24 de dezembro de 2013

O Homem das Garrafinhas de Veneno

Nicolau estava sentado na pequena mesa da cozinha. Estava tomando a última xícara de chá e fazendo um pouco de hora antes de sair de casa. Não era preciso checar mais nada. A roupa estava certa, a pilha de sacos vazios já estava amarrada com cuidado e o trenó estava preparado.

Estava tudo pronto para o Natal começar.

Mesmo assim, Nicolau estava mal humorado.

Na verdade, Nicolau sempre ficava mal humorado no Natal. A única pessoa que sabia disso era sua esposa, que agora estava em pé no outro canto da cozinha preparando um sanduíche em silêncio. Sabia que quando o marido ficava mal humorado, o melhor que podia fazer era deixá-lo em silêncio. Conversar com ele ou perguntar por que estava com a cara fechada apenas tornaria as coisas piores.

Além disso, ela não precisava perguntar nada. Sabia exatamente qual o motivo do mau humor do velho.

Sabia que Nicolau detestava o Natal. Ou melhor dizendo, sabia que Nicolau detestava o que o Natal havia se tornado. Sempre que conversavam sobre o assunto, Nicolau reclamava que ninguém mais se importava com o Natal. Segundo ele, todos ficavam mais preocupados com presentes e comidas que com o amor. Davam mais valor para as fotografias e para as roupas que para a alegria. O velho achava que todos estavam mais preocupados em comemorar o Natal para os outros que para eles mesmos.

E Nicolau detestava este tipo de coisa.

Por isso, Nicolau estava sempre mal humorado no Natal. Além disso, tinha que trabalhar a noite toda. E seu trabalho não era exatamente fácil. Isso não ajudava nada o humor do velho.

Nicolau nunca soube direito quem começou com aquela história que seu trabalho envolvia atravessar o mundo sorrindo e distribuindo brinquedos. Nada poderia estar mais longe da verdade. O mesmo podia ser dito sobre a oficina de brinquedos. Muitas pessoas acreditavam que Nicolau era dono de uma fábrica de brinquedos, onde tinha a ajuda de dezenas de duendes. Nicolau não sabia de onde haviam tirado essa ideia. O velho nunca teve um brinquedo em sua casa e também sequer havia encontrado um duende na vida.

Até onde Nicolau sabia, duendes nem mesmo existiam.

Normalmente, Nicolau não daria atenção a esta história. Faria de conta que não era com ele, como havia feito com todo o resto. Usavam seu rosto em vitrines de lojas, em garrafas de bebida... Nicolau não se importava com isso. Sabia que as pessoas sempre acreditaram no que queriam, e isso era problema delas.

Mas o que deixava Nicolau irritado com essa história eram as cartas. Como as pessoas acreditavam que ele fabricava brinquedos, bastava o Natal se aproximar para as cartas começarem. Eram milhões, enviadas de crianças de todos os lugares do mundo, pedindo brinquedos e presentes e presentes e brinquedos. Nicolau lia algumas por curiosidade, mas ignorava a maioria.

E jogava todas no lixo.

Não estava lá para isso. Não estava lá para fabricar brinquedos.

Na verdade, se pudesse escolher, Nicolau provavelmente iria preferir distribuir brinquedos ao seu verdadeiro trabalho. Pois o que Nicolau fazia era mais difícil que distribuir bolas e bonecas. Há séculos, Nicolau rodava o mundo durante as noites de Natal, passando de casa em casa, de cidade em cidade, num trenó envelhecido e negro.

Mas não distribuía nada. Pelo contrário, recolhia os sentimentos ruins das pessoas. Tirava uma frustração aqui, uma mágoa ali, uma raiva desta pessoa, uma inveja daquela outra. E ia guardando tudo em pequenos frascos – que ele chamava de “garrafinhas de veneno” – nos sacos ao seu lado.

Conforme ia cumprindo sua tarefa, os moradores das casas por onde Nicolau passava começavam a se sentir melhores, sem entender direito o motivo disso. Tornavam-se pessoas melhores, ao menos por alguns minutos. E, quando o relógio batia meia-noite, beijavam-se e abraçavam-se de forma sincera.

Este era o trabalho de Nicolau. Para ele, o Natal não era a respeito de brinquedos novos. Era a respeito de pessoas novas. Ou, melhor ainda, da renovação das pessoas.

Por isso que Nicolau dava risada – era uma das poucas risadas que dava quando o assunto era trabalho – das pessoas que achavam que ele trabalhava somente na noite de Natal, entregando brinquedos. Não, Nicolau trabalhava o ano todo, inclusive naqueles meses em que ninguém se lembrava dele. Especialmente naqueles meses que ninguém se lembrava dele.

Ao longo da noite de Natal, Nicolau ia de casa em casa, tirando o pior das pessoas e colocando nos sacos. Quando os sacos se enchiam, voltava para casa com as frustrações, pegava novos sacos e continua a jornada. Ao raiar do dia, milhares de sacos estavam amontoados na pequena garagem ao lado de sua casa. E aí começava o verdadeiro trabalho: Nicolau passava meses andando para lá e para cá, cavando buracos e enterrando os sacos na floresta próxima a onde ele morava. Não eram buracos pequenos, eram enormes, pois Nicolau sabia que alguns sentimentos precisam ser enterrados e escondidos para sempre.

Passava dias, semanas, meses, fazendo isso o tempo inteiro. Parava somente para almoçar e dormir algumas horas. Mas nunca estava sozinho. Enquanto enterrava os sacos, Nicolau estava sempre conversando com os animais que moravam na floresta. Nicolau era amigo dos animais. Renas, cães, coelhos e até mesmo pássaros estavam sempre ao seu lado.

Seu amor por animais era tão grande que, neste ano, nos últimos dias, Nicolau havia quase deixado de lado quando todos os preparativos finais para o Natal. Isso porque, alguns dias, um pequeno cachorrinho aparecera nas redondezas, chorando porque se perdera dos pais e dos irmãos. Nicolau passara dias rodando a floresta em busca da família do animalzinho mas não encontrou nenhuma pista, e pediu aos outros animais que cuidassem do pequenino. E pediu que fizessem com que o Natal dele fosse bom e que ele não se sentisse sozinho.

Nicolau gostava mais dos animais que das pessoas, pois sabia que os animais jamais sentiam coisas ruins. E isso envolvia o Natal dos animais. Os animais estavam sempre comemorando o fato de estarem juntos por mais um Natal, ao invés de se preocupar em estar mais bonito que o outro, de gritar com as crianças que não param de fazer bagunça, ou de mexer nos seus telefones para tentar causar inveja em pessoas que nunca viram na vida.

O Natal deles era puro e repleto de amor. Nicolau gostava de Natais puros. Queria passar o Natal com os animais e com sua esposa, ao menos uma vez na vida. Os animais sabiam comemorar o Natal.

Era isso que Nicolau estava pensando quando terminou seu chá e olhou no relógio. Estava começando a anoitecer. Estava começando o Natal. Era hora de sair de casa. Nicolau despediu-se da esposa. E, resmungando, subiu no trenó e partiu.

Durante horas, Nicolau seguiu a rotina de sempre, passando sobre as casas e enchendo suas garrafinhas de veneno. Horas depois, retornava com os sacos lotados de coisas ruins, descarregava o trenó e partia novamente, desta vez para outro lugar, transformando outras pessoas em pessoas melhores, e enchendo novos frascos e novos sacos.

Nicolau cumpria sua missão profissionalmente, sem se envolver. Fazia o que deveria fazer e pronto.  Se no dia seguinte as pessoas iam começar a sentir raiva e inveja novamente, era problema delas (Nicolau sabia que elas sempre voltavam a sentir essas coisas mais rápido do que deveriam e a prova disso é que Nicolau, a cada ano, recolhia o mesmo número de garrafinhas).

O trabalho de Nicolau era dar segundas chances para as pessoas. Se elas não sabiam aproveitar isso, não era problema dele. Se elas acreditavam que aquela leveza que sentiam na meia-noite de Natal era apenas obra do espírito de Natal ou de alguns copos de bebida, Nicolau também não se importava. Nicolau não se importava com a falta de reconhecimento. Não estava lá para ser aplaudido ou celebrado.

Estava lá para cumprir sua missão. E a cumpria todos os anos.

E, nesta noite de Natal como em todas as outras, Nicolau cumpriu sua missão, trabalhando a noite inteira, até o Sol começar a nascer e ele retornar para casa da sua última viagem, com os últimos sacos cheios de frascos.

Da janela da cozinha, sua esposa – que, na noite de Natal, não dormia até Nicolau terminar seu trabalho – observou o velho pousando o trenó e atravessando o pequeno portão de madeira para entrar em casa.

Sua aparência entregava o cansaço que sentia. Nicolau estava exausto, como sempre estava nas manhãs de Natal. Não somente por rodar o mundo inteiro, mas por passar horas e mais horas perto das garrafinhas de veneno. Tudo o que Nicolau queria era tirar sua roupa e suas botas, deitar e dormir um pouco.

Entretanto, ele não seguiu direto para casa. Ao passar pelo portão, algo chamou sua atenção dentro da caixa de correio.

Sua esposa viu quando ele abriu a pequena portinha e puxou um pedaço de papel. Provavelmente, a carta de algum menino entregue de última hora, ou que havia sido perdida nos correios – já havia acontecido antes. Teve certeza que Nicolau iria ler apenas por curiosidade, antes de jogá-la fora como fazia com todas as outras e não deu muita atenção ao que velho fazia.

Mas, para sua surpresa, Nicolau fez exatamente o contrário. Ficou parado por alguns instantes, como se estivesse relendo a carta diversas vezes. Até que olhou para cima, e esfregou os olhos com a ponta dos dedos. Sua esposa nunca soube se ele estava espantando o cansaço ou enxugando uma lágrima. Ficou ali, parado, durante alguns segundos.

Então, Nicolau partiu em direção à floresta, voltando minutos depois.

O pequeno cachorrinho que havia sido encontrado na floresta dormia profundamente, aninhado entre os braços do velho. Com o cãozinho no colo, Nicolau subiu no trenó – tomando cuidado para não despertar o animalzinho – e se preparou para sair novamente.

Sua esposa saiu da cozinha e perguntou o que havia acontecido, mas Nicolau, com o cachorrinho no colo, respondeu apenas que precisava resolver uma coisa e que voltaria logo.

E partiu com o animalzinho, fazendo o pequeno pedaço de papel flutuar do trenó e cair sobre a neve, aos pés de sua esposa. Ela apanhou a carta.


Querido Papai Noel,

Esta é a segunda cartinha que eu escrevo esse ano, porque na primeira que eu mandei eu pedi um presente que não quero mais. Eu pedi um carrinho mas depois lembrei que esse ano o vovô foi embora. A mamãe diz que o vovô está no céu e que vai estar sempre perto de mim, mas eu não entendo como o vovô pode estar no céu e perto de mim e também não entendo porque não consigo ver o vovô se ele está perto de mim. Eu ia pedir de natal pra conseguir ver o vovô de novo porque eu não consigo ver o vovô mesmo com a mamãe falando que ele está perto de mim então eu fico com saudade do vovô mas o papai disse que não dá pra eu ver o vovô de novo. Se você não está muito ocupado eu quero pedir de natal um novo amiguinho pra poder brincar comigo que nem eu brincava com o vovô, porque assim eu vou sentir menos falta do vovô. Se você me der um amiguinho novo que seja tão legal quanto o vovô pode dar o carrinho que eu pedi na primeira carta pra outro menino que não tem nenhum carrinho.

Feliz natal.

Pedro

Com o papel nas mãos, a esposa de Nicolau sorriu.

Olhou para o alto. Sobre as árvores, o trenó de seu marido voava em direção ao horizonte.

Tinha muito orgulho do seu marido e do enorme coração que ele possuía – mesmo que ele negasse isso sempre que ela tocava no assunto. Aliás, especialmente pelo fato dele negar isso sempre que ela tocava no assunto. Era o jeito dele, achar que não fazia nada demais, apenas o que considerava correto.

Pensou também no pequeno Pedro e no cachorrinho. E na sorte que o menino tinha. O garoto jamais faria ideia que o Papai Noel faria uma última viagem, naquela noite de Natal, só por causa dele. Na verdade, o garoto sequer imaginaria, um dia, de que teria sido a primeira criança do mundo a ter sua cartinha atendida pelo Papai Noel.

Sorriu.

E decidiu, naquele momento, que iria entrar em casa e preparar rabanadas para ele. Nicolau adorava rabanadas. Este seria o seu presente de Natal para ele.

- Feliz Natal, Nicolau, disse baixinho, olhando para o céu.

E voltou para dentro de casa, pronta para começar a cozinhar.

6 leitores:

Lara disse...

quando chegou na parte que explicava o verdadeiro trabalho do Nicolau, eu pensei profundamente: cara, agora tudo faz sentido.

obrigada por lembrar comigo qual é realmente a cara do natal.

Lu Lima* disse...

Confesso que chorei. E não há nada maior que isso. (Particularmente na noite de natal).
Muito Obrigada.
Feliz Natal!
:)

Elaine disse...

Sim, como disse a Lara, agora tudo faz sentido! E q bom q o Pedrinho vai ter um novo amigo! Lindo texto, como sempre. Parabéns!

Elaine disse...

Sim, como disse a Lara, agora tudo faz sentido! E q bom q o Pedrinho vai ter um novo amigo! Lindo texto, como sempre. Parabéns!

Varotto disse...

Grande sacada!

Não sei o porquê, mas estou visualizando mais uma atividade em seu futuro próximo: algo relacionado a roteiros...

Thiago Dalleck disse...

Ótimo conto, muito boa a carta do menino! Bela sacada com as "garrafinhas de veneno" da Coca haha. Concordo com o Varotto, isso tem um quê de roteiro, seja de curta-metragem ou animação, ficaria bem legal!

 

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