O primeiro gole desceu arranhando sua garganta, mas logo se
espalhou confortável pelo corpo. Ergueu os olhos e, com cuidado, estudou o
rosto dela, comparando-o com aquele que tinha guardado em sua memória. A mulher
à sua frente há muito deixara de ser a menina de que ele se lembrava, mas seus
olhos ainda brilhavam com uma curiosidade quase infantil.
E ele estremeceu baixinho por estar na frente dela.
Ela não bebeu diretamente. Mais cuidadosa, deixou o uísque
se espalhar pela boca antes de engoli-lo. Só então, embalada pelo calor que
desceu pela garganta, olhou diretamente dentro dos olhos dele, algo que não
havia feito até então naquela noite. E soube que, se procurasse com cuidado,
encontraria a si mesmo dentro do olhar.
E suspirou de ansiedade por estar na frente dele.
Ela estava no sofá e ele em pé na sala. Ele andava sem sequer
tentar esconder sua agitação; ela esperava que ele não reparasse em seu
nervosismo. Cada um queria ser o dono de uma situação que esperaram por anos
para acontecer – sem jamais duvidar de que aconteceria. Após alguns instantes
de silêncio, a bateria de Take Five deslizou para dentro da sala, seguida pelo piano e por um saxofone alto quase improvisado que prometeu manter em segredo qualquer coisa que fosse falada na
sala.
E por um instante, o mundo foi formado apenas pela música que
embalava uma saudade nunca assumida em palavras. Ela acendeu um cigarro e
deixou a fumaça escorregar pelos lábios. Ele colocou mais dois dedos de uísque
em seu copo somente para gastar o tempo. Ambos pensavam no que dizer, mas
nenhum disse nada. O saxofone se foi, a bateria solou junto com o piano de
forma cuidadosamente desgovernada e eles não se importaram.
Era um a orquestra do outro, dançando um dueto que apenas eles
conheciam.
A música continuou, fazendo pouco caso dos anos em que
haviam passado sem se ver, e desafiando-os a continuarem a conversa que haviam
dançado no bar, ao se encontrarem por acaso, num esbarrão que ambos aguardavam
desde o adeus amargo de anos atrás. Do corredor para a mesa, da mesa para o
carro, do carro para o apartamento, numa dança de perguntas e respostas
improvisada e casual de sábado à noite, que percorria todos os assuntos. Todos
menos aquele que importava.
Agora, sozinhos num palco escondido e sem plateia, poderiam terminar
a música iniciada anos antes. Mas nenhum arriscava o primeiro passo. Mas devoravam-se
com os olhos.
Subitamente, o piano escondido dentro do aparelho de som no
canto da sala deixou escapar as primeiras notas de ‘Round Midnight. Como se
carregado pelas notas musicais, ele se aproximou dela e a puxou gentilmente pela
mão, fazendo com que ela se levantasse. Ela flutuou sobre a música, se
aproximando dele. Seus corpos se colaram como não se fazia mais, como há muito
sonhavam escondido.
E abraçados, dançaram em silêncio. Ele segurando sua cintura,
ela com os braços em seu ombro. Os olhos dele nos olhos dela, a respiração dela
na pele dele.
Temiam que se falassem o momento se quebraria como um sonho,
ou que um beijo os levaria de volta à realidade. Naquele momento, apenas dançavam
anos de saudade. Ela redescobrindo o cheiro dele, reprendendo o toque dela.
Ao redor deles, a música trazia lembranças de beijos esquecidos,
de madrugadas suadas, de nomes gemidos ao pé de ouvido e de promessas de que seria
para sempre. Lembranças que desafiavam a realidade e se rodavam cada vez mais
rápido, como num caleidoscópio que explodia em cores todos os anos de saudade.
Quando a música se calou, continuaram dançando em silêncio.
Ela entrelaçada em seus braços e ele segurando seus cabelos com força de
amante. Testavam a si mesmo, esperando para ver qual deles falaria a primeira
frase. Esperando para ver qual deles falaria a única frase.
Um deles explodiu, sussurrando.
– Eu estou queimando de saudade.
A frase terminou com os lábios explodindo entre mordidas de
alívio e beijos de saudade, já a caminho do quarto. Atrás deles, roupas e anos
perdidos se espalhavam pelo chão do apartamento. Os copos de uísque foram abandonados e esquecidos junto com o aparelho de som. John Coltrane repetia a frase “a love supreme” continuamente, numa espécie de oração cujo significado somente eles
poderiam entender.
Quando a música acabou, os gritos ainda rasgavam a madrugada.
1 leitores:
Amor é sempre improviso, mesmo quando se é experiente ;)
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