19 de outubro de 2014

O Fantástico Conto de Brasília

O Sol brilhava na cidade de Brasília.

Era o final da tarde do dia 21 de setembro de 1992 e, em seu gabinete, o presidente acompanhava as notícias pela televisão. Um dia antes, havia feito um pronunciamento para o povo brasileiro para se defender das acusações de corrupção. Não havia adiantado nada. O povo continuava nas ruas, o chamando de corrupto e exigindo seu impeachment. O processo continuava na Câmara dos Deputados e em breve chegaria ao Senado. Seus advogados falavam que não havia nada a fazer.

Naquela manhã, havia surpreendido sua esposa tomando café da manhã sozinha. Ela tinha o rosto inchado, provavelmente por chorar a noite inteira. Collor mal conversou com ela. Passou o dia em seu gabinete tentando ligar para todos seus aliados. Ministros. Deputados. Diretores da Rede Globo. O presidente queria apenas um pouco de alento, queria apenas ver quem continuava do seu lado. Mas ninguém atendia.

De saco cheio de tudo aquilo, o presidente desligou a televisão e se esgueirou para fora do palácio pela porta dos fundos. Usando chapéu e óculos escuros, ninguém o reconheceria. Além disso, não iria longe. Queria entrar no primeiro bar que encontrasse para beber um pouco em paz, longe de tudo e sozinho com seus pensamentos.

Quinze minutos depois estava com os cotovelos apoiados no balcão e na metade do segundo uísque. Ainda era cedo e o bar estava vazio. Além dele, o barman – um velho que parecia mais preocupado em organizar as garrafas – e um sujeito sentado numa mesa do canto, de costas para o balcão. O presidente deu uma golada, pediu um pouco mais de amendoim e olhou para a TV, que exibia os gols da última rodada do campeonato.

Estava a caminho do terceiro uísque quando a porta do bar se abriu e um homem mais velho entrou no bar e sentou-se ao lado do balcão. Fez um sinal para o barman, pedindo uma bebida. Quando ela chegou, agradeceu, deu o primeiro gole e acendeu um cigarro, olhando diretamente para o presidente.

- Dia difícil?

O presidente nem olhou para o sujeito. Apenas resmungou algo como “ano difícil” e deu mais uma golada no uísque, pedindo um terceiro copo. O homem continuou.

- Pode parecer difícil de acreditar, mas as coisas ainda vão melhorar.

O presidente fez um som que ficava exatamente no meio do caminho entre um muxoxo e um resmungo. O homem não se abalou e, dando mais um gole em sua bebida, lançou a pergunta.

- Além disso, quem quer ser presidente disso aqui?

Era o que ele precisava para atrair a atenção do presidente, que olhou com expressão surpresa para o homem ao seu lado. Havia sido reconhecido. Mas logo sua expressão mudou. Ter sido reconhecido, subitamente, parecia ser o menor dos seus problemas, quando percebeu que o homem sentado ao seu lado era estranhamente familiar. Era mais velho que ele. Seus cabelos eram grisalhos e era mais gordo. Mas ele teria reconhecido aquele nariz em qualquer lugar. Afinal, era o seu nariz.

- Sim, você não está vendo coisas. Eu sou você.

O presidente não sabia como começar a falar. Toda a eloquência e habilidade retórica que haviam garantido milhões de votos desapareceram, espantadas com a situação. O presidente olhou ao redor e, aliviado por perceber que ninguém no bar havia reparado no que estava acontecendo, tentou balbuciar uma pergunta, mas se engasgou. O homem sorriu.

- Quer dizer, eu sou uma versão sua. Eu sou um Fernando. Um dos muitos Fernandos que poderão existir.

- Muitos Fernandos? Como assim?

- Eu sou do futuro. Ou melhor, de um dos muitos futuros que existem.

- Existe mais de um futuro?

- Claro. O futuro está mudando o tempo todo. Em cada futuro, existe um Fernando. Eu sou apenas um deles.

O presidente achou aquilo loucura e pensou em chamar seus seguranças, mas se lembrou de que estava sozinho no bar. Além disso, o presidente não conseguia deixar de reparar que eles eram, realmente, muito parecidos. E o homem estava bem vestido, com um terno importado e sapatos caros. O presidente sempre gostara de se vestir bem e, mais importante, sempre confiara em que se vestia bem. Não custava escutar um pouco mais. O outro homem pediu mais duas bebidas – uma para cada – e continuou.

- Eu sei que hoje você acredita que tudo está acabado, mas confie em mim. Você ainda vai dar a volta por cima.

- Vou?

- Sim. Sem dúvida. E você irá se transformar em mim.

- Em você? Mas o que você faz?

- Eu sou senador.

- Senador? Você é louco. Mas o que estão falando é que vou perder meus direitos políticos. Você é louco e eu vou embora.

- Você não quer ser senador?

O presidente estava fazendo menção de se levantar e voltar para seu gabinete. Podia continuar bebendo ali, sozinho, sem ninguém enchendo seu saco. Mas a ideia de ser senador pareceu atraente. Na verdade, a ideia de ser qualquer coisa no futuro lhe parecia atraente naquele momento. Decidiu ficar e ver até aonde aquela loucura ia. Aproveitou e pediu mais amendoins.

- Certo. Eu quero ser senador. Quer dizer, se eu realmente não for mais presidente...

- Esqueça a presidência. A presidência é algo perdido.

- Não. O processo ainda não foi terminado. Além disso, eu tenho provas que...

- Esqueça. Se você continuar na presidência, sua vida vai terminar.

- Eu nunca mais vou ser nada?

- Não. Terminar de verdade. Você não chegará ao final do mandato. Você será assassinado.

O presidente engasgou com um gole de uísque.

- Assassinado?

- Sim. Você vai levar um tiro. No meio de Brasília. Ninguém sabe quem deu o tiro, mas não importa. Isso vai alterar todo o curso da história. Eu sou apenas uma versão sua. Existem outras. O Fernando que vai existir caso você decida continuar na presidência está sentado no banco ao meu lado.

- Não tem ninguém ao seu lado.

- Exatamente. Então, acredito que seja melhor você ouvir a mim que a ele.

Era um argumento forte. Um pouco insano, mas ainda assim forte.

- Certo.

- Tudo o que você precisa é renunciar. Deixe o processo se arrastar por mais um tempo. Ele ainda vai ao Senado. Quando o processo no Senado começar, você renuncia e pronto. Está tudo acabado.

- E aí?

- Aí você vai tirar um período sabático. Desapareça por uns tempos. Mesmo porque você não poderá ser candidato a nada durante um bom tempo.

O presidente resmungou um palavrão, mas o homem explicou que:

- Não seja frouxo. Desde quando você precisa ser eleito para sua família mandar no seu estado?

- Bem, sim... Mas é que ser eleito é diferente. Dá mais status na hora de mandar.

- Você ainda vai ser eleito, mas não tão cedo. Por enquanto, você vai continuar mandando, mas por baixo do pano. Mulheres. Festas. Tudo estará ali. Você não terá apenas um cargo público. Mas, daqui uns quinze anos, tudo vai mudar.

- Tudo?

- Sim. Incluindo o país. Veja, sabe quem vai ser eleito presidente em 2002?

- Não faço ideia.

O homem olhou ao redor para ver se ninguém estava escutando, se aproximou do presidente e cochichou um nome. O presidente engasgou mais uma vez. Naquele momento, não era apenas aquilo que ele tinha roxo, era o rosto também.

- E ele vai fazer um bom governo.

- Ele não sabe escrever!

- Isso não é verdade. Você disse isso apenas para ganhar a eleição.

- Bem, sim, mas... Todo mundo acreditou. Se todo mundo acreditou, é verdade.

- Esqueça isso agora. Ele vai ser presidente. E vai ser reeleito.

- Mas não existe reeleição!

- No futuro, existe. Ele vai ser presidente, vai ser reeleito, mas a coisa vai começar a fazer água.

- Como assim?

- Denúncias disso. Denúncias daquilo. Gente do partido sendo presa. Inclusive um dos deputados que pediu a CPI.

- O Eduardo?

- Não. O outro.

- Mas eles não são honestos?

- Quem sabe? Talvez hoje eles sejam. Não sei. Seria melhor perguntar a ele. Mas no futuro não são. Acho que o problema é o cargo, sabe?

- Como assim?

O homem pediu mais duas doses, e esperou o barman terminar de servi-los para continuar.

- O problema é o cargo. Você não consegue ficar limpo sentado naquela cadeira. Claro, você é um sujeito que nem tentou... Nem sei se os outros tentaram também. Mas você senta ali e a sujeira começa. E a cobrança. E as intrigas. E é por isso que você nunca mais vai ser presidente.

- Merda. Eu gosto de ser presidente.

- Não, vai ser bom. Confie em mim. Tudo o que você precisa é deixar as coisas seguirem seu curso.

- O curso das coisas não é bom. Eu vou ser execrado em praça pública.

- Que é melhor do que morrer, não acha?

- Bem, sim.

- Você precisa apenas deixar as coisas acontecerem naturalmente. Confie em mim. Senador. Eleito com ampla maioria. Ternos novos, carros novos...

- Carros importados? Eu odeio os carros daqui.

- Isso. E poder. Muito poder. As pessoas vão esquecer o que está acontecendo agora. As pessoas não têm memória.

- E minha mulher? Vai estar comigo.

- Esqueça ela.

Não parecia difícil, o presidente pensou.

- E o Paulo César?

O homem não respondeu. Apenas passou um dedo atravessado pela própria garganta, num gesto que não precisava de muitas explicações. Não parecia difícil também.

- Certo. E todos os outros. O Eriberto? O Jorge Bandeira? O Renan?

- Ninguém vai nem se lembrar do Eriberto, nem do Jorge Bandeira. O Renan... Bem, o Renan está lá ainda.

- Sério? Ele vai conseguir?

- Sim. Da mesma forma que você. Vai ficar sem segundo plano, mandando e desmandando no País. Porque depois que o... Bem, depois que ele sai da presidência, entra uma aliada dele no cargo, e aí a coisa explode.

- Uma mulher?

- Isso. E a coisa vai degringolar. Porque eles vão descobrir que não dá para governar sem o Renan. E sem você.

- Espera... Sem mim?

- Isso. Você é um aliado forte. Vão querer ter você ao seu lado.

- Mas eu vou ter que ser honesto?

- Claro que não. O presidente até precisa ser honesto. Seus aliados, não. Basta fazer bem feito.

- E eu vou ser aliado.

- Olhe, vou falar uma coisa. Sabe onde eu estava ontem?

- Onde?

- Num palanque ao lado dela. Ela está concorrendo à eleição com o... Você não conhece ainda, é neto do Tancredo. Baita imundície, dos dois lados. E eu estava ao lado dela no palanque.

- Mesmo?

- Sim. E ela levantou meu braço e cobrou o fim da corrupção. E foi aplaudida!

- Eu vou estar num comício com a amiga dele... E ela falando que vai combater a corrupção?

Os olhos do presidente brilhavam. O homem respondeu a ele que sim. E ambos riram.

- Mas agora você precisa voltar ao palácio.

- Então, o que eu preciso fazer? Renunciar?

- Renunciar é só o primeiro passo. Você precisa apenas desaparecer por um tempo e deixar as coisas seguirem seu curso. E eu prometo que vai dar certo. E você vai ter mais poder que nunca.

- Mesmo?

- O que você acha melhor? Ser presidente ou mandar no presidente?

Não era preciso pensar muito para decidir.

- Você promete que vai dar certo? Isso parece impossível.

- Confie em mim. O segredo é não desistir. Mas agora você precisa ir. Deixe que eu pago.

O presidente se despediu com um abraço e foi embora, mais aliviado. Havia uma saída. Bastava renunciar, ficar quieto por um tempo e voltar naturalmente anos depois. E no palanque da presidente! Nem nos seus planos mais sórdidos teria pensado nisso.

O homem ficou no bar e olhou no relógio. Estava quase na hora. Levantou-se, foi até o banheiro e se olhou no espelho. Tinha orgulho da sua capacidade de se disfarçar. Era um dos seus grandes trunfos na hora de assinar contratos.

Não que não fosse fácil fechar contratos no Brasil. Sempre que precisava corromper mais almas, vinha ao Brasil falar com políticos. Tudo era mais fácil. Eles já eram corruptos por natureza, bastava apenas mantê-los na ativa sempre que seus nomes chegavam às manchetes dos jornais. Bastava apenas incentivá-los a continuar sendo o que eram. Não era preciso se arrepender, apenas prometer para eles mesmos que seriam mais cuidadosos.

Mas era preciso tomar cuidado para não ser enganado ao negociar com essa gente. Eram espertos e capazes de corromper o próprio demônio.

Os olhos do homem ficaram amarelos, mas logo voltaram a sua cor normal quando sua aparência terminou de mudar. Agora, estava mais velho, com mais de oitenta anos. Era mais baixo, um pouco mais gordo e com um enorme bigode no meio da face.

Hora de trabalhar e corromper mais uma alma. Com esse negócio de impeachment, o Brasil vivia um surto de moralidade e ele não podia deixar isso acontecer. Quando se tratava de almas, o Brasil era sua galinha dos ovos de ouro. Bastava corromper meia dúzia que, em menos de um ano, essa meia dúzia já havia corrompido outras dezenas. Bastava apenas semear o pecado e esperar. As coisas andavam sozinhas, tudo o que ele precisava fazer era manter as mesmas moscas voando ao redor da carniça.

Saiu do banheiro e viu seu alvo. Um homem sentado no balcão. Tinha bigode e aquele rosto desanimado de quem já teve poder, mas acabou vendo este poder ser reduzido. Sabendo que estava em uma cópia exata e mais velha que o sujeito do balcão, o homem sentou-se ao seu lado e caprichou no sotaque.

- O que você acha de voltar a mandar no Brasil?

O homem olhou espantado para o Demônio, que continuou.

- E, melhor ainda, ver sua filha Rosana mandando no seu estado.

O homem de bigode não sabia o que falar. O Demônio sugeriu:

- Posso lhe pagar uma bebida?

4 leitores:

Elise disse...

Agora tudo faz sentido...

Anônimo disse...

Incrível!e se foi assim mesmo, que rumo teria tomado se Collor não renunciasse?? Pronto viajei legal. Rob você é demais, admiro muito tua perspicácia e tua enorme e critica imaginação.

Blog do Antônio disse...

MEU DEUS

AGORA EU ENTENDO

Marcie Grynblat Pellicano disse...

Se eu soubesse que a explicação era tão fácil...! ;-)

 

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