13 de maio de 2010

Estilos

– Eu adoro escrever diálogos, disse o Cronista.

O Romancista o olhou de cima a baixo, calmamente. Estavam bebendo há horas, e ele sabia que, de forma inevitável, chegariam a este assunto. Sempre acontecia isso, e sempre discordavam. Detestava escrever diálogos, mas não sabia como continuar a conversa, dada a empolgação do outro a respeito do assunto. Mas era verdade: sempre odiara diálogos. Gostava mais de criar um clima para o leitor, explorando a descrição dos locais e a psicologia dos personagens.

– Porque é rápido, sabe? Um personagem fala, o outro responde, e o leitor fica sabendo mais sobre eles, ali, entre um travessão e outro.

Travessão. A simples menção da palavra fez o Romancista tremer. Detestava aquilo. Achava travessão algo totalmente desnecessário na língua portuguesa. Seus personagens não precisavam falar, eles o faziam por atitudes, por decisões. Sempre que se via encurralado num trecho em que não conseguiria escapar sem travessões, enchia a boca dos personagens de palavrões, somente para deixar clara sua revolta com aquilo.

– E eu vou ser sincero. Quando escrevo somente com diálogos, escrevo muito rápido. Modéstia à parte, eu sou bom nisso.

Fazendo uma careta, o Romancista não teve coragem de concordar, nem mesmo em nome da diplomacia. Para ele, travessão era algo feito sob medida para escritores sem recursos. Assim, para não ser obrigado a falar, levantou o copo e sorveu o conteúdo em grandes goladas.

– Está boa demais essa cerveja, não?

Foi obrigado a concordar com a cabeça. Realmente, estava deliciosa. Cada vez que levava o copo à boca, suas papilas gustativas eram inundadas de prazer, aliadas a uma sensação refrescante que não experimentava há tempos. Estavam bebendo já há certo tempo, mas o prazer de sorver a bebida se mantinha intocável. Já havia começado a experimentar uma leve sensação de embriaguez, o que apenas aumentava o sabor da cerveja em sua boca.

– Mas, voltando ao que estávamos falando..., o Cronista interrompeu seus pensamentos.

O Romancista ergueu os olhos, atento e observou fixamente o Cronista, dando uma espécie de autorização para que ele continuasse. O companheiro, porém, escolheu virar o conteúdo do copo antes de começar a falar, e, quando o fez, ainda tinha restos de espuma da bebida num dos cantos da boca.

– O que eu acho mágico em construir diálogos é que você apresenta não apenas a personalidade do personagem, mas é possível descrever até mesmo onde eles estão. Por exemplo, se eu, no meio de uma conversa qualquer, colocar um dos personagens perguntando se não é hora de chamar o garçom, o leitor compreende que eles estão num restaurante, ou num bar.

Segurando a risada, o Romancista começou a pensar sobre isso. Jamais trataria seus restaurantes assim, apenas mandando um dos personagens convocar o garçom. Pelo contrário, ele descreveria o local como se houvesse passado boa parte de sua vida, fazendo com que o leitor sentisse a textura puída das toalhas vermelhas que cobriam as mesas, deixando-o caminhar livremente pelo salão com piso de madeira encerado, e dando detalhes da vida de cada um dos funcionários, somente pelo que se podia observar deles. Estava começando a bolar um gerente velho e divorciado, com os cabelos levemente grisalhos e smoking branco, quando foi interrompido pelo Cronista, que parecia adivinhar seus pensamentos.

– Afinal, pense comigo: se os personagens forem um casal discutindo a relação, o leitor não precisa saber se um dos garçons é velho ou novo, ou se é solteiro ou casado. Isso não importa ao leitor.

Importava. Importava e muito, e o Romancista sabia disso. Aquele gerente envelhecido daria o tom da conversa entre o casal: a infelicidade dele, fruto de um casamento frustrado e de insatisfação profissional, iria se refletir na conversa dos personagens. O tom amargo da vida do gerente iria irradiar para todos os personagens, criando páginas de melancolia. E sem nenhum travessão!

– Pense, por exemplo, em todas as vezes que você brigou com uma namorada em um restaurante. Você se lembra dos garçons? Do gerente? Não, você se lembra da briga. Lembra de uma ou outra frase. Mas não lembra se o pão era italiano ou francês.

O Romancista estreitou os olhos, enquanto o Cronista pedia mais cerveja. Era evidente que o pão era italiano. Era o pão preferido de seu personagem masculino, e ele escreveria um longo parágrafo sobre a ironia de ele estar comendo um dos seus alimentos prediletos, mas com o sabor amargo de estar ali, às portas de um divórcio.

– Pão francês, pão italiano... Quem se importa?

Sorriu, fingindo prestar atenção. Estava ocupado pensando na cena. Poderia até mesmo falar da sardela... A ardência da sardela em sua boca contrastando com a falta de calor que haviam experimentado na cama, nos últimos meses. Não, não ficaria bom. Cenas de sexo, mesmo com o sexo sendo rotineiro e desapaixonado, jamais poderiam ser comparadas com alimentos, ficaria péssimo. O sexo deveria ser tratado de forma mágica, quase sobrenatural, uma redenção de dois personagens...

– Olhe aquela loira do outro lado da rua!, exclamou o Cronista.

O Romancista ergueu os olhos e se deparou com a mulher mais linda que havia visto. Deveria ter cerca de vinte anos, e andava apressadamente pela calçada. Seus cabelos, cortados logo abaixo da nuca, brilhavam ao Sol, contrastando com o vermelho dos lábios. Seu corpo era quase uma dádiva, com seios fartos e coxas firmes, ressaltadas pela blusa apertada e pela minissaia. Andava de salto, o que deixava os músculos da perna torneados, e sua pele bronzeada absorvia não apenas o Sol, como também os olhares de todos os homens da rua.

– O que é aquela mulher, meu Deus do céu?, perguntou o Cronista, mais para si mesmo que para o amigo.

Ela parecia flutuar entre as outras pessoas. O Romancista vibrou com o contraste do que via. Ela era um anjo, mas se portava como um pecado que havia criado vida e decidido passear pela cidade. Sua força, como personagem era inacreditável. Iria arruinar casamentos sólidos, levar protagonistas à loucura. Em seus livros, homens matariam por ela. Tentou imaginá-la na casa de campo que servia de cenário para o livro em que estava escrevendo, mas não conseguiu. Ela não se encaixava ali. Na empresa que pertencia à família dos personagens? Não, também não. Ela destoava muito. Começou a ficar assustado. Tinha o personagem perfeito, a mulher perfeita, e não conseguia usá-la em lugar nenhum.

– Ela se abaixou para arrumar a sandália! Olhe aquele corpo!, lamentou o Cronista.

O Romancista engoliu em seco. Não conseguia mais pensar ao certo. Estava perturbado. Respirou fundo e procurou se acalmar. Imaginou somente a loira, sem nada ao redor, e deixou que ela mesma criasse o cenário que mais gostasse. Funcionava, às vezes. E, com ela em mente, o processo começou a acontecer. Logo, móveis imaginários tomaram forma ao seu lado... Uma escrivaninha... Uma cama. Ela está deitada na cama, nua, com a franja caindo sobre um olho. Ela sorri... A janela... A janela parece familiar. A cama também... Em sua mente, a loira estava no seu quarto. Naquele quarto abafado, onde ele escrevia seus livros. Estava esperando por ele. Ela não estava no local, ela fazia parte daquele lugar, daquele quarto. E fazia parte da vida dele. Estava ali há anos. E se imaginou deixando os livros de lado e fazendo amor com ela a tarde toda, naquele cômodo pequeno e abafado. Ele precisava dela. Seu coração palpitava acelerado, sentiu o corpo vibrar.

E foi por isso que colocou o copo na mesa, vagarosamente, e, pela primeira vez naquela tarde inteira, usou o travessão, falando em alto e bom som:

– Puta que pariu. Que mulher gostosa do caralho!

Mas o Cronista não respondeu. Por causa dela, estava sem palavras.

8 leitores:

Otavio Oliveira disse...

Dava ainda pro romancista ter varios alteregos, o parnasiano, o realista, o modernista, ou o próprio cronista. alias, acho que é bem o caso :D

Marina disse...

São estilos diferentes, mas sempre prefiro os diálogos. Gostei da mistura.

Bia Nascimento disse...

A mistura das realidades foi ótima. O romancista foi fantástico mas sigo amando o Cronista.

Francine Ribeiro disse...

Palmas! Muito bom! Adorei o Romancista!

abraços

Leonardo Xavier disse...

Eu acho fantástico escritores que sabem dosar as duas coisas as descrições e os diálogos, apesar de que eu acho um tanto quanto difícil, fazer diálogos realistas, você tem que prestar muita atenção no modo como as pessoas falam.

Tyler Bazz disse...

Top5, fácil!
Sensacional!

Lua Durand disse...

hahahahha, que final fantastico!
o texto vai se desenvolvendo, e a gente vai percendo os personagens, cada um na suas falas/pensamentos.
e essa inversão de papéis no fim, ficou simplesmente fantastica!
ficou uma dualidade muito boa, palpavel até.
consegui imaginar o bar/restaurante, até mesmo as pessoas ao redor, e a mulher que passa na rua.
muito massa, Rob!
que criação


=)

Lua Durand disse...

e a gente vai percebendo...*

ainda não sei de qual gosto mais, do romancista ou do cronista.
os dois estilos, desenvolvidos por tu [em outros textos], ficam ambos muito bons!
agora eu escrevendo, ainda não sei!

 

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