Foram semanas de trabalho.
Todos os dias, o Escritor passava horas no escritório
trabalhando em seu romance. E, a cada parágrafo, se convencia de que a história,
sobre o casal em férias que começavam a reavaliar seu relacionamento enquanto ambos
permaneciam trancados num quarto de hotel em meio a uma nevasca, seria sua
obra-prima. O drama daquele casal seria o conto pelo qual ele seria lembrado.
Para isso, impôs-se uma rotina rígida. Pela manhã, revisaria
todo o trabalho do dia anterior. À tarde, escreveria os trechos novos. Diálogos
pesados e densos; discussões que mascaravam a morte do amor; reflexões e
confissões vazias de ambos. Tudo cercado pela imensidão branca que se estendia
a perder de vista pela janela do hotel.
Para se inspirar, trabalhava com fotos ao lado da tela.
Fotos antigas de cidades européias, imagens de cidades cobertas por neves.
Frio. Solidão. Vazio. O clima da cidade – que ele nunca assumia abertamente
qual era, mas imaginava secretamente ser Moscou – refletia a desolação dos
personagens. A cada trecho, conseguia associar o frio da temperatura à
inexistência de um casal.
Foram semanas de trabalho até que ele emperrou em um trecho.
Já estava acostumado com os personagens. Laura, calculista e regrada, via no
marido um substituto para o pai ausente e jamais se entregara totalmente. Lucas,
por sua vez, era impulsivo e sonhador. E havia aberto mão de todos os seus
sonhos em troca do casamento.
O Escritor parou e observou a tela e silêncio, pensando.
Lucas havia acabado de confessar ter traído a esposa no
primeiro ano de casamento, em uma festa. Laura permanecia ouvindo tudo de
costas observando a neve pela janela. O Escritor sabia o que ela estava
sentindo. Sabia que seu orgulho a impediria de chorar ou gritar. Estava analisando
a situação friamente. Calculando.
- Eu acho que quero uma cerveja, respondeu Laura.
O Escritor piscou surpreendido. Laura jamais falaria isso. Ela
permaneceria em silêncio, trancada dentro de si. Era o jeito dela. Apagou a
frase e tentou avançar no diálogo.
- Você não quer? Uma cerveja? Eu quero. Gelada. Estalando.
Curiosamente, o diálogo soou natural. Ele já conhecia bem os
personagens, sabia quando eram eles que falavam. E decididamente foi Laura quem
disse isso. Frases curtas. Pausadas. Frias. Apagou o que havia digitado e esfregou
os olhos. Estava cansado. Olhou para a janela do escritório e viu o Sol
brilhando do lado de fora. Abriu a internet e conferiu as notícias. Todos os
sites falavam da mudança brusca do tempo na cidade. Onda de calor. Temperaturas
recordes.
Era isso. O calor estava atrapalhando sua inspiração. Era
impossível construir uma cena num hotel cercado pela neve com o termômetro passando
dos trinta graus. Foi quando o Escritor se convenceu de que não era Laura
falando, era ele. Assim, decidiu aproveitar o calor e tirar um dia de folga.
Comprou quatro garrafinhas de cerveja e passou a tarde vendo
filmes. Laura e Lucas podiam esperar até o dia seguinte.
Na manhã seguinte, acordou e olhou a temperatura. 29 graus.
E não eram nem oito da manhã. Sentou-se no computador, sem camisa. Não havia
muito para revisar, assim decidiu continuar de onde tinha parado. Releu o
último trecho. Lucas confessara a Laura de sua traição. Ela estava na janela
olhando a neve. Seu relacionamento estava por um fio.
Subitamente, Lucas se levantou.
- Como de costume, você não vai falar nada. Vai esmigalhar
tudo dentro de você, como sempre fez com tudo. Então, vou tomar um banho
gelado.
Apagou tudo.
Algo estava muito errado. Tudo bem que estava fazendo calor,
mas daí a não conseguir mais escrever já era exagero. Fez uma promessa para si
mesmo. Daria uma volta para arejar as ideias, e, à tarde, terminaria pelo menos
um capítulo. De qualquer jeito.
Assim, foi à padaria, tomou um suco gelado e foi passear
pelas avenidas. Comprou um jornal, observou vitrines e pessoas andando de
bermuda e camiseta pelas ruas. Sentou-se num banco, folheou o jornal e,
sentindo o suor escorrendo pelas costas, comprou um sorvete. Deu mais uma volta
e, próximo à hora do almoço, entrou num restaurante e pediu uma salada e um
suco. E pediu para o garçom ligar o ventilador.
De volta ao escritório, encontrou Laura e Lucas na mesma
posição.
Releu o capítulo inteiro, mudando detalhes em alguns
trechos, e continuou a escrever.
- Laura? Você não vai falar nada?
- Não. Não há o que falar agora.
- Como assim, agora? O que mais precisamos esperar?
- Só alguns minutos. Eu vou colocar um biquíni, aí
conversamos.
O Escritor deu um berro de raiva. O calor estava acabando
com seu texto. Apagou tudo, foi até o banheiro, tomou uma ducha gelada e voltou
para o computador. Lá estavam Laura e Lucas, com a barreira da confissão da
traição entre eles. Uma barreira intransponível, marcada pelo silêncio e pelo
clima frio.
Estalou os dedos, respirou fundo. Olhou as fotos, em busca
da inspiração que somente o frio traria. Fechou os olhos e se imaginou no
Alasca, ignorando o filete de suor que descia pelas suas costas. Era a vez de
Laura. Respirou fundo e começou a digitar.
- Lucas, eu sempre soube da traição.
- Mas você nunca demonstrou isso.
- E o que eu ganharia demonstrando? O fim do casamento?
- Laura, eu queria...
- O quê?
- Não sei. Não sei ao certo. Acho que uma raspadinha. De
morango. Será que eles têm isso aqui no hotel?
O Escritor de um murro na mesa e apagou a frase. Levantou-se,
ligou o ventilador e voltou para mesa. Apagou a última frase.
- Eu queria ver que você se importa. Pelo menos uma vez na
vida.
- Eu me importo.
- Mas você não demonstra. Você nunca demonstra nada, nem
para você mesma, quanto mais para os outros. Você se esconde por trás deste
discurso, sem... O que você está fazendo?
- Tirando a roupa. Vou para a piscina do hotel. Você vem?
Devem vender raspadinha ali.
Resignado, o Escritor apagou tudo socando o teclado. Foi até
a janela e olhou o Sol brilhando, resmungando algo sobre o calor destruir seu romance.
Consultou os sites de previsão do tempo e a onda de calor
duraria pelo menos mais duas semanas.
Estava escrevendo há semanas. Não iria parar por causa do clima.
Nos dias que se seguiram, tentou de tudo. Comprou um ventilador
mais forte. Tentou trabalhar pelado. Comprou um ar condicionado. Trabalhou pelado.
Olhava as fotos das capitais européias, buscando desesperadamente o frio dos
dias anteriores. Comprou um enfeite que simulava um castelinho com neve dentro
de um globo, chacoalhando o negócio o tempo todo, aos gritos de “neva, porra!”
E, dias depois, caiu doente depois de passar a tarde tentando
trabalhar, digitando pelado, com o ar condicionado ligado e os pés mergulhados num
balde cheio de gelo. Foi encontrado pela empregada caído no chão, com quase
quarenta graus de febre e levado às pressas para o hospital. Pneumonia.
Passou alguns dias internado, e teve alta antes do calor
passar. Tentou voltar a trabalhar no texto, mas desistiu pouco depois. Havia
perdido os personagens.
E sempre que os amigos perguntavam em que pé estava o
romance, ele contava que havia desistido de tudo, explicando:
- Desisti. Parei de escrever quando eles foram para a praia.
- Praia?
- Sim. A última vez que olhei o que estava escrito, os dois
estavam na praia. Bêbados, correndo com uma bola colorida nas ondas e chutando
água uns nos outros, feito dois caipiras.
- Mas você não imaginava a história num quarto de hotel em Moscou?
- Não quero falar sobre isso.
6 leitores:
Gostei muito dessa crônica, principalmente pelo embate que permeia todo o texto: Obra-prima versus limitações.
Me lembrou da humanidade esquecida nos grandes projetos, na sede de vitória, no pódio... Enfim.
Obrigado!
Parabéns por seu dom.
"Quando ele finalmente conseguiu se sentar para terminar aquela obra, ele estava tão frustrado que a mudou quase que completamente. Mas, acabou por fim conseguindo realizar uma obra-prima.
O nome do Escritor? Stephen King."
/\ acho que minha referência ficou um pouco forçada, mas foi o que eu fiquei pensando durante o seu texto inteiro.
Eu nunca comento (eu sei, eu sei, pode brigar comigo) mas tive que comentar nesse. Me identifiquei com o Escritor. Muito bom mesmo :) meu segundo preferido, só perdendo para o Two of Us que é amor demais.
Isso já me aconteceu algumas centenas de vezes. Perfeito. Adorei o texto: e nem é só por ter um personagem com meu nome.
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