Eram oito horas da manhã quando a cegonha chegou. Voando de
lugar algum por cima dos prédios, encontrou o telhado e pousou suavemente,
abrindo suas asas brancas. Como era de se esperar, o abutre já estava ali.
Estava com as costas curvadas, olhando fixamente em direção a uma casa no outro
lado da rua.
Trocaram um bom dia casual, mas não conversaram mais. Na
verdade, nenhum dos dois tinha muito a dizer um com o outro, já que faziam isso
todos os dias. De acordo com as contas da cegonha, eles repetiam esse mesmo ritual
há centenas de anos. Segundo o abutre, no quarto dia eles já não tinham mais assuntos
para conversar. Por isso, passaram-se uns dois minutos depois do bom dia até a
cegonha olhar para o alto e concluir.
– Acho que vai chover hoje.
O abutre ergueu os olhos rapidamente e observou as nuvens.
– Tomara.
A cegonha suspirou.
– Eu nunca entendi o prazer que você sente quando chove no
aniversário dos outros.
– Eu gosto. Acho aniversário algo extremamente melancólico.
E chuva combina com isso. Aliás, não precisa nem chover. Se o céu ficar cinza
já está ótimo.
– Como assim, melancólico? Aniversários são dias felizes.
– Bobagem.
– Claro que sim. É um marco na vida de cada pessoa. O término
de um ciclo e o início de outro.
O abutre olhou para a cegonha pela primeira vez. Odiava
quando ela vinha com essas conversas. Se você perguntasse a ele, ele não tinha
nada contra as cegonhas, mas detestava quando elas começavam com essas
conversas meio hippies. Normalmente, ele teria ignorado. Mas, desta vez,
resolveu responder.
– Não, não é. É apenas um jeito de tornar a passagem do
tempo menos dolorida. A cada ano, eles são lembrados que estão mais longe de
você e cada dia mais perto de mim. E tudo o que ganham em troca é um bolo.
– Um bolo?
– Sim. Imagine só: você está na sua casa e de repente batem
na porta. Você vai atender e encontra um sujeito dizendo que você precisa trocar
um ano de vida por uma fatia de bolo. Não me parece um acontecimento muito
alegre.
– Eles não comemoram isso. O bolo não é por causa disso.
– Ah, não?
– Não. Eles comemoram, na verdade, o...
– Você não vai falar dos ciclos, certo?
– Oi?
– Aquela conversa de ciclos. De completar uma volta ao Sol,
uma nova primavera e aquelas babaquices.
– Não, não.
– Porque você não precisa de mim para isso. Se você quiser
falar sobre isso, eu posso pegar um aparelho de som e trazer para cá. Aí eu vou
para outro telhado e você fica aqui sozinha, falando sobre começos e finais de
ciclos e ouvindo new age.
A cegonha respirou profundamente e olhou novamente o céu. As
nuvens estavam mais carregadas. Ia fazer um comentário sobre o humor do abutre,
mas ele falou primeiro.
– Aliás, qual o propósito disso?
– Disso o quê?
– De nós virmos para cá?
– Como assim?
– Eu e você fazermos isso. Todos os dias, nos encontramos perto
da casa de alguém que está fazendo aniversário para observar a pessoa. É o que
mandam a gente fazer e a gente faz. Mas, se você pensar bem... Não tem motivo.
– Não?
– Claro que não. Que adianta olharmos para a pessoa? Porque ninguém
pode ver a gente. Então, não é como se estivéssemos aqui para ela ir até a janela
e escolher um de nós. Nós ficamos aqui observando a pessoa. Vemos que ela está
mais velha, e só. Todo ano é a mesma coisa.
– Eu não venho aqui para isso. Você também não.
– Aliás, você não devia nem aparecer aqui. Você não é
necessária só na hora do nascimento?
– Sim. Da mesma forma que você só trabalha mesmo na hora da
morte.
– Então, não faz sentido a gente vir para cá.
O abutre disse isso e voltou a olhar a casa. Não queria mais
conversar. Aliás, tudo o que queria era ficar quieto no telhado até escurecer.
Iria para casa e ficaria sozinho até a hora de dormir. Mas a cegonha não se deu
por vencida.
– Bom, por que você não pede transferência então?
– Transferência?
– Sim. Vai para outro departamento. Quem sabe eles mandam
outro pássaro no seu lugar para fazer isso.
– Outro pássaro?
– Sim. Uma maritaca, talvez.
O abutre olhou indignado para a cegonha.
– Maritaca? Você enlouqueceu? Qual a simbologia disso?
– Ué, mas se você não quer mais fazer isso...
– Mas uma maritaca é exagero! Você significa o nascimento,
eu significo a morte. Uma maritaca significa o quê? Um prato de salada? Teria
que ser um pássaro ligado à morte.
– Bom, não sei se tem isso. Uma fênix, talvez.
Ao ouvir isso, a indignação do abutre se transformou em
raiva.
– Eu odeio fênix.
– Oi?
– Odeio. Bicho imbecil. Morre e nasce. Morre e nasce. Morre
e nasce. Odeio gente que não leva a morte a sério. Acho muito falta de
respeito. Fênix e super-heróis de quadrinhos fazem isso o tempo inteiro. Tenho
uma bronca disso que você não imagina.
A cegonha mordeu discretamente o bico. Ela sempre fazia isso
quando estava segurando a risada.
– Certo. Mas a gente acha outro pássaro, aí você pede sua
transferência.
– Esquece. Eu não vou pedir transferência.
– Certo.
– Eu estou apenas mal humorado. Só isso.
– Por que você está mordendo o bico?
– Oi? Não, nada. Só uma coceira.
– Enfim, daqui a pouco eu melhoro.
– Certo.
– Ou amanhã. Amanhã eu vou estar melhor.
A cegonha não respondeu. Ambos foram distraídos com um
movimento na casa que deviam observar. O aniversariante estava na janela,
falando ao telefone com alguém. Provavelmente, era alguém dando os parabéns. E,
em silêncio, a cegonha e o abutre observaram o jeito que ele falava. E sorria.
Quando ele desapareceu da janela, ficaram quietos mais um
tempo. Até que finalmente a cegonha rompeu o silêncio.
– Você dormiu mal?
– Oi?
– Você disse que amanhã vai estar melhor. Quando a gente
fica ranzinza um dia inteiro e sabe que no dia seguinte vai estar melhor...
Para mim, isso é insônia.
– Não. Eu dormi bem.
– Então porque o azedume?
– Nada.
– Mesmo?
– Sim.
– Você sabe que se quiser conversar, eu...
– Não foi nada.
– Ok.
Novos minutos de silêncio. Ficaram observando a casa, cada
um cuidadosamente tentando ignorar a presença do outro. Mas desta vez quem falou
foi o abutre.
– Hoje é meu aniversário.
Falou isso tentando parecer casual, mas o desconforto na sua
voz era evidente. Mas a cegonha, pega de surpresa, não reparou – ou fingiu não
reparar.
– Sério?
– Sim.
– Meus parabéns!
– Obrigado.
– Quantos anos você está fazendo?
– Não quero falar sobre isso.
– É? Bom... Enfim... Parabéns.
– Obrigado.
Novo silêncio. O abutre estava um pouco mais aliviado por
ter colocado para fora aquilo que o estava incomodando. Já a cegonha estava
pensando em outra coisa bem diferente.
– Você sabe que ele sente que estamos aqui, certo?
– O aniversariante? Sim, eu sei.
– E que é por isso que nós ficamos aqui. Ele sente nossa
presença. Sente a presença da morte e do nascimento. Por isso que nós
aparecemos aqui, para ele pensar sobre o tempo. Nós estamos aqui apenas para
lembrar que ele não escolhe quando nasce muito menos quando morre. Mas todo o
resto, no meio disso, é escolha dele.
– Eu sei de tudo isso. Não é meu primeiro dia no emprego.
– Eu sei. Mas o que eu estava pensando é... O que você acha
de irmos embora?
– Ir embora?
– Sim. Vamos tirar o dia de folga.
– Você enlouqueceu? E o aniversariante?
A cegonha esticou a asa e apontou na direção da casa. O
abutre aguçou os olhos e viu o aniversariante no quintal. Era careca e baixinho.
Devia ter cerca de quarenta anos e estava cercado por três amigos que haviam
ido almoçar com ele. De repente, ele explodiu em uma gargalhada e abraçou um
dos companheiros, ainda rindo. Logo a esposa do aniversariante saiu pela porta
e caminhou até o grupo e também abraçou o marido.
– Você realmente acha que esse sujeito precisa de nós para
decidir aproveitar a vida dele?
– Como assim?
– A felicidade é uma escolha. Eu sei disso, e você sabe
disso. E toda vez que a pessoa faz aniversário nós aparecemos na casa dela para
que ela escolha isso. Ou, ao menos, se lembre do quanto essa decisão é
importante. Olhe para ele. Você acha que ele precisa de nós para disso?
O abutre olhou na direção da casa. Não havia como discordar
daquilo. A cegonha continuou.
– Mais tarde, vai chegar ainda mais gente nessa casa. Parentes,
amigos.
– Eu sei.
– E eles não virão até aqui porque o aniversariante tem um
ano a menos de vida. É o contrário. Eles virão até aqui comemorar que passaram
mais um ano com ele.
– Eu sei.
– Porque acho que é isso que significa envelhecer. Eles pensam
em tudo que perderam, em tudo que deixaram para trás. E, conforme os anos
passam, eles perdem cada vez mais coisas. Aquelas pessoas... A esposa, a
família, os amigos... Eles estão ali celebrando que não se perderam. Eles têm
um amor que desafia o tempo. A cada ciclo, eles...
– Não. Sem ciclos. Por favor.
– Certo. Enfim. Eles estão aí. E os abraços, os sorrisos...
Até mesmo o bolo... Tudo isso é a forma que eles têm de mostrar para o próximo
cicl... Para o próximo ano... Que continuarão juntos. Que o tempo pode tentar
passar rápido, ou lançar dias difíceis, ou fazer o que quiser, mas eles vão
vencer. E vão vencer porque decidiram aproveitar cada dia e fazer o melhor que
podem para isso. Não apenas hoje, mas em todos os dias que existem entre eu e
você. Eles estão aqui para isso.
– Eu sei.
– Então vamos embora.
– Para onde?
– Para minha casa. É seu aniversário e precisamos comemorar.
– Mesmo?
– Sim. Eu vou fazer um bolo e nós vamos celebrar.
O abutre respirou fundo. Nunca havia ganhado um bolo antes. Queria
sorrir, mas não podia. Afinal, era um abutre e tinha uma reputação a zelar.
Assim, tentou parecer o mais casual possível quando respondeu que:
– Certo. Então vamos.
Ambos saíram voando, e não viram o aniversariante abraçando
sua mãe. Estavam ocupados demais, conversando.
– Você não vai tocar new age, certo?
– Não. O aniversário é seu, vamos ouvir a música que você
quiser. E o bolo será do sabor que você escolher.
– Pode ser chocolate?
Quando o aniversariante entrou em casa, eles já estavam
longe.
3 leitores:
Difícil sempre ler estes textos. Começo a suar pelos olhos, dificulta a visão... Além deste texto vir em uma boa hora para mim, especificamente. =)
Obrigado, fatal como sempre!
Rob Gordon, gostaria de lhe dizer que o este texto apareceu de forma providencial em minha vida!
Muita gratidão e parabéns pelo talento!
Nunca é demais reafirmar, mas você é foda!
Suando nos olhos como o amigo acima. =`D
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