E o deus vingativo se aproximou da pequena aldeia.
Os habitantes ergueram os olhos assustados para o céu.
Gritaram em pânico. Alguns imploraram por clemência, por uma segunda chance,
por um sinal - qualquer sinal – de misericórdia. Nenhum correu para dentro de
casa. Estavam assustados demais para pensar em fugir e, além disso, sabiam que
não havia para onde escapar.
Com a altura de uma montanha e uma cabeça que chegava aos
céus, o deus observou a tudo em silêncio. Vestia roupa cinza e trazia em suas
mãos um saco.
As lendas antigas rezavam que era neste saco que ele
colecionava as almas que conseguia capturar. Apanhava os corpos ainda vivos em
qualquer lugar – na floresta, na beira dos rios – e os guardava no saco. Ao
serem colocados dentro do saco, os corpos desapareciam. Sobravam apenas suas almas,
que eram usadas como alimento pelo deus.
Mas as lendas eram tão antigas – e fazia tanto tempo que o
deus não se aproximava das cidades – que estavam quase esquecidas. Eram vistas
como contos para assustar as crianças, mas mesmo as crianças não sentiam mais
medo. Achavam graça da história de um ser gigante que coleciona almas. Somente
os menores, as crianças bem pequenas, se assustariam com uma mentira dessas.
Mas a mentira agora estava acontecendo. Soltando uma
exclamação – entre os vários poderes dos deuses, está a capacidade de soltar
exclamações e interrogações puras, algo que as cordas vocais dos habitantes da
vila eram incapazes – estendeu o braço no meio das casas e comércios. Todos
correram para longe, mas o deus não deu atenção. Já havia escolhido seu alvo.
E o apanhou quase com displicência, erguendo seu corpo aos
céus e o analisando contra a luz. Soltando outra exclamação – esta de aprovação
– que fez com que os prédios tremessem, guardou o habitante da aldeia em seu
saco e começou a correr os olhos pela aldeia em busca dos corpos que pareciam
ter a alma mais apetitosa.
Todos gritavam assustados, tentando se esconder dentro dos
prédios. Crianças choravam procurando por seus pais no meio da multidão. O
telhado de um prédio desmoronou quando o deus esbarrou com seu cotovelo nele.
Mulheres choravam e religiosos oravam enquanto o deus apanhou outro habitante,
guardando-o em seu saco.
Era preciso um herói. Mas heróis também eram personagens de
lendas antigas. Não existiam. Os habitantes da aldeia não eram heróis, mas sim
pessoas comuns, preocupadas somente com suas próprias vidas, suas famílias e
suas colheitas – alguns diziam que era justamente isso que fazia um herói, mas
não era esse tipo de heroísmo que iria deter o deus ou sua fome.
Derrubando prédios em busca de almas, o deus escolheu novas
vítimas. Foram seis no total. Mas como esta história aconteceu antes da invenção
da estatística, ninguém levou isso em conta. O número de vítimas era
incontável. Não eram apenas seis habitantes, eram famílias inteiras destruídas.
Crianças que se tornaram órfãs, habitantes que perderam o grande amor de suas
vidas, animais que agora teriam que encontrar seu caminho sem a companhia de
seus donos.
Mas a grande vítima talvez tenha sido a aldeia como um todo.
Agora, eles sabiam que as lendas eram verdade. Agora, eles viveriam com medo o
tempo inteiro, olhando aos céus sempre que possível, torcendo pelo melhor e
esperando pelo pior.
O deus não se importava com isso. E, como qualquer deus que
não se importa com nada, virou as costas e foi embora, seguindo seu caminho deixando
atrás de si uma aldeia para ser reconstruída, apenas para viver com medo de ser
destruída.
Esta pode ser uma história sobre deuses destruindo vilas e
se alimentando de almas. Mas também pode ser uma história sobre eu escolhendo
maçãs no mercadinho ao lado de casa.
1 leitores:
Quando lia a crônica imaginava peixes em um aquário no pet shop, apesar de que o saco cinza faz muito mais sentido para as maçãs.
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