20 de dezembro de 2007

Projeto Curta Aí - Capítulo 06: Olhos

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Nara desligou o telefone no momento em que ouviu a porta se abrindo. Havia conseguido escapar do seu quarto, e, após roubar um telefone sem fio da recepção, ligara para o médico. Algo em seu instinto lhe dizia que podia confiar nele. Porém, a recepcionista do turno da noite deve ter dado falta do telefone e comunicado aos seus superiores. Logo, uma busca se iniciou em todo o hospital. Os frutos dessa caçada seriam colhidos agora, pelo Dr. Bittecout e por dois enfermeiros – que mais pareciam leões de chácara. Os três estavam na porta, bloqueando a única saída possível.

– Largue o telefone e venha com a gente, menina. Você não está bem, disse o médico.

Nara não respondeu. Apenas encarou o homem como um animal acuado. Os dois enfermeiros flexionaram os músculos, prontos para imobilizar a paciente assim que a ordem fosse dada.

– Não me obrigue a arrastar você para a ala de segurança. Venha comigo.

– Eles estão atrás de mim!, gritou Nara, sabendo que isso não mudaria nada.

– Peguem-na, disse Dr. Bittecout, ignorando o último comentário.

Os dois enfermeiros pularam sobre a menina e, mais fortes que ela, logo a imobilizaram. Enquanto um deles a segurava, o outro colocou uma camisa de força no seu corpo frágil. A camisa de força tinha um forte cheiro de desinfetante, o que fez Nara pensar rapidamente (e com certo nojo) quais outros usos o pano teria.

– Vamos levá-la para a ala de segurança. Amanhã, resolverei isso com mais calma. Eu os acompanho, disse o médico, de forma decidida.

Os quatro ganharam o corredor. Bittecout à frente e Nara, com os braços imobilizados, o seguia, escoltada pelos dois funcionários, que a seguravam pelos ombros. Nara sabia qual era seu destino: a ala dos internos perigosos e agressivos. Ficaria trancada lá por dias, recebendo doses cavalares de sedativos e sendo vigiada de perto. Enquanto caminhava, via que os poucos funcionários do hospital que estavam no prédio no momento a encaravam de forma assustada, como dois seguranças, um terceiro enfermeiro e a jovem da recepção, que, pelo olhar, aparentemente havia levado aquela invasão aos seus domínios como algo pessoal.

– Acho que fiz uma inimiga, disse Nara, e começou a rir. Bittecout e os enfermeiros a ignoraram.

Continuaram andando e viraram num corredor mais estreito. Portas de um branco impecável, de frente uma para a outra, se estendiam até o final do aposento, mesclando-se com o branco imaculado do chão e das paredes. A única mancha em todo o cenário, como viu Nara, era um homem na metade do corredor, distraidamente passando um esfregão no chão.

Conforme se aproximaram, Nara pode ver melhor as feições do homem e o identificou na hora. Jamais esqueceria aquela olhar frio, ou a boca com uma pequena cicatriz, que impedia a barba de nascer. Estava com os cabelos um pouco mais compridos do que se lembrava, mas era ela, com certeza. Sentiu seu corpo começando a tremer e lutou para escapar dos enfermeiros, que apertaram o toque em seu ombro. O homem continuava a limpar o chão, com um balde ao seu lado. Estava a menos de cinco metros dele, quando gritou:

– É ele! É ele!

Bittecout olhou para trás, assustado, e disse:

– É ele quem?

– O monstro por trás de tudo!

– Quem?

– O monstro por trás de tudo!

– Não, minha filha, isso eu ouvi. Quero saber quem é o monstro por trás de tudo.

– Ele, ela disse, olhando para o faxineiro.

– Oi?, disse o faxineiro, levantando os olhos e encarando o médico, temendo ter feito algo errado.

– Desculpe, meu amigo, ela tem problemas, mas nós estamos...

– É ele! Pergunte a ele! É ele! Ele sabe qual a missão dele aqui! É ele!

– Sou?, perguntou o faxineiro, assustado.

Bittecout respirou fundo. Estava cansado. Detestava essas noites que tinha que passar no hospital. Preferia estar em casa, vendo televisão e esquecendo que todo mundo no planeta era maluco e ele era encarregado de cuidar disso. De repente, começou a se imaginar numa praia, fumando um charuto, tomando um drink colorido, com quatro jovens de biquínis sentadas aos seus pés. A brisa morna batia no seu peito. Uma das jovens sorriu para ele... E se transformou no rosto gordo da sua esposa, que disse:

– Sonhando acordado de novo, Bittecout?

Seus pensamentos voltaram para o hospital.

– Merda. Nem sonhar eu posso mais.

Os enfermeiros, que sabiam ser apenas enfermeiros na frente do diretor do sanatório, acharam que era melhor ignorar esse último comentário. Bittecout, porém, já estava nervoso o suficiente. Queria voltar para a praia com as meninas. Olhou para Nara, claramente a culpando por ter estragado sua noite. Agarrou pelos ombros e puxou-a em sua direção, colocando a moça na frente do faxineiro.

– Vamos resolver isso de uma vez por todas. Você diz que ele é o monstro por trás de tudo isso, e que ele sabe disso. Ele sabe disso e sabe qual a missão dele aqui. Certo?

Nara não conseguia responder. Tremia.

– CERTO?, gritou o médico.

–... Certo, balbuciou a menina.

– Então vamos resolver isso.

Olhou para o faxineiro profundamente. Respirou fundo. Estava realmente cansado. Uma das meninas tentou entrar na sua cabeça, o convidando para um mergulho, e ele a afastou pensando “Agora não! Agora não!”. Concentrou-se no faxineiro e perguntou:

– Meu filho, você sabe quem é você?

– Sei, sim senhor, disse o homem.

– E você conhece essa menina?

– Não, senhor.

– Ela disse que você está por trás de todos os tormentos dela. E que você sabe disso.

– Estou? Sei?

– É o que ela diz. Há quanto tempo você trabalha aqui?

– Dez dias.

– Minha filha, preste bem atenção nisso, disse o médico, olhando para Nara.

A jovem tremia. Pensou em gritar, mas isso não ajudaria nada. Bittecout continuou:

– A moça diz que você está por trás de todos os tormentos dela. Responda-me, na frente dela, de onde você veio?

– Como eu cheguei aqui?

– Isso.

– De trem.

– Não. Como você veio parar nesse hospital? No mesmo hospital que ela?

– Ah... Foi a agência de empregos que me indicou. Eu trabalhava numa escola antes, mas as crianças não davam sossego. Aqui é mais sossegado, só tem maluco. Mas, olha, eu tenho referências, viu?

– Fique tranqüilo. Quero saber mais uma coisa. Qual a sua missão aqui?

– Minha missão?

– Sim, ela diz que você tem uma missão e sabe qual é. Então, nos diga, na frente da moça... Qual sua missão?

– Bom, eu tinha que terminar de limpar as janelas do terceiro andar e esse corredor aqui. As janelas eu limpei a tarde... E o corredor... Bom, já foi mais da metade...

O faxineiro olhou para trás, encarando os quase cinco metros que o separavam da porta que levava à ala de segurança. Analisou a cena com cuidado e voltou-se para o médico.

– Acho que minha missão, então, é esse pedaço aqui. O resto eu já fiz. O senhor que ir ver as janelas?

– Não é necessário, respondeu Bittecout. Olhou para os dois enfermeiros e apontou para a porta, ordenando que levassem Nara. A moça começou a gritar e espernear, mas os enfermeiros eram muito mais fortes que ela. Atravessaram a porta e um dos homens a fechou.

Bittecout ouviu o barulho de uma tranca, virou as costas e começou a caminhar até sua sala. Antes mesmo da esquina, já estava de bermudas e meio embriagado, apanhando conchinhas à beira-mar com três das garotas, que dançavam ao seu redor. A quarta estava sentada em sua cadeira, mantendo seu drink gelado e seu charuto aceso. Bittecout apertou os olhos e sorriu para a menina, que sorriu de volta. Olhou ao redor e viu o mar azul, o Sol brilhando, crianças brincando na areia. Só não viu sua esposa. Sorriu.

Sorriu sem saber que, além da esposa, não tinha visto também a faca cheia de sangue dentro do balde. E quando começou a assoviar, andando de costas para o homem, também não viu que os olhos do faxineiro deixaram de ser humanos e se tornaram vermelhos. E foram esses olhos vermelhos e monstruosos que fitaram o diretor até que ele virasse o corredor e desaparecesse de vista.

3 leitores:

Arthurius Maximus disse...

Como sempre; impecável.

Climão Tahiti disse...

Ficou MUITO BOM.

E seu toque de humor ficou perfeito.

Gostei muito. =D

r.farias disse...

Excelente ...
Pitadas de humor na medida Certa, que venha a continuação !!

Abraço

 

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