31 de dezembro de 2014

Paz, Saúde, Amor e Sucesso

Eram quatro amigos celebrando o Ano Novo. Estavam num apartamento enorme e luxuoso. A cidade provavelmente era Paris, já que era possível ver uma torre pela janela da sala, mas não faz muita diferença, já que a cada ano eles passavam o Ano Novo juntos numa cidade diferente. Faziam isso desde que se conheciam. E se conheciam há mais tempo do que você pode imaginar.

“Quanto falta para a meia noite?”, perguntou Sucesso, pensando se abria mais uma cerveja ou se já era hora de esperar pelo brinde.

“Uns cinco minutos”, respondeu Saúde, olhando pela janela. Parecia distraída, o que era comum. Saúde estava sempre distraída e sempre se surpreendia com tudo o que acontecia com ela.

“Faltam sete minutos!”, gritou Amor, entrando na sala. Em todo Ano Novo, ele era o responsável por controlar o tempo para que não perdessem o momento da virada. Fazia isso porque queria que todos estivessem juntos, na sala, quando o Ano Novo começasse. Mas como ninguém respondeu, ele foi até a janela e perguntou para Saúde o que ela estava fazendo.

“Estou ouvindo me chamarem”, ela respondeu, olhando para o horizonte.

“Como assim?”

“Hoje é o dia que todos desejam saúde para todos. Hoje meu nome é muito falado. Engraçado como ninguém deseja saúde nos outros dias, só hoje.”

“Ou quando as pessoas espirram”, complementou Paz, pegando a conversa pela metade. Paz parecia meio bêbada, um pouco distante de tudo, mas este na verdade era o jeito dela. Estava sempre alheia a tudo, não se importante muito com o que os outros estavam fazendo. Dizia para todos que esta era sua principal qualidade.

“O meu ponto é”, disse Saúde, virando-se para dentro da sala, “é que é meio hipócrita. Você não se despede das pessoas no dia a dia desejando que elas tenham saúde, mas aí no último dia do Ano Novo você deseja saúde para todo mundo. Como é mesmo, saúde para dar e vencer?”

“Vender. Dar e vender”, corrigiu Sucesso, desistindo de esperar a contagem regressiva e abrindo uma cerveja. Deu um gole e continuou: “Bom, todo mundo me deseja aos outros também. ‘Que você tenha um ano com muito sucesso’. Não entendo porque não falam ‘dinheiro’ logo de uma vez, que é o que estão pensando de verdade. Mas, por outro lado, se as pessoas acham que sucesso é dinheiro, é problema delas. Eu não me importo. Ao menos, não depois da quinta cerveja.”

“Esse é o segredo”, interrompeu Paz. “Não se importar.”

“Você também já tomou cinco cervejas?”

“Não, eu não preciso disso para não me importar”.

“Parabéns. Um brinde ao seu sucesso”, disse Sucesso, erguendo a latinha e sorrindo. Sucesso sempre fora meio sarcástico. Talvez por ter tudo, ele precisava sempre procurar graça nas coisas, e seu senso de humor nem sempre era bem compreendido. Mas, como ele mesmo dizia, ele não era estranho, porque o sucesso nunca é estranho, ele é apenas excêntrico.

“O que vocês acham de tirarmos uma foto?”, perguntou Amor, tentando melhorar o clima.

“Ah, não. Você não comprou aquele pau de selfie, né?”, perguntou Saúde.

“Aquele pau o quê?”

“Aquele pau para tirar foto da gente mesmo. Todo mundo está usando isso”.

“Eu nem sei o que é isso”.

“Bom, deixa para lá. E, também, depois a gente tira a foto. Todo ano a gente tira a mesma foto. Parece aquelas pessoas que ficam tirando foto de gato e comida”.

“Saúde, está tudo bem com você?”, perguntou Amor. “Você está amarga”.

“É Ano Novo. Eu não gosto muito. Todo mundo fica um ano velho. E, com um ano mais velho, ficam mais doentes. E não se cuidam, apenas desejam saúde para todos. Olha naquele apartamento da frente. As pessoas estão comendo faz três horas. Comendo e bebendo. Aí, daqui a cinco minutos vão desejar uns aos outros ‘muita saúde’. Queria que me levassem um pouco a sério”.

“Três minutos”, corrigiu Amor.

“Oi?”

“Cinco minutos, não. Três minutos. Mas, enfim, isso não acontece somente com você, acontece comigo também”, disse Amor.

“Ah, sim. Até parece.”

“Ué, você acha que não? Todo mundo deseja me encontrar no ano que começa. Todo mundo fala que ‘este ano vou arrumar o grande amor da minha vida’. Como se isso dependesse delas”.

“Mas, mesmo assim...”

“Além disso”, continuou Amor, “deixam todo o trabalho nas minhas costas. É como se ao simplesmente encontrar o amor, o problema está resolvido, e ela não precisa fazer mais nada. Não importa encontrar o amor, é preciso saber cuidar do amor. E isso ninguém faz. São egoístas, rabugentos, rancorosos. Acham que basta ficar postando fotos abraçados em redes sociais. Aí, ficam sozinhas e dizem que não gosto delas, que não dou chance”.

“Mas e as loucuras que se faz em seu nome?”, perguntou Paz.

“Loucuras? Você diz sair de madrugada para encontrar a pessoa, ou escrever cartas de quinze folhas? Isso não é amor. Isso é paixão. Ou carência confundida com paixão. Mas não tenho nada a ver com isso”.

“O mesmo acontece comigo”, falou Sucesso, levantando-se da cadeira. “Querem que eu apareça o ano inteiro, mas se esquecem de que eu ando de mãos dadas com o trabalho. E, se não eu não apareço, é culpa minha”. Caminhou cambaleando pela sala, aproximando-se da janela. Colocou a cabeça para fora e gritou “feliz ano novo, cambada de medíocres!”.

“Pare com isso”, pediu Paz. “Pare de se preocupar com os outros. Aliás, onde está Felicidade?”.

“Um minuto!”, gritou Amor.

“Felicidade não veio. Disse que já trabalha o ano inteiro por causa dos aniversários, então disse que não vai mais trabalhar no Ano Novo”.

“Nós vamos brindar?”, perguntou Paz.

“Eu já estou bebendo”, respondeu Sucesso. “Mas enche as taças aí, a gente sempre dá um jeito”.

A cidade começou a fazer uma contagem regressiva. Não eram pessoas fazendo a contagem, era o vento. Pois era uma contagem regressiva que somente os amigos conseguiam ouvir. E, quando ela chegou a zero, fogos começaram a explodir, colorindo o céu.

Os quatro se abraçaram, mas não desejaram nada uns aos outros. Apenas agradeceram pela oportunidade de passarem mais um ano juntos – algo que, na opinião deles, todos deveriam fazer mas ninguém fazia.

E, como sempre, brindaram.

“Aos amigos ausentes”.

Quem disse foi Amor. Não estava se referindo à Felicidade, que aquela hora estaria acordada olhando os fogos – Felicidade adora olhar os fogos – mas ao Bom Senso, o primeiro da turma que havia morrido, décadas atrás.

Horas depois, foram dormir. Amor dormiu no colo do Sucesso. Já Saúde, que odiava dormir no sofá para não machucar as costas, foi para o quarto.

Paz, por outro lado, ficou acordada.

Paz ficou horas janela, com a sensação de um novo começo. E não porque era noite de Ano Novo, mas sim porque ela fazia isso todas as noites. Olhava o mundo com olhos de recomeço. Cada dia era uma nova chance. Cada dia podia existir algo diferente.

Queria que as pessoas fizessem mais esse tipo de coisa, e não somente no Ano Novo. Mas, por outro lado, não se importava muito com o que as pessoas faziam.

2 leitores:

Juba disse...

Acho que nunca tinha gostado tanto de uma crônica.

"Desliguei"o twitter em função da paz, mas continuo sua leitora.

Abraços

Vitor Costa disse...

Muito interessante e inventiva a alegoria, Rob. Uma ótima reflexão sobre os nossos valores e sobre as nossas enferrujadas tradições de fim de ano.

Abraços ;-)

O Mundo Em Cenas

 

Championship Chronicles © 2010

Blogger Templates by Splashy Templates