15 de janeiro de 2015

Relâmpagos

O vento anunciava uma tempestade.

Ela estava passando manteiga no pão tentando parecer o mais casual possível. Mas era apenas o modo que encontrou de não olhar diretamente para o par de olhos castanhos e afiados que a encaravam do outro lado da mesa.

Era o primeiro encontro. Haviam se conhecido no metrô – ao contrário do que dizem, existem paixões de metrô que conseguem escapar do subsolo e chegar às ruas – e estavam num pequeno restaurante, naquele momento em que um quer olhar para o outro, mas ainda não sabe direito como fazer isso sem que o outro perceba.

Ele pensou em falar algo, mas foi interrompido antes mesmo de começar pelo garçom que trazia uma bandeja de bebidas. Água para ela. Sem gelo. Uísque para ele. Aceitaram, agradeceram e disseram que fariam o pedido somente mais tarde.

Cinco segundos depois, já com gosto de malte na boca, ele perguntou sobre o trabalho dela. Foi a deixa que precisavam para começar a conversar, com frases que ainda caminhavam com cuidado, pé ante pé, na sala escura da falta de intimidade.

Em determinado momento, ela sentiu vontade de adivinhar o que ele estava pensando. Em determinado momento, ele sentiu vontade de dizer a ela o que estava pensando. Mas continuaram conversando sobre trabalho, sobre emprego, sobre a coincidência que foi se encontrarem no metrô e riram ao comentar a cara de pau dele em pedir o telefone dela, após três ou quatro olhares desencontrados entre a Liberdade e São Joaquim.

Decidiram pedir mais porções. E mais bebidas. Um suco para ela, outro uísque e uma garrafa de água para ele. E, bebendo e beliscando pedaços da vida do outro, começaram a se conhecer melhor, enquanto os raios lá fora inundavam a rua de clarões, enchendo a rua de cheiro de ozônio e trazendo trovões em seu encalço.

– Por que você está sozinha?

Ela engoliu um gole de suco para disfarçar o susto da pergunta tão direta. Diversas repostas decoradas passaram pela sua mente. Não encontrei a pessoa certa. Não estou procurando nada sério. Acabei de sair de um longo relacionamento e não quero me envolver. Já havia usado todas elas tantas vezes – para os outros e para si mesma - que já soavam naturalmente como verdade.

Na verdade, quase respondeu qualquer uma delas, antes de olhar pela janela e ver que a tempestade era inevitável. O vento estava cada vez mais forte e o ar transbordava eletricidade. E, mais por impulso que por qualquer outra coisa, decidiu que não tinha nada a perder. Não era o primeiro encontro de sua vida, e não seria o último. Podia arriscar.

– Eu amo demais.

– Como assim?

– Eu amo demais. Eu me apaixono muito fácil. E amo demais. Aconteceu em todos os meus relacionamentos. Passo a viver em função da outra pessoa, abrindo mão da minha vida. Talvez seja carência. Talvez seja fraqueza. Talvez seja apenas meu jeito. Não sei. Sabe aquela paixão alucinante, impossível de dar certo? Comigo é sempre assim. Acabo sofrendo em silêncio, certa de que o erro é meu. Mas não consigo parar. É quase como um vício. Eu amo demais e não sei amar sem sofrer o tempo inteiro, de saudade, de ciúme. De amor. Por isso meus relacionamentos não duram. Talvez porque eu não dure nos meus relacionamentos, eu me incendeio com eles.

Ele deu um gole no uísque e ela continuou.

– E não sei por que estou falando isso para você. Eu nunca falei isso para alguém antes. Nem para minhas amigas. Talvez seja porque eu não conheço você. Provavelmente você vai achar que sou louca, inventar uma desculpa e ir embora. E, quer saber? Eu faria o mesmo. Mas mesmo assim eu já ganhei a noite. A sensação de falar isso em voz alta, ao menos uma vez na vida, foi maravilhosa. A sensação de assumir que sou assim...

– Eu sou manipulador.

Ela parou de falar e olhou direto para ele. Mas não disse nada, quem disse foi ele.

– Eu sou manipulador. Por isso meus relacionamentos não duram. Você foi sincera comigo, o mínimo que eu deveria fazer é ser sincero com você. Em algum momento você perguntaria por que estou sozinho, e eu poderia inventar qualquer desculpa e mudar o rumo da conversa. Eu iria guiar o assunto para onde eu quisesse, sem você perceber. Eu faço isso o tempo inteiro. Em duas horas estaríamos na cama... Na minha casa ou num quarto de hotel, tanto faz. E não estaríamos na cama porque eu quis, mas sim porque eu fiz você querer isso. E fazer isso com você vai me dar prazer mais que o sexo. É o que eu faço. Eu sou manipulador.

Ela olhou ao redor para se certificar de que ninguém estava ouvindo a conversa.

– Por isso eu estou sozinho. Talvez o amor para você seja se destruir, para mim é destruir a outra pessoa. Eu vou minando a personalidade dela até que ela seja completamente minha. Faço jogos, digo meias-verdades. Minto, seduzo, me canso e esqueço. Não sei por que faço isso, mas faço. Não sei me relacionar de outro jeito. Talvez seja por medo de me envolver, talvez seja porque eu sou filho da puta, talvez porque eu me sinta poderoso fazendo isso. Não sei. Já desisti de entender o motivo. E já desisti de mudar.

Um raio caiu perto do restaurante assustando todos os clientes. Menos os dois, que mantinham os olhos fixos um no outro.

– E não, eu também nunca falei isso para ninguém, ele completou, antes de fazer sinal para o garçom, pedindo mais um uísque.

Ela pareceu pensar um pouco antes de dizer algo. Mas, por fim, respirou fundo e disparou:

– Isso é bom.

– O que é bom?

– Desistir de mudar.

– Não sei.

– É bom. Ao menos por uma noite, assumir aquilo que você é e pronto. A sensação de não precisar nadar contra a corrente ao menos por algumas horas... O alívio...

– O alívio em poder ser filho da puta?

– O alívio em ser quem você é. Parece que saiu um peso dos meus ombros, somente por eu saber que não vai dar certo.

– Sim. Eu sinto o mesmo por ter avisado você do que eu vou fazer. Você sabe que eu vou usar você.

– Sei. Você sabe que eu também vou fazer isso.

E os olhos de ambos brilharam. Brilharam de fome, de expectativa, de “eu não sei ser de outra forma”, mas brilharam principalmente pelo relâmpago que inundou a rua com um clarão. A tempestade começou logo em seguida, lavando a sujeira das ruas e dando aos dois a sensação de que amanhã o tempo estaria mais fresco, e teriam tempo de sobra para se arrepender mais uma vez.

No meio da madrugada, um disco começou a tocar os versos “I hate, hate to be alone... It’s on, on a rainy day”, mas eles não ouviram. Estavam ocupados demais, no mesmo quarto abafado, dançando com seus demônios.

Adoravam tempestades.

1 leitores:

Cesar da Mota Marcondes Pereira disse...

Apenas uma interjeição:
PUTAQUEOPARIU!

Poderosíssimo, Rob!!!

Forte abraço!

 

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