Ele acorda todos os dias no mesmo horário que você. Usa as
mesmas roupas e segue a mesma rotina que você. Quando você vai tomar banho, ele
está lá tirando as roupas junto com você. Na hora de escovar o dente, lá ele
está, com a boca cheia de pasta. Sempre imitando os seus movimentos. Sempre
usando as mesmas roupas que você.
E não precisa ser na sua casa, pode ser em qualquer espelho.
Quando você lava as mãos no shopping, ele está junto com você, olhando para os
lados e tentando descobrir se as outras torneiras automáticas também soltam apenas
um filete de água ou se você escolheu a única que não funciona. No elevador
elegante do prédio de escritórios, ele arruma o cabelo antes da reunião da
mesma forma que você e, assim como você, tem aquela expressão de “tomara que tudo
saia bem”.
Ele parece com você. Ele faz as mesmas coisas que você. Mas
não é você.
É o Velho do Espelho.
É difícil precisar quando ele aparece. Porque seria exagero
– e até um pouco de injustiça – dizer que ele sempre esteve ali, dentro do
espelho, imitando cada movimento das pessoas. Se você perguntar a um jovem, é
bem provável que ele nunca tenha visto o Velho do Espelho. Talvez até mesmo
diga que isso é apenas uma lenda urbana e que não existe – e, se existe, jamais
vai acontecer com ele. Jamais vai acontecer no espelho dele.
Os jovens nunca viram o Velho do Espelho, mas isso porque o espelho
deles ainda tem apenas um reflexo ingênuo e com aquele ar confiante de quem vai
mudar o mundo. Por isso, eles duvidam da existência do Velho do Espelho.
O que eles não sabem é que o Velho do Espelho sempre
aparece. Tudo o que ele precisa para isso é que o Tempo passe sem as pessoas
perceberem. E o Tempo sabe fazer isso como ninguém. E nem pense em reclamar com
o Tempo sobre isso; ele apenas daria de ombros e fingiria que não é com ele,
pois o Tempo normalmente se comporta como uma criança, e simplesmente se recusa
a assumir responsabilidade pelo que faz.
Cedo ou tarde – sempre mais cedo que imaginamos, na verdade –
ele desafia a arrogância dos jovens e surge no espelho. E você nunca percebe
quando isso acontece. Ele sempre aparece na hora que escolhe aparecer.
Um dia, você olha no espelho e vê que seu reflexo não está
mais ali. Quem está ali é o Velho do Espelho. E, pior, você nem viu quando a
troca foi feita. Ninguém vê o Velho do Espelho chegando, as pessoas apenas
percebem sua presença e só então reparam que ele já estava ali há algum tempo, elas
que não tinham prestado atenção porque estavam pensando em outra coisa.
(Ninguém sabe o que o Velho do Espelho faz com os reflexos
originais das pessoas. Alguns dizem que ele se alimenta deles, outros dizem que
os reflexos são obrigados a trabalhar como escravos numa fábrica de ampulhetas.
Talvez as duas teorias estejam erradas. Talvez não).
Agora, se é difícil saber quando o Velho do Espelho surgiu no
espelho, é mais difícil ainda saber quando ele vai aparecer. Muitas pessoas
tentaram fazer isso – na maior parte das vezes eram poetas e matemáticos –, mas
elas ficaram tão concentradas pensando sobre isso que o Velho do Espelho
apareceu e elas nem perceberam. Um dia, olharam no espelho e perceberam que o
Velho do Espelho estava ali, e perceberam que, na verdade, desperdiçaram a vida
inteira com medo do dia que ele iria aparecer.
Agora, se existe algo fácil nessa história toda é fácil
identificar quando o Velho do Espelho está ali, por um simples motivo: o Velho
do Espelho parece não dar muita atenção a detalhes.
Basta prestar um pouco de atenção. Seu reflexo tem rugas ao redor
dos olhos que você sabe que não possui? Não é seu reflexo, é o Velho do
Espelho. Afinal, seus pais têm aquelas rugas, não você. Seu reflexo tem cabelos
brancos que você nunca reparou? Não é seu reflexo, é o Velho do Espelho. Pois
quem possui esses cabelos são idosos que não pegam fila no mercado, não você.
O Velho do Espelho sempre erra nos detalhes. Basta prestar
atenção. É um pé de galinha que não existe aqui, uma marca de expressão que
você nunca viu ali, fiapos brancos da barba que você nunca teve acolá. Se você
perceber esses pequenos erros, saiba que seu reflexo desapareceu. Ele nunca irá
voltar. Tudo o que você tem agora é o Velho do Espelho.
Mas o modo mais fácil de identificar o Velho do Espelho é
pelo seu olhar. Ele está sempre com aquele ar cansado, um pouco abatido. Não é
nada exagerado, mas é bem fácil de perceber. Numa escala de zero a dez (onde
zero seria um olhar de “hoje eu vou sair e jogar bola durante seis horas” e dez
seria “não vejo a hora de deitar porque meus pés doem”), o cansaço do olhar do
Velho do Espelho seria um seis (que, segundo, especialistas, é a escala
conhecida como “eu devia ter inventado uma desculpa para não ir nessa festa, quero
ficar em casa vendo televisão”).
Ele está sempre com essa expressão um pouco desanimada, como
se estivesse constantemente se perguntando o que aconteceu com os anos que eu
tinha pela frente, um pouco inconformado que a molecada do escritório consegue
sair durante a semana e trabalhar no dia seguinte, e até mesmo preocupado se
vai esfriar – o Velho do Espelho odeia frio e sempre acha que vai esfriar.
Mas não se deixe enganar: o Velho do Espelho não é mau. Ele
não surge no espelho das pessoas para prejudicá-las (mas ele realmente detesta
as pessoas que percebem que é ele no espelho, mas fingem que não, que estão
vendo o mesmo reflexo de anos atrás, basta diminuir um pouco a luz e pronto).
Mas, na maior parte dos casos, ele faz isso apenas porque tem que fazer. Porque
ele faz isso desde que inventaram o espelho e vai continuar fazendo isso
enquanto o tempo passar.
Quer dizer, isso é o que acham. Afinal, ninguém nunca
perguntou ao Velho do Espelho o que ele está fazendo ali. Pois, se
perguntassem, ele responderia apenas que está para lembrar as pessoas que “as
coisas vão passar mais rápido que você imagina e que, ao contrário do que você
imagina, elas não têm volta”. Isso é tudo o que o Velho do Espelho quer dizer
para as pessoas. Mas ninguém perguntou.
E isso explica o olhar dele.
Porque ele não tem um olhar cansado. Ele tem um olhar
triste, pois sabe que as pessoas nunca aprendem a lição. A não ser quando é
tarde demais.
3 leitores:
E este FDP ainda tem coragem de dizer que queria escrever tão bem como a gente acha que ele escreve.
E, sobre o tema, eu sempre tive uma imagem minha muito mais infantil do que a realidade. Então acho que, de certa forma, já convivo com o Velho do Espelho desde jovem.
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