vou pedir transferência.

– Certo.

– Eu estou apenas mal humorado. Só isso.

– Por que você está mordendo o bico?

– Oi? Não, nada. Só uma coceira.

– Enfim, daqui a pouco eu melhoro.

– Certo.

– Ou amanhã. Amanhã eu vou estar melhor.

A cegonha não respondeu. Ambos foram distraídos com um movimento na casa que deviam observar. O aniversariante estava na janela, falando ao telefone com alguém. Provavelmente, era alguém dando os parabéns. E, em silêncio, a cegonha e o abutre observaram o jeito que ele falava. E sorria.

Quando ele desapareceu da janela, ficaram quietos mais um tempo. Até que finalmente a cegonha rompeu o silêncio.

– Você dormiu mal?

– Oi?

– Você disse que amanhã vai estar melhor. Quando a gente fica ranzinza um dia inteiro e sabe que no dia seguinte vai estar melhor... Para mim, isso é insônia.

– Não. Eu dormi bem.

– Então porque o azedume?

– Nada.

– Mesmo?

– Sim.

– Você sabe que se quiser conversar, eu...

– Não foi nada.

– Ok.

Novos minutos de silêncio. Ficaram observando a casa, cada um cuidadosamente tentando ignorar a presença do outro. Mas desta vez quem falou foi o abutre.

– Hoje é meu aniversário.

Falou isso tentando parecer casual, mas o desconforto na sua voz era evidente. Mas a cegonha, pega de surpresa, não reparou – ou fingiu não reparar.

– Sério?

– Sim.

– Meus parabéns!

– Obrigado.

– Quantos anos você está fazendo?

– Não quero falar sobre isso.

– É? Bom... Enfim... Parabéns.

– Obrigado.

Novo silêncio. O abutre estava um pouco mais aliviado por ter colocado para fora aquilo que o estava incomodando. Já a cegonha estava pensando em outra coisa bem diferente.

– Você sabe que ele sente que estamos aqui, certo?

– O aniversariante? Sim, eu sei.

– E que é por isso que nós ficamos aqui. Ele sente nossa presença. Sente a presença da morte e do nascimento. Por isso que nós aparecemos aqui, para ele pensar sobre o tempo. Nós estamos aqui apenas para lembrar que ele não escolhe quando nasce muito menos quando morre. Mas todo o resto, no meio disso, é escolha dele.

– Eu sei de tudo isso. Não é meu primeiro dia no emprego.

– Eu sei. Mas o que eu estava pensando é... O que você acha de irmos embora?

– Ir embora?

– Sim. Vamos tirar o dia de folga.

– Você enlouqueceu? E o aniversariante?

A cegonha esticou a asa e apontou na direção da casa. O abutre aguçou os olhos e viu o aniversariante no quintal. Era careca e baixinho. Devia ter cerca de quarenta anos e estava cercado por três amigos que haviam ido almoçar com ele. De repente, ele explodiu em uma gargalhada e abraçou um dos companheiros, ainda rindo. Logo a esposa do aniversariante saiu pela porta e caminhou até o grupo e também abraçou o marido.

– Você realmente acha que esse sujeito precisa de nós para decidir aproveitar a vida dele?

– Como assim?

– A felicidade é uma escolha. Eu sei disso, e você sabe disso. E toda vez que a pessoa faz aniversário nós aparecemos na casa dela para que ela escolha isso. Ou, ao menos, se lembre do quanto essa decisão é importante. Olhe para ele. Você acha que ele precisa de nós para disso?

O abutre olhou na direção da casa. Não havia como discordar daquilo. A cegonha continuou.

– Mais tarde, vai chegar ainda mais gente nessa casa. Parentes, amigos.

– Eu sei.

– E eles não virão até aqui porque o aniversariante tem um ano a menos de vida. É o contrário. Eles virão até aqui comemorar que passaram mais um ano com ele.

– Eu sei.

– Porque acho que é isso que significa envelhecer. Eles pensam em tudo que perderam, em tudo que deixaram para trás. E, conforme os anos passam, eles perdem cada vez mais coisas. Aquelas pessoas... A esposa, a família, os amigos... Eles estão ali celebrando que não se perderam. Eles têm um amor que desafia o tempo. A cada ciclo, eles...

– Não. Sem ciclos. Por favor.

– Certo. Enfim. Eles estão aí. E os abraços, os sorrisos... Até mesmo o bolo... Tudo isso é a forma que eles têm de mostrar para o próximo cicl... Para o próximo ano... Que continuarão juntos. Que o tempo pode tentar passar rápido, ou lançar dias difíceis, ou fazer o que quiser, mas eles vão vencer. E vão vencer porque decidiram aproveitar cada dia e fazer o melhor que podem para isso. Não apenas hoje, mas em todos os dias que existem entre eu e você. Eles estão aqui para isso.

– Eu sei.

– Então vamos embora.

– Para onde?

– Para minha casa. É seu aniversário e precisamos comemorar.

– Mesmo?

– Sim. Eu vou fazer um bolo e nós vamos celebrar.

O abutre respirou fundo. Nunca havia ganhado um bolo antes. Queria sorrir, mas não podia. Afinal, era um abutre e tinha uma reputação a zelar. Assim, tentou parecer o mais casual possível quando respondeu que:

– Certo. Então vamos.

Ambos saíram voando, e não viram o aniversariante abraçando sua mãe. Estavam ocupados demais, conversando.

– Você não vai tocar new age, certo?

– Não. O aniversário é seu, vamos ouvir a música que você quiser. E o bolo será do sabor que você escolher.

– Pode ser chocolate?

Quando o aniversariante entrou em casa, eles já estavam longe.  

3 leitores:

Jonas Henrique disse...

Difícil sempre ler estes textos. Começo a suar pelos olhos, dificulta a visão... Além deste texto vir em uma boa hora para mim, especificamente. =)

Obrigado, fatal como sempre!

Adriano Duarte disse...

Rob Gordon, gostaria de lhe dizer que o este texto apareceu de forma providencial em minha vida!

Muita gratidão e parabéns pelo talento!

Marcos Bonilha disse...

Nunca é demais reafirmar, mas você é foda!

Suando nos olhos como o amigo acima. =`D

 

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