25 de fevereiro de 2008

Dr. Couto e a Morena do Sorriso Largo

Conferiu o número do prédio no papel que trazia na mão. Era um edifício antigo, daqueles que você só encontra no centro da cidade. Mas estava bem conservado, e o cheiro de tinta fresca, misturado com um pouco de desinfetante, revelou que o prédio havia sido pintado há pouco tempo.

Procurou em vão pelo elevador e, como não encontrou, subiu as escadas até o terceiro andar. Caminhou num corredor um pouco mais escuro que o hall de entrada, ouvindo o barulho da rua ao longe. Parou na frente de uma porta, conferiu o número e bateu. Uma voz de homem, lá dentro, mandou que entrasse.

Abriu a porta e encontrou um escritório pequeno e bagunçado. Uma estante de madeira escura, encostada na parede oposta, abrigava mais livros do que parecia capaz, e um arquivo de metal levemente enferrujado ficava ao lado dela. À direita, uma porta de madeira fechada escondia algo – um banheiro, provavelmente – ao lado de outra estante, um pouco mais nova e menor que a primeira e repleta de pastas e papéis.

No centro de tudo, avistou uma mesa enorme, tão bagunçada quanto o resto do aposento. Pilhas de papéis se acumulavam, brigando por espaço com um porta-lápis repleto de trastes, um calendário de mesa e um porta-retratos, que permanecia de costas para a porta. Um computador amarelado e barulhento ocupava toda a parte esquerda do móvel. À frente da mesa, duas cadeiras que não pareciam pertencer ao mesmo jogo. Atrás dela, um homem corpulento, de meia idade e ligeiramente calvo, fumava enquanto olhava para ele.

– Pois não?, o homem quebrou o silêncio.

– Eu vim por causa do anúncio no jornal.

– Ah, claro. Sente-se, ele disse enquanto apontava uma das cadeiras vazias. Qual seu nome?

– Rafael, muito prazer.

– Prazer. Pode me chamar de Dr. Couto. Então, você é jornalista?

– Isso mesmo. Trabalhei alguns anos em redação de jornais e fiz alguns trabalhos por fora para algumas revistas.

– Muito bem. E escreve sobre qualquer assunto?

Rafael olhou ao redor, tentando adivinhar um pouco mais daquele homem pelo escritório. Fixou seu olhar em algumas fotografias penduradas na parede à sua esquerda, que havia permanecido escondida pela porta, quando ele ainda estava de pé. Aparentemente, eram fotos antigas, pois ele reconheceu o homem à sua frente em algumas delas, mas com cabelos demais e quilos de menos. Desistiu de tentar antecipar onde a conversa iria e respondeu.

– Bem... Sim.

– Certo. Eu gostaria de contratar seus serviços por algumas semanas. Talvez meses.

– Pode falar.

– Eu gostaria que você escrevesse a minha biografia.

– Sua biografia?, devolveu Rafael

– Sim. Quer dizer, sim e não.

– Como assim?

– Você escreve crônicas? Contos? Eu coloquei no anúncio que era necessário um jornalista que escrevesse um pouco de ficção.

– Bem, já escrevi alguma coisa, mas nada profissional. Como trabalho, mesmo, apenas reportagens.

– Isso vai servir. Eu quero que você escreva a minha biografia, mas mude algumas coisas.

– Eu não sei se estou entendendo.

– Veja, eu sou advogado trabalhista. Nasci em Minas Gerais, vim para São Paulo e me formei aqui. Nunca me casei, nunca fiz nada de importante. Eu quero que você escreva sobre mim, desde a minha infância... Claro que eu vou fornecer todos os dados para isso, e fotos. Tenho muitas fotos. Mas quero que você acrescente algumas coisas.

– Como assim?

– Seja sincero: você leria a biografia de um advogado trabalhista que mora num quarto e sala na Saúde e trabalha num escritório alugado no centro de São Paulo, cuidando apenas de casos que envolvem salários atrasados?

– Bem... Não. Acho que não.

– Exato. É aí que você entra. Você vai tornar a minha vida interessante!, disse o homem, dando um soco na própria mão.

– Dr. Couto...

– Por exemplo, esqui.

– Esqui?

– Esqui.

– Esqui o quê?

– Esqui. Esquiar. Eu sempre quis sofrer um acidente de esqui nos Alpes, e passar por uma experiência traumática, que me mudou de alguma forma. Algo que, por exemplo, me obrigasse a passar meses num vilarejo italiano, bebendo e repensando minha vida, até chegar a um tipo de catarse. Uma conclusão daquelas grandiosas, tipo cena de cinema, sabe?

– Sei... Mas o senhor nunca esquiou?

– Isso não importa. A partir do momento que isso estiver no livro, eu esquiei. Veja, minha vida não é memorável. Nunca foi. A coisa mais emocionante que eu fiz foi um gol de falta na sexta série. E eu nem mirei no gol, eu tentei cruzar e peguei errado na bola. Claro que nunca contei isso para ninguém. Mas você pode colocar esse gol no livro, também.

– Mas... E essas fotos?, disse Rafael, apontando para a parede. Algumas delas parecem ser de viagens.

– Não, isso é bobagem. Se você olhar com atenção as fotos, verá que eu nunca fui muito longe. Aquelas três ali são de Piracicaba, quando meu primo se casou. Tem uma de Santos, num reveillon. O lugar mais longe que eu fui é no Pantanal, é aquela ali no canto. Mas essa viagem nem conta, fui lá para pescar e não peguei nada. Por isso que eu preciso esquiar.

– Sei...

– Esquiar nos Alpes tem muito mais estilo que ir para o Pantanal e não pescar nada. Imagine só: esquiei, quebrei uma perna e fui pro Sul da Itália. Fiquei bebendo, isolado, repensando meus valores e objetivos. Ou fui para o Tibet e fiquei meses, quem sabe um ano, num mosteiro. E só depois fui para a Itália. E Foi lá que eu a conheci.

– A conheceu?

– A morena do sorriso largo, disse o homem, com o olhar perdido.

(continua...)

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P! disse...
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