30 de setembro de 2015

Life on Mars

Se você observasse de longe, e de cima, veria apenas um punhado de montanhas e muitas cavernas. Mas, caso você olhasse bem de frente, perceberia facilmente que eram casas. E todas com as portas fechadas, porque ninguém tinha muita paciência para varrer a poeira deixada pela areia vermelha.

E, se você estivesse olhando de perto, enxergaria até mesmo alguns movimentos. Dois conversando ali. Três naquele canto. Um trabalhando ali adiante. E, com atenção, perceberia que as portas às vezes se abriam, e alguns entravam e saíam das cavernas. Era uma pequena cidade.

E foi nesta cidade que um deles voltou para casa depois de um dia difícil no trabalho. Entrou em casa, colocou sua mala na mesa e foi até a cozinha, onde sua esposa preparava o jantar. Ao ver que o marido havia chegado, ela sorriu.

– Oi, Márcio. Tudo bom?

– Não. Dia difícil.

Ela continuou cozinhando sem continuar o assunto. Sabia que o marido tinha dias complicados no trabalho, mas também sabia que o melhor a fazer era esperar que ele continuasse o assunto. E foi o que ele fez. Pegou uma bebida, sentou-se numa cadeira e observou o nada durante alguns segundos, até que finalmente falou, mais para si mesmo que para a mulher.

– Os loucos descobriram a gente aqui.

A mulher olhou curiosa para o marido.

– Que loucos?

– Os loucos, Márcia. Os loucos do outro planeta.

Sua curiosidade virou espanto.

– Como assim, Márcio?

– Eles descobriram que tem água aqui. E eles não são burros. Ao menos, não todos. São loucos, mas não são burros. Eles sabem que se existe água aqui, é porque existe vida.

– Mas, Márcio, como você sabe disso?

– Nós monitoramos as comunicações deles. Passaram a manhã falando sobre isso. Todos eles. Depois mudaram de assunto, mas o estrago já estava feito.

– Como assim, mudaram de assunto?

– Parece que descobriram a foto de um ator pelado, algo assim, e começaram a falar disso. A gente não viu direito. Ninguém mais tinha cabeça para nada no departamento.

A mulher não respondeu. Apensar virou as costas para o marido e continuou cozinhando. Mas estava apreensiva. Como qualquer outra pessoa na cidade, sabia o que aquilo significava. Há séculos eles aprendiam, desde crianças, a temer esse momento. O problema é que com o passar do tempo, eles deixaram a preocupação de lado, achando que os loucos do planeta vizinho eram apenas uma história usada para assustar as crianças.

Mas tudo mudara alguns anos antes quando os loucos mandaram uma sonda para o planeta. Diversos conselhos foram organizados com o objetivo de encontrar uma maneira de lidar com aquilo, e ao final, o consenso da maioria foi que deveriam se esconder da sonda até que os loucos se esquecessem deles (apesar de que muitos acreditavam que jogar pedras no pequeno robô até que ele quebrasse seria mais eficiente).

O fato é que isso mudou completamente a vida das famílias que moravam ali. Avisos com os horários que o robô passaria ali por perto foram enviados, e todos eram proibidos de sair de casa naquele momento. Mas ninguém reclamou. Qualquer sacrifício que mantivesse os loucos do planeta azul afastado valia a pena.

Por um tempo, havia dado certo. Mas agora, uma brecha na segurança colocara tudo a perder. Alguém havia cometido um erro e era nisso que a mulher estava pensando quando se virou novamente para o marido.

– Mas, Márcio, como eles viram a água aqui?

– Não sei. Ninguém sabe, parece que vão investigar. Mas não faz diferença.

Ela suspirou.

– Talvez eles não venham...

– Como assim, Márcia? Você realmente acredita nisso?

– Bem...

– É claro que eles vão vir! Eles vão brigar para ver quem será o primeiro a colocar o pé aqui!

– Mas serão cientistas, não?

– Sim, Márcia. Serão cientistas primeiro. Depois, exploradores. Se fosse só isso, tudo bem. A gente conseguiria se esconder, ou encontrar algum outro jeito. Mas depois todos vão querer vir para cá! É esse o problema!

– Como assim?

– Imagine. Você vai sair de casa e tem quatro pessoas na porta tirando uma... Seulfi.

– Uma o quê?

– Eu não sei o nome direito, aquelas fotos que eles tiram deles mesmos, sabe?

– Ah, sim. Acho que sim.

– Enfim, vão estar aqui na frente de casa fazendo isso. Aí você vai até mercado e encontra uma multidão deles. Todos eles gritando, furando filas, estacionando onde não podem, querendo comer o prato da moda.

– O que é um prato da moda?

– Não sei. A gente nunca entendeu direito. Toda semana eles mudam o que comem, mas tem sempre o mesmo nome. Prato da moda.

– Entendi.

– E vão tirar foto de tudo. Da fila, da vaga do estacionamento, de mim, de você. Aí você volta para casa e aqueles que estavam tirando a seulfi aqui vão pedir a nossa senha de internet, porque a deles não pega.

– Mas a gente não tem mais i...

– Sim, a gente não tem internet porque é atrasado demais. E isso só vai piorar tudo, porque sabe o que eles vão fazer? Vão dar um jeito de entrar na internet e xingar você, dizendo que é um absurdo que você não liberou a senha da internet.  E aí todos eles vão começar a reclamar da gente, que nosso planeta não presta. Vai ser isso todos os dias.

– Mas aí eles não iriam parar de vir?

– Não, aí é pior. Márcia, eu já expliquei isso antes. Eles não fazem o que os outros falam que é bom. Eles fazem os que os outros fazem. Eles funcionam assim: se dez pessoas vão a um lugar e dizem que é ruim, a pessoa que ouve isso decide que ela precisa ir até o lugar para conhecer, porque todo mundo vai ali e ela tem que ir também. Aliás, ela tem que ir, tirar uma seulfi no lugar e dizer que o lugar é ruim.

– Mas isso não faz sentido.

– Sim, eu sei. Mas é isso que eles fazem.  E as músicas?

– O que tem as músicas?

– Os aparelhos que eles usam para tirar as fotos são os mesmos que eles escutam música. E fazem isso sem fone.

– Todo mundo ouve a música?

– Isso. Agora imagine mil aparelhos tocando músicas diferentes ao mesmo tempo, no mesmo lugar.

– Que horror.

– Sim. Que horror. É o que estou tentando dizer.

– E podemos pedir para eles abaixarem o volume?

– Não, porque eles acham que ao fazer isso você está desrespeitando os direitos deles.

– Mas não são eles que estão desrespeitando os direitos dos outros?

– Sim, Márcia, mas eles não enxergam assim. Eles acham que têm o direito de fazer tudo, e se você diz que eles estão incomodando, é porque você é opressora e egoísta.

– Mas como eles conseguem viver assim?

– Ninguém sabe. Mas agora você entende porque todos os outros planetas são proibidos de fazer contato com eles.

– E eles estão vindo para cá?

– Ainda não. Mas virão. Em breve.

– Você tem certeza? Quem sabe eles...

– Eles virão, Márcia. É certeza.

A mulher desligou o forno rapidamente ao perceber que seu jantar estava queimando. Subitamente, teve uma ideia.

– E se fôssemos embora?

– Embora para onde?

– Minha irmã sempre diz que Saturno é bom.

– É bom para aquele marido dela que não faz nada e vive com o dinheiro dos seus pais.

– Não fale assim, Márcio. A gente podia tentar...

– Não sei, Márcia. Não sei. Nossa vida inteira está aqui.

O homem levantou-se e olhou pela janela. Fitou o deserto vermelho que se estendia até o horizonte. Queria pensar em não ir embora, mas tudo o que ele conseguia ver eram os prédios que mudariam a paisagem com o passar dos anos. Conseguia enxergar tudo como se os prédios já estivessem ali. Primeiro, seria um posto dos cientistas. Depois, um McDonald’s. Uma loja das Casas Bahia. Uma agência do Bradesco. E, com a agência do Bradesco, os primeiros motoboys.

Quanto mais prédios, mais loucos. Todos tirando fotos. Todos ouvindo músicas. Todos empurrando as outras e reclamando que estavam sendo empurradas. Todos pedindo a senha da internet.

– Um dia, Márcia, você vai acordar de manhã e vai ver um político deles aqui na frente. Fazendo discurso e pedindo os nossos votos, prometendo que vai reduzir a poeira vermelha do deserto.

– Mas isso é impossível de ser feito.

– E aí outro político vai aparecer dizendo que o primeiro não se importa com Marte e só falou que vai reduzir a poeira vermelha do deserto só para desviar dinheiro, como ele sempre fez. E vai encerrar o discurso prometendo reduzir a poeira vermelha do deserto.

– É assim que eles governam?

– Sim.

Novo silêncio. De repente, o marido lembrou-se de algo particularmente assustador.

– Eles não sabem que somos hermafroditas.

– Como assim? Eles não são?

– Não. Eles se parecem conosco no fato de que alguns têm aparência masculina e outros são femininos, assim como nós. Mas a semelhança para por aí. Eles têm apenas um sexo. Não são como nós.

– Mas e qual o problema disso, Márcio?

– Márcia, você nunca ouviu falar da bancada evangélica?

2 leitores:

Cesar da Mota Marcondes Pereira disse...

Mágico, mesmo!
Excelente, Rob!
Forte abraço!

Fernanda disse...

Hahahahahahahaha a bancada evangélica vai adorar esses marcianos hermafroditas!!!!

 

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