25 de janeiro de 2015

Improviso

O primeiro gole desceu arranhando sua garganta, mas logo se espalhou confortável pelo corpo. Ergueu os olhos e, com cuidado, estudou o rosto dela, comparando-o com aquele que tinha guardado em sua memória. A mulher à sua frente há muito deixara de ser a menina de que ele se lembrava, mas seus olhos ainda brilhavam com uma curiosidade quase infantil.

E ele estremeceu baixinho por estar na frente dela.

Ela não bebeu diretamente. Mais cuidadosa, deixou o uísque se espalhar pela boca antes de engoli-lo. Só então, embalada pelo calor que desceu pela garganta, olhou diretamente dentro dos olhos dele, algo que não havia feito até então naquela noite. E soube que, se procurasse com cuidado, encontraria a si mesmo dentro do olhar.

E suspirou de ansiedade por estar na frente dele.

Ela estava no sofá e ele em pé na sala. Ele andava sem sequer tentar esconder sua agitação; ela esperava que ele não reparasse em seu nervosismo. Cada um queria ser o dono de uma situação que esperaram por anos para acontecer – sem jamais duvidar de que aconteceria. Após alguns instantes de silêncio, a bateria de Take Five deslizou para dentro da sala, seguida pelo piano e por um saxofone alto quase improvisado que prometeu manter em segredo qualquer coisa que fosse falada na sala.

E por um instante, o mundo foi formado apenas pela música que embalava uma saudade nunca assumida em palavras. Ela acendeu um cigarro e deixou a fumaça escorregar pelos lábios. Ele colocou mais dois dedos de uísque em seu copo somente para gastar o tempo. Ambos pensavam no que dizer, mas nenhum disse nada. O saxofone se foi, a bateria solou junto com o piano de forma cuidadosamente desgovernada e eles não se importaram.

Era um a orquestra do outro, dançando um dueto que apenas eles conheciam.

A música continuou, fazendo pouco caso dos anos em que haviam passado sem se ver, e desafiando-os a continuarem a conversa que haviam dançado no bar, ao se encontrarem por acaso, num esbarrão que ambos aguardavam desde o adeus amargo de anos atrás. Do corredor para a mesa, da mesa para o carro, do carro para o apartamento, numa dança de perguntas e respostas improvisada e casual de sábado à noite, que percorria todos os assuntos. Todos menos aquele que importava.

Agora, sozinhos num palco escondido e sem plateia, poderiam terminar a música iniciada anos antes. Mas nenhum arriscava o primeiro passo. Mas devoravam-se com os olhos.

Subitamente, o piano escondido dentro do aparelho de som no canto da sala deixou escapar as primeiras notas de ‘Round Midnight. Como se carregado pelas notas musicais, ele se aproximou dela e a puxou gentilmente pela mão, fazendo com que ela se levantasse. Ela flutuou sobre a música, se aproximando dele. Seus corpos se colaram como não se fazia mais, como há muito sonhavam escondido.

E abraçados, dançaram em silêncio. Ele segurando sua cintura, ela com os braços em seu ombro. Os olhos dele nos olhos dela, a respiração dela na pele dele.

Temiam que se falassem o momento se quebraria como um sonho, ou que um beijo os levaria de volta à realidade. Naquele momento, apenas dançavam anos de saudade. Ela redescobrindo o cheiro dele, reprendendo o toque dela.

Ao redor deles, a música trazia lembranças de beijos esquecidos, de madrugadas suadas, de nomes gemidos ao pé de ouvido e de promessas de que seria para sempre. Lembranças que desafiavam a realidade e se rodavam cada vez mais rápido, como num caleidoscópio que explodia em cores todos os anos de saudade.

Quando a música se calou, continuaram dançando em silêncio. Ela entrelaçada em seus braços e ele segurando seus cabelos com força de amante. Testavam a si mesmo, esperando para ver qual deles falaria a primeira frase. Esperando para ver qual deles falaria a única frase.

Um deles explodiu, sussurrando.

– Eu estou queimando de saudade.

A frase terminou com os lábios explodindo entre mordidas de alívio e beijos de saudade, já a caminho do quarto. Atrás deles, roupas e anos perdidos se espalhavam pelo chão do apartamento. Os copos de uísque foram abandonados e esquecidos junto com o aparelho de som. John Coltrane repetia a frase “a love supreme” continuamente, numa espécie de oração cujo significado somente eles poderiam entender.

Quando a música acabou, os gritos ainda rasgavam a madrugada.

1 leitores:

Cesar da Mota Marcondes Pereira disse...

Amor é sempre improviso, mesmo quando se é experiente ;)

 

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