O casamento entre Pedro e Fernanda não estava nada bom. As brigas, cada vez mais freqüentes, aconteciam por qualquer motivo. Às vezes, por motivo algum. Em determinados momentos, suas discussões nasciam em meio às outras, e, minutos depois, já não era possível saber mais qual o motivo da briga.
E as brigas eram estrondosas, a ponto de mexer até mesmo com o local onde moravam. Nas discussões, o apartamento era minúsculo, pequeno demais para os dois; já nas horas seguintes, os cômodos ganhavam as dimensões de salões de baile, com espaço suficiente para evitarem um ao outro por horas. E, tudo o que haviam sonhado um dia - os locais onde fariam amor, as viagens inesquecíveis, o nome dos filhos - havia escorregado para dentro do precipício que separava os dois.
Assim, a música ambiente da casa passou a ser o silêncio, que reinava absoluto após as discussões. Era um silêncio palpável, quebrado apenas pelo apresentador do telejornal, que recitava friamente as notícias do dia, ou pelos personagens da novela da noite, que viviam seus dramas e ignoravam o que acontecia deste lado da tela.
Já haviam tentado de tudo. Conversas. Sexo. Viagens. Terapia de casal. Nada havia dado resultado. Mas vale um desconto para a terapia de casal, já que foram em apenas duas sessões, pois brigaram no caminho do consultório na terceira sessão e desistiram de tudo. Assim, a distância entre os dois persistia, como um parente indesejável que resolve aceitar mais um café, quando os donos da casa estão com os olhos ardendo de sono.
A única coisa que não haviam tentado era o Bar do Luís.
O Bar do Luís ficava no bairro em que Pedro morou quando solteiro. Não era refinado, mas limpo. E, o que era melhor, nunca estava lotado, apesar de ser famoso na cidade pelos bolinhos de queijo. Pessoas de outros bairros, até mesmo de outras cidades, passavam por ali para experimentar as iguarias. A receita? O Luís, sujeito obeso e resmungão que havia herdado o bar de um tio solteiro, não revelava a ninguém. “Segredo de família”, dizia.
Mas, mais importante que isso, o bar do Luís fora o símbolo do namoro dos dois. A primeira vez que saíram juntos – era uma sexta-feira, chovia – Pedro levou a Fernanda ali, para experimentar os bolinhos. Ela adorou. A partir daí, quase toda sexta-feira iam até ali, para comer os bolinhos, colocar o papo em dia e fazer planos.
Foi ali que trocaram o primeiro beijo. Foi na mesa do canto que juraram amor eterno pela primeira vez. E foi num domingo à noite que Pedro pediu a Fernanda em casamento, no Bar do Luís. Quando voltaram da lua-de-mel, foram jantar ali na primeira noite. E, nos primeiros aniversários de casamento, faziam questão não apenas de ir até ali, mas de se sentarem na mesma mesa na qual Pedro havia pedido a mão de Fernanda.
Mas, aos poucos, foram deixando de ir ao local. Em alguns dias, Pedro reclamava do trânsito. Em outros, Fernanda dizia estar cansada. Assim, o Bar do Luís foi ficando para trás, da mesma forma que o amor que sentiram um dia: discretamente, sem chamar atenção, mas cumprindo religiosamente sua cota diária de alguns milímetros. Quando perceberam, os milímetros haviam virado metros.
Assim, o bar do Luís era a arma secreta dos dois. A última esperança para salvar o casamento. Era o refúgio para onde deveriam correr, quando haviam perdido totalmente a esperança, quando o amor havia ficado para trás. Quem sabe todos os sentimentos, sonhos e planos estariam ali, em meio aos bolinhos de queijo, guardados e embrulhados para presente, apenas esperando para serem abertos e usados novamente.
Talvez os bolinhos resgatassem a Fernanda do Pedro e o Pedro da Fernanda. Afinal, se estavam ali, é porque ambos ainda sentiam a necessidade de se agarrar em algo antes que o casamento afundasse de vez. Na melhor das hipóteses, os bolinhos de queijo viriam boiando pelo mar, oferecendo a salvação.
Na pior das hipóteses, não tinham mais nada a perder.
Sentaram-se à mesa e pediram dois chopps. O Bar do Luís continuava igual. O Luís estava um pouco mais envelhecido e visivelmente mais gordo, mas continuava sentado em seu banco de madeira atrás da caixa registradora antiga. A televisão continua ligada e sem som, no mesmo canto, cercada por quadros de antigas propagandas de cerveja, e uma foto envelhecida do tio do Luís atendendo diversas pessoas de chapéu e terno no balcão ao lado de um garçom que sorriu para a câmera.
O garçom trouxe os chopps e Luis pediu uma porção de bolinhos de queijo. O garçom já estava virando as costas quando a Fernanda falou:
– Para mim, uma porção de bolinhos de bacalhau, por favor.
O garçom fez que sim com a cabeça e saiu andando. Pedro não agüentou:
– Como assim, bolinhos de bacalhau?
– Ué, eu nunca experimentei. Quem sabe não são bons?
– É que nós sempre dividimos uma porção de bolinhos de queijo, aqui.
– Sim, mas hoje estou com vontade de experimentar os de bacalhau. Eu gosto de bacalhau.
– É que os bolinhos de queijo sempre estiveram com a gente.
– Pedro, são apenas bolinhos. Mais nada. E hoje eu quero os meus de bacalhau.
– Bom... Tudo bem.
– Eu posso comer um bolinho de queijo da sua porção, se você quiser.
– Não é isso... Não é questão de eu querer... É...
– É o que, Pedro?
– Nada, Fernanda. Nada. Se você quiser, pode pegar um bolinho, sim.
– Obrigada.
Ficaram em silêncio alguns minutos. Pedro fingia que olhava a televisão, enquanto a Fernanda fingia que lia o cardápio.
O garçom chegou com, duas travessas na mão. Colocou os bolinhos de queijo e de bacalhau na mesa. Olhou ao redor e pegou um vidro de pimenta na mesa ao lado, colocando entre as duas travessas.
Pedro Pediu mais dois chopps. Comeram os bolinhos em silêncio, pagaram a conta e foram para casa. Chegaram quando estava começando a chover. Trocaram de roupa, em silêncio, e foram para a cama. Dormiram rapidamente.
A quarta-feira seguinte marcou o aniversário do dia em que se conheceram. Mas nenhum dos dois lembrou.
Nunca mais foram ao Bar do Luís.
Mas ele continua ali. E o Luís, continua atrás do balcão, cada dia mais gordo.
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8 leitores:
É. Acontece.
Imagina-se que a partir do momento em que os dois dividissem a porção de bolinhos de queijo, tudo ficaria bem. O que lhes era tão familiar voltaria e eles se lembrariam de como era ser necessario um para o outro. No entanto, é no momento em que ela pede algo "não familiar" em que percebe-se que a "sintonia" (e eu odeio usar esta palavra) já não é a mesma. Há uma discrepância paradoxal entre os bolinhos de queijo e os de bacalhau. Não precisariam significar tanto, mas significavam. O simbolismo destes dois elementos no texto é extremamente marcante.
O tédio do cotidiano, qdo ambos chegam em casa, vestem-se e "dormem rapidamente" tem um teor lacônico e fecha o texto com a sensação de "costume incômodo". Provando uma relação crescente que começa com paixão, possível "amor", passa pelo nível estável e parte para o nível decrescente, passando pelo desconforto de discussões sem motivo plausível (ou por qualquer motivo), e chegando novamente a estabilidade do tédio.
É. Acontece. Mesmo.
Não diria triste, mas frustrante.
Frustrante que nem a vida.
Qualquer um que já viveu o nascimento e a morte de um amor sabe bem do que você tá falando nesse texto.
Dolorosamente real. Parabéns!
Beijo.
Acontece, né. Se morreu é poque não era amor.
Eu estava numa torcida frenética, acreditando que os bolinhos iriam realmente salva-los. Mas não. Tinha que ter bolinho de bacalhau!
Um desfecho impressionante, doloroso, mas impressionante. Imaginar que o mesmo que aconteceu com este apaixonado casal pode acontecer com qualquer outro dá uma dorzinha incooooomoda!
Você conseguiu mais uma vez Rob, parabéns.
Não achei triste. Achei real. Bem real.
Incrível os detalhes que vão mostrando a situação em que a relação se encontra.
E o fato de irem atrás daquela "magia" em lugares importantes de outrora, ingenuamente acreditando que isso poderia resgatar o que foi perdido. E eis que surge o bolinho de bacalhau.
E que atire a primeira pedra quem nunca fez isso...
Excelente, parabéns.
Fico pensando no que a pobre Fernanda estava pensando. Provavelmente algo como "esse cara acha mesmo que eu vou passar os próximos 30 anos da minha vida comendo bolinho de queijo?" ou então "por que ele não tenta experimentar outro bolinho? Será que a gente só pode gostar de bolinho de queijo, com tanto bolinho diferente?".
O bom e o ruim da vida é que temos a condição de permancer os mesmos na essência, mas não necessariamente gostamos das mesmas coisas a vida toda. E o maior desafio talvez seja entender que algumas pessoas não vão conseguir nos acompanhar a vida inteira; outros podem mudar na mesma direção mesmo que as mudanças não tenham se dado concomitante (são poucos, e tenho a ventura de ter pessoas assim ao meu lado); outros ainda não nos acompanharão mas nos admirarão por comermos outros bolinhos...
O erro dele foi achar que poderiam comer o mesmo bolinho pra sempre, do mesmo jeito. Não dá. Olha, tô quase escrevendo a versão da moça viu? :)
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