10 de fevereiro de 2007

Dois Perdidos numa Crônica Suja - Parte Final

(A parte inicial você encontra aqui.)


– Você está louco? – perguntou Marcelo, ao mesmo tempo em que o garçom soltou um “Senhor?”

– Quer ver uma coisa? Amigão – disse para o garçom – eu vou querer salada de mafagafos, desde que o quadro na parede atrás de mim mostre uma foto disso.

Os três se olharam para o quadro, que mostrava uma das mais lindas saladas de mafagafos já vistas, e Roberto gritou triunfante:

– Viu? Viu? Mudou! O quadro mudou! Isso prova tudo!

O casal do canto fez sinal para o garçom pedindo para fechar a conta.

– Estamos dentro de uma crônica – continuou. Nós achamos que estamos sentados aqui, mas não estamos. Alguém em algum lugar está escrevendo tudo isso. Nada está acontecendo de verdade.

– Como assim? Você está louco?

– Não, não. Tente entender. Nós não sabemos como chegamos aqui porque fomos criados há alguns minutos atrás. Por isso eu não lembrava meu nome e você não lembrava o seu. Nossos nomes só foram criados no momento em que foram necessários. Por isso que ele – apontou para o garçom – não sabia a resposta da pergunta que estava no papel. Como o autor, ou a autora, ou sei lá quem estiver escrevendo isso não viu a pergunta, porque eu apenas escrevi, e não falei, não teve como inventar uma resposta.

– Que coisa maluca! Quer dizer que eu e você moramos aqui? Nesse restaurante?

– Aparentemente sim. Eu, você e o garçom. Ah, e o Marco Antônio, lá trás. E aquele casal ali, também.

– Pô, e a morena?

– A morena não. Acho que fazia parte do cenário. Sei lá. O fato é que ela saiu da história. Não importa.

– Não importa para você, que não viu as pernas dela. Eu, se estivesse escrevendo isso aqui, teria tirado o Marco Antônio. Ele está ali atrás do balcão mesmo, ninguém ia nem perceber.

– Mas o fato é esse. Estamos numa crônica, num conto. Algo assim. Por isso que o quadro mudou. Não sei aonde ele quer chegar, mas algo me diz que ele está tentando fazer com que a gente coma os tais dos mafagafos. Está usando o garçom para isso. Aliás, você sabe o que são mafagafos?

– Espere, deixe-me tentar também – pediu Marcelo. Garçom, mudei de idéia! Vou querer strogonoff de mafagafos, desde que eu possa ver uma foto antes.

– Não temos fotos desse prato, senhor. Infelizmente.

– Não? Não mesmo? Tem certeza? E aquele quadro ali, naquela parede perto da mesa onde a morena estava sentada? – desafiou com um sorriso na boca, começando a se empolgar com a teoria de Roberto.

Olhou com calma para a parede e viu, no lugar da foto dos mafagafos refogados, uma imagem linda de um prato de strogonoff. Com uma taça de vinho tinto ao lado. E batata palha, claro.

– Você tem razão! Genial!

– Eu não disse? Agora, temos que saber por que estamos aqui! Temos que descobrir o que são os mafagafos. Algo me diz que é por causa deles que estamos aqui.

Marcelo, de repente, ficou estático, segurando um pedaço de pão na mão. Estava pensando. Havia percebido algo que Roberto, em sua empolgação por ser um personagem de um texto (“talvez um autor famoso?” estava pensando) ainda não havia visto.

– Roberto...

– Só um minuto, Marcelo. Meu bom amigo – disse, olhando para o garçom. Me diga o que são mafagafos. Aliás, não, me surpreenda. Traga o mais belo prato de mafagafos da casa. Não vejo a hora de comer mafagafos – afirmou, pensando na fama, em prêmios de literatura e, quem sabe até mesmo numa continuação. Ou, melhor ainda: se tornar um personagem fixo numa série de textos! Ir para o cinema!

– Roberto...

– O que é Marcelo? – disse, irritado. Estou pensando, aqui. Planejando um grande futuro para nós.

– É sobre isso que eu quero falar, Roberto. Nós não existimos. Quer dizer, ao menos não de verdade.

– Como assim?

– Se isso é uma crônica, ou um conto, sei lá... Nós não existimos. Fomos criados pelo autor disso. Eu não existo, você não existe. Esse restaurante não deve existir também. A não ser que isso seja uma biografia de alguém. Mas eu duvido.

– Sim, mas qual o problema nisso?

– Roberto, quando essa crônica... Vamos dizer que é uma crônica, apenas para efeito de discussão. Quando essa crônica acabar, nós sumiremos. Não faremos nada. Ou melhor, ficaremos o resto da vida aqui, repetindo tudo isso, toda vez que alguém ler esse texto.

– Deus, você tem razão.

– Além disso, – continuou Marcelo – sabe-se lá se esse texto vai chegar ao final. E se quem estiver escrevendo isso desistir no meio? E se acabar a luz no meio, e ele não tiver salvado o arquivo? Nós desapareceremos! Do nada! Deixaremos de existir.

Agora era Roberto quem estava pensativo.

Marcelo não deu chance para ele falar nada, continuando. – Você não percebe? Não estamos seguros aqui. Além do mais, que história é essa de mafagafos? Por que ele quer tanto que a gente coma isso?

– Você tem razão, Marcelo. O que será que se passa na cabeça dele? O que será que tem esses tais de mafagafos? E, além disso, porque nós dois? Porque não aquele casal ali?

– Porque alguém escreveria sobre eu e você nesse restaurante? Ou algo muito importante deve acontecer, ou ele estava sem idéia nenhuma e pensou “ah, vou escrevendo e vejo o que sai”. – Marcelo começou a ficar branco. – Será que é isso? Será que nem ele sabe o que vai acontecer com a gente?

– Não, deve ter algum propósito em tudo isso. O que você acha? – perguntou Marcelo ao garçom.

Antes que pudesse responder, o garçom lembrou-se que a cozinha fecharia em poucos minutos, e avisou:

– Vocês não querem fazer o pedido, antes de qualquer coisa? A cozinha fechará em alguns minutos.

– Como assim, em alguns minutos? – perguntou Roberto, olhando no relógio. Não são nem 21:00!

– Desculpe senhor, mas, são.... Bem... São... Normas da casa. – respondeu, atrapalhado com as próprias palavras.

Marcelo levantou-se da mesa e segurou o garçom pelos braços.

– Ele está manipulando você! Ele está colocando palavras nas nossas bocas! – virou-se para Marcelo – Ele insiste com esses mafagafos. Você tem razão, é melhor não arriscarmos.

Marcelo, tão assustado quanto o amigo, disse ao garçom:

– Cancele meu prato. Eu quero apenas uma água. Sem gás.

– Temos apenas suco de mafagafos, senhor. E, devo dizer, é delicioso.

– Como assim, apenas suco? – gritou Roberto. Vocês estão tentando empurrar esses mafagafos para a gente. Você está do lado dele, já vi tudo! Vocês estão juntos nessa? Estão armando alguma coisa?

– Acho que ele está sendo usado como nós, Roberto.

– Senhor – gaguejou o garçom – Num ninho de mafagafos, havia três mafagafinhos.

Acabou de dizer isso e olhou espantado para os dois, perguntando com os olhos por que diabos tinha dito aquilo.

– Está vendo, Roberto? – disse Marcelo, assustado – Ele está usando o garçom apenas para demonstrar seu poder!

Roberto olhou para cima (ou para o teto do restaurante, ao menos aos olhos do casal que saía apressado do local jurando nunca mais colocar os pés ali) e, balançando um dos seus punhos cerrados, gritou:

– Você é doente! Que tipo de monstro faz isso com as pessoas?

Marcelo fez um sinal discreto para que Roberto se acalmasse.

– Não fale assim! Nós estamos na mão dele. Ele pode fazer qualquer coisa. Você não pode irritá-lo. Ele poderia até mesmo... Nos matar!

Outra música sinfônica e dramática começou a tocar no restaurante. Parecia que vinha das paredes.

– Deus, ouça essa música! Que imbecilidade! Porque não podemos ser personagens de um autor com bom gosto? Não, tínhamos que ter nascido da mente de um imbecil que colocou a gente num restaurante, não sabe o que fazer com isso e fica brincando de Deus!

– Temos que sair daqui. Temos que avisar as outras pessoas.

– Que outras pessoas? – perguntou Roberto.

– Aquele casal, por exemplo! Se eles estavam aqui, também foram criados por esse...esse... Maníaco! E se saíram do restaurante, deve haver outras pessoas lá fora.

Na rua, um carro passou buzinando.

– Viu? Há todo um mundo lá fora! Temos que avisar os outros! Eles precisam saber que estamos dentro de um texto escrito por uma pessoa doentia! Meu Deus, que tipo de pessoa faria coisas desse tipo? Nós não fizemos mal para ninguém!

– Ele não vai deixar nós sairmos daqui! Ele é louco! Acredite em mim! Que espécie de pessoa criaria um restaurante especializado em mafagafos? Ele vai nos manter aqui por toda a eternidade, ou até que a gente coma os tais dos mafagafos! Sabe-se lá há quanto tempo esse garçom está aprisionado aqui! Somos brinquedos na mão dele! Ele se acha um deus!

– Somos todos joguetes do destino – suspirou o garçom, que sempre teve vontade de usar essa frase, mas nunca havia encontrado uma oportunidade.

– Eu não acredito – disse Roberto. Ele está citando Shakespeare! Não poderia haver algo mais clichê. Marcelo, nós estamos perdidos. Ele está agindo como um gato brincando com sua presa. Precisamos sair daqui agora! Quem sabe, na rua, encontramos alguma saída, uma entrada para outro texto, escrito por uma pessoa menos perigosa! Até mesmo uma tira de quadrinhos serviria, na atual situação! Vamos!

Antes que saíssem do lugar, porém, a porta do restaurante se abriu. Todos olharam. A morena, com a mesma minissaia (e as mesmas pernas, pensou Marcelo) entrou e sentou-se na mesa ao lado deles.

– Olhe, Roberto. A morena.

– Marcelo, é uma armadilha. Não faça nada. Não chegue perto dela. Ele está tentando distrair você, porque descobrimos a verdade! Você não vai nos derrotar tão fácil, seu demente! – gritou, novamente olhando para cima.

A morena olhou para os dois e sorriu. Roberto olhou com o canto dos olhos e desviou o olhar. Marcelo sentiu a sua espinha gelar. Uma garrafa de vodka surgiu na mesa dela, que sorriu para os dois novamente. Seus olhos brilhavam. Não era mais uma morena. Ou melhor, não era mais apenas uma morena. Era a Jennifer Connely. Marcelo quis morrer. Roberto sentiu que o amigo fraquejava.

– Marcelo, seja forte! Não se entregue assim! – gritou, dando um murro na mesa.

– Hum...? – resmungou Marcelo, sorrindo de volta para a Jennifer da mesa ao lado.

– Marcelo! – insistiu Roberto, tentando chamar a atenção do amigo, que, com o berro, saiu momentaneamente da espécie de transe que estava. Marcelo – continuou – temos que encontrar um jeito de sair daqui. Precisamos encontrar um modo de distrair esse cara!

– Mas como?

– Não sei. Ei! Tenho uma idéia! Vamos causar um incêndio!

– Quê?

– Ele vai ter que pensar em como apagar o fogo, nem que seja escrevendo uma linha com a chegada dos bombeiros. Ou isso ou o restaurante será destruído, a crônica acabará e ele não terá mais o que escrever. Ele não tinha pensando nem nossos nomes, você acha que ele se deu ao trabalho de criar algum outro cenário que não seja esse restaurante? É isso, podemos virar o jogo assim!

– Mas como vamos fazer isso?

– Não sei, disse Roberto – olhando para os lados. De repente, seus olhos brilharam. Levantou-se e, sem pedir licença, pegou a garrafa de vodka da mesa, sendo acompanhado pelo olhar da Jennifer Connely, que continuava sorrindo. Arrancou a manga da sua camisa, molhou com vodka, enrolou e colocou no gargalo da garrafa.

– Preciso de um isqueiro – disse Rogério, tateando os bolsos.

– Rogério, duvido que ele coloque um isqueiro aqui dentro. Ele já deve ter percebido o que você vai fazer.

– Não me importo, preciso tentar. Filho da puta! – gritou, olhando para cima – eu me chamo Roberto, não Rogério! Mudar meu nome não vai me assustar!

Subitamente, o garçom esticou o braço com um isqueiro aceso.

– Fogo, senhor?

– Ronaldo, cuidado – avisou Marcelo – Ele não faria isso se não estivesse aprontando alguma.

– Não quero saber – respondeu, acendendo o trapo. Marcelo, prepare-se para correr para a rua.

Arremessou a garrafa na direção de uma parede e esperou ansioso pelo resultado. A garrafa atravessou o salão do restaurante, bateu na parede como um tijolo, ricocheteou, e caiu dentro do vaso da samambaia, que, cheio de água, apagou a mecha.

– Filho da puta! Desgraçado! – gritou Rodrigo. Ele manipula toda a realidade! E pare de mexer no meu nome, porra!

– Eu disse que não ia dar certo! – protestou Marcelo, olhando novamente para Jennifer. Uma nova garrafa tinha aparecido na mesa dela, que continuava olhando de forma insinuante para os dois, ignorando o escândalo de Rodrigo. Este, fora de si, pegou o garçom pelo colarinho e começou a sacudi-lo.

– Você tem que nos ajudar! – gritou. Você tem que nos tirar desse inferno! Antes que ele nos obrigue a comer a porra dos mafagafos!

– Ambrósio – interrompeu Marcelo – A porta do restaurante sumiu!

– Meu Deus, é verdade! – disse Ambrósio, olhando para o local onde ficava a porta de entrada do restaurante. Havia apenas uma parede de tijolos.

–Isso não é vida. – disse, com lágrimas nos olhos. Estou preso num restaurante especializado em mafagafos, que fica dentro de uma crônica ruim. – começou a gargalhar de forma histérica. E agora me chamo Ambrósio! Merda! Tem que haver um modo de sair daqui! Tem que haver uma outra saída! Eu não vou comer esses mafagafos de merda!

Empurrou o garçom e correu para a cozinha. Segundos depois, três tiros ecoaram pelo restaurante. Marcelo e o garçom pularam assustados (Jennifer, ainda sorrindo, nem piscou) e as luzes da cozinha se apagaram.

E continuaram apagadas.

Marcelo está no restaurante até hoje. Está sentado na mesa da Jennifer Connely, enchendo a cara de vodka junto com ela e o garçom. Ela está sentada no colo dele e fica fazendo carinho em seu ombro, enquanto bebe, e o garçom, sem gravata, está distribuindo as cartas. Um monte de fichas coloridas está espalhado na mesa.

De vez em quando, olha na direção da cozinha e recorda-se do amigo. Lembra-se de que não existe de verdade, que é apenas um personagem dentro de um texto. Aí, olha para os olhos da Jennifer, que está sempre sorrindo para ele, passa a mão nos cabelos dela, vira mais um copo de vodka e dá de ombros, olhando para cima.

– Bem, tomara que ele esteja empacado nesse trecho.

Mas, por via das dúvidas, nem conversa com o garçom sobre os tais mafagafos.

4 leitores:

R. S. Diniz disse...

Muito bom o desfecho, confesso que eu não entendi direito o lance dos tiros, mas gostei do final.


Se eu dissesse que talvez nós todos sejamos personagens de crônicas e contos e não sabemos a verdade, iria soar como filosofia barata.



Mas talvez sejamos mesmo.

Isadora disse...

sou suspeita pra falar dessa. é a minha preferida... pára, é a sua também, vc também é suspeito !!

suspeito, isso...

Mariliza Silva disse...

Cara, reparou que escreveu seu próprio texto maquinando contra você? francamente, falando sério, descobri que não consigo fazer um complô contra mim mesma... sério!

Você ultrapassou o 2º eu em análise.

Adorei sua imparcialidade. Juro!!!

Beijão e some não

Mariliza

Eduardo Vilar disse...

Gostei muito da crônica, até achei uma das melhores que eu já li mas confesso que fiquei bem chocado com o final...
O que de certa forma deve ter sido bom pq me fez refletir bastante.
abraços!

 

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