(tema sugerido por @nataliamaximo)
Os dois estavam sentados na garagem da casa do mais novo. Um era gerente de uma loja de sapatos. O outro, vendedor de seguros. Estavam afinando suas guitarras, distraídos e de forma quase displicente. Era um sábado de manhã.
Há décadas tocavam juntos aos sábados de manhã. Na mesma garagem.
- Eu sempre sou o primeiro a chegar, disse um deles.
- Claro. Afinal de contas, foi você quem montou a banda.
- Tem razão. Deve ser por isso.
- Enfim... E a vida, como está?
- Ah, o de sempre. Muito trabalho. Muita correria.
- Aqui também. Nunca vai mudar.
- E acho que vou me divorciar.
- Como assim? Você não disse nada!
- Ah... Tentei ligar para você esta semana, mas você não estava em casa. Era terça-feira, acho.
- Estava na reunião do colégio das crianças. Desculpe.
- Não tem problema. Eu conversei com os outros rapazes já, eles estão sabendo. Mas não há muito que dizer. O amor acabou, brigamos o tempo inteiro. É melhor nos separarmos.
- Sinto muito. De verdade.
- Não, não precisa se preocupar. Fico com receio pelo garoto, só. Ele vai sofrer mais.
- É sempre assim nos divórcios.
- Escutei um carro parando aí na frente. Será que alguém chegou?
- Acho que sim.
Mais baixo que os outros, o barbudo entra na garagem. Não traz instrumento algum, pois sua pequena bateria está pronta e coberta por um pano, num canto da garagem. Enquanto senta-se no banquinho, começa a resmungar.
- Minhas costas estão me matando. Vocês fazem ideia do que eu tenho passado nos últimos dias?
- Ainda sofrendo com a reforma da casa?
- Sim. Agora, ela quer que eu pinte a casa inteira. Inteira! Eu passei a semana subindo e descendo escadas com um balde de tinta! Que inferno.
- Vocês já pensaram em contratar alguém?
- Está brincando? Você sabe quanto um contador ganha hoje em dia?
- Não.
- Pouco. Isso sem falar nos impostos. Estão me comendo a alma.
- Impostos? Hum... Eu comecei a escrever uma música uma vez sobre um coletor de impostos. Mas não terminei. Acho que perdi o papel com a letra.
- Era sobre isso que eu queria falar com vocês hoje. Vocês dois são guitarristas, não precisam se mexer muito. Mas as minhas costas estão realmente me matando hoje. Então, vamos com calma, certo? De preferência, músicas lentas e mais nada.
- Não vou prometer nada. Você sabe que eu gosto de agitar.
- Sim, mas você não tem mais idade para agitar. Nenhum de nós tem. E hoje eu não tenho costas. Vamos com calma, certo?
- Ok, ok. Velho resmungão.
- Falando sério. Vocês são meus amigos, e um pouco de ajuda aqui cairia bem.
- Tudo bem.
- E o divórcio?
- Nada de novo. Estava falando agora mesmo que tenho medo pelo meu filho. Vai ser difícil para ele.
- Sim. Com certeza. Mas é uma fase. Ele vai superar.
- Espero. Querem começar, para esquentar?
- Sem baixista?
- Apenas para brincar. Esquentar os dedos.
- E destruir minhas costas de uma vez por todas...
- Velho resmungão.
- Mas, falando sério, sem um baixista...
- O baixista chegou!
Os três se voltam para a entrada da garagem. O quarto membro está entrando. Veste jeans e camiseta. Mas, por cima da roupa, ainda veste o jaleco do lava-rápido que a administra.
- Desculpem o atraso. Tive um problema com um cliente, arranharam o carro dele. Tive que correr para o lava-rápido.
- Não tem problemas. Temos o sábado inteiro para tocar.
- Aliás, que bom que você tocou no assunto. Eu tenho uma surpresa para vocês!
- Surpresa?
- Sim. Lembre-se esta semana, quando você falou do seu divórcio, e do medo que você tem de seu filho sofrer?
- Sim. Falei isso agora mesmo, aqui.
- Então, olhe o que eu escrevi para ele. Aqui. Segure meu baixo. Cadê aquele piano velho que fica aqui?
- Atrás do carro. Nem sei se funciona mais.
- Funciona sim. Venham até aqui.
O baixista sem baixo senta-se ao piano e experimenta as teclas. Ao se acostumar com o teclado, estala os dedos, pigarreia para chamar a atenção dos companheiros e, finalmente, começa a tocar e cantar.
- Hey Jules... Don’t make it bad... Take a sad song, and make it better…
- Quando você fez isso?
- Ontem à noite. Estava pensando no seu filho.
- Paul, você precisa perder essa mania de escrever músicas.
- Mas eu gosto!
- Olhe, eu gostei dessa também. Ela é lenta, minhas costas aguentam.
- Não é isso... Paul, nós não demos certo. Tentamos, fomos para a Alemanha, e não deu certo. Paciência. Mas você continuar escrevendo músicas, na esperança de que um dia as coisas aconteçam... Isso faz mal para você.
- Não posso evitar. Eu gosto de compor...
- Não importa. Você cria expectativas e se machuca. Os Beatles não decolaram. Admita isso para você mesmo.
- Bom... Tudo bem.
- Tentamos e não deu certo. Paciência.
- Tudo bem, tudo bem.
- Mas obrigado por compor para o meu filho.
- De nada. Vamos tocar o quê?
- Que tal Chuck Berry?
- Roll Over Beethoven?
- Então, as minhas costas...
- Ringo, pare de ser reclamão.
- Roll Over Beethoven está ótimo. Onde está meu baixo?
- Aqui.
- Obrigado. Prontos?
- Quando você quiser. George, você começa?
- Um, dois, três, quatro!
E tocaram o sábado inteiro. Tocavam todos os sábados.
Mas somente para eles.
12 leitores:
Dava tudo pra ver um ensaio ruim desses.
Rob, vc lê pensamentos? Nem falo mais nada, ó.
Duca!
Sabe que de vez em quando eu penso nisso? Outro dia até pensei nisso em relação exatamente ao Paul McCartney.
Imagine a horda de pessoas que poderiam ter decolado e não conseguiram. À vezes por conta de míseros detalhes: por não ter virado uma esquina, por ter escolhido sair de casa mais tarde, e por aí vai.
Muito bom.
Ah! E já mandei minha sugestão para seu celular. Vê se olhaí, pô!
Agora me ocorreu: o Lennon podia ser dono de padaria...
Camarada, acho que vou ter de fazer um intervalo. Depois de eras sem ficar gripado, hoje aconteceu, e amanhã (hoje) meu dia vai ser meio cheio.
Mas vou deixar o computador ligado e tento dar uma passadinha de vez em quando para ver como anda.
A luta continua!
Só mais uma!
Esqueci de comentar que isso me lembrou aquelas histórias da Marvel "E se...", que mostravam como deveriater sido se alguma coisa na vida dos super-heróis saisse diferente. Tipo E se Peter Parker fosse mordido por um tamnduá radiotivo, em vez de uma aranha?
Universo alternativo. Só podia ser coisa de nerd ;P
E só poderia ficar ótimo, como ficou.
Curti muito, Rob, ficou como pensei! Eu tinha imaginado o Paul como contador, mas ele ficou melhor como dono de lava-rápido - que nem passou pela minha cabeça.
E todo dia agradeço a Deus por eles terem deslanchado. Não sei se foi destino, mas ainda bem que aconteceu.
Juro que imaginei o Ringo carregando baldes de tinta escada acima e escada abaixo. Não foi uma visão muito legal... mega divertido o texto!
Coitado do Paul...
Ainda bem que deu certo!
Eu suspirei quando terminei de ler... ficou lindo!
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