Nicolau estava sentado na pequena mesa da cozinha. Estava
tomando a última xícara de chá e fazendo um pouco de hora antes de sair de casa.
Não era preciso checar mais nada. A roupa estava certa, a pilha de sacos vazios
já estava amarrada com cuidado e o trenó estava preparado.
Estava tudo pronto para o Natal começar.
Mesmo assim, Nicolau estava mal humorado.
Na verdade, Nicolau sempre ficava mal humorado no Natal. A
única pessoa que sabia disso era sua esposa, que agora estava em pé no outro
canto da cozinha preparando um sanduíche em silêncio. Sabia que quando o marido
ficava mal humorado, o melhor que podia fazer era deixá-lo em silêncio.
Conversar com ele ou perguntar por que estava com a cara fechada apenas
tornaria as coisas piores.
Além disso, ela não precisava perguntar nada. Sabia exatamente
qual o motivo do mau humor do velho.
Sabia que Nicolau detestava o Natal. Ou melhor dizendo,
sabia que Nicolau detestava o que o Natal havia se tornado. Sempre que conversavam sobre o assunto, Nicolau reclamava
que ninguém mais se importava com o Natal. Segundo ele, todos ficavam mais
preocupados com presentes e comidas que com o amor. Davam mais valor para as
fotografias e para as roupas que para a alegria. O velho achava que todos
estavam mais preocupados em comemorar o Natal para os outros que para eles
mesmos.
E Nicolau detestava este tipo de coisa.
Por isso, Nicolau estava sempre mal humorado no Natal. Além
disso, tinha que trabalhar a noite toda. E seu trabalho não era exatamente
fácil. Isso não ajudava nada o humor do velho.
Nicolau nunca soube direito quem começou com aquela história
que seu trabalho envolvia atravessar o mundo sorrindo e distribuindo
brinquedos. Nada poderia estar mais longe da verdade. O mesmo podia ser dito sobre
a oficina de brinquedos. Muitas pessoas acreditavam que Nicolau era dono de uma
fábrica de brinquedos, onde tinha a ajuda de dezenas de duendes. Nicolau não sabia
de onde haviam tirado essa ideia. O velho nunca teve um brinquedo em sua casa e
também sequer havia encontrado um duende na vida.
Até onde Nicolau sabia, duendes nem mesmo existiam.
Normalmente, Nicolau não daria atenção a esta história. Faria
de conta que não era com ele, como havia feito com todo o resto. Usavam seu
rosto em vitrines de lojas, em garrafas de bebida... Nicolau não se importava
com isso. Sabia que as pessoas sempre acreditaram no que queriam, e isso era
problema delas.
Mas o que deixava Nicolau irritado com essa história eram as
cartas. Como as pessoas acreditavam que ele fabricava brinquedos, bastava o
Natal se aproximar para as cartas começarem. Eram milhões, enviadas de crianças
de todos os lugares do mundo, pedindo brinquedos e presentes e presentes e
brinquedos. Nicolau lia algumas por curiosidade, mas ignorava a maioria.
E jogava todas no lixo.
Não estava lá para isso. Não estava lá para fabricar
brinquedos.
Na verdade, se pudesse escolher, Nicolau provavelmente iria
preferir distribuir brinquedos ao seu verdadeiro trabalho. Pois o que Nicolau
fazia era mais difícil que distribuir bolas e bonecas. Há séculos, Nicolau
rodava o mundo durante as noites de Natal, passando de casa em casa, de cidade
em cidade, num trenó envelhecido e negro.
Mas não distribuía nada. Pelo contrário, recolhia os sentimentos
ruins das pessoas. Tirava uma frustração aqui, uma mágoa ali, uma raiva desta
pessoa, uma inveja daquela outra. E ia guardando tudo em pequenos frascos – que
ele chamava de “garrafinhas de veneno” – nos sacos ao seu lado.
Conforme ia cumprindo sua tarefa, os moradores das casas por
onde Nicolau passava começavam a se sentir melhores, sem entender direito o
motivo disso. Tornavam-se pessoas melhores, ao menos por alguns minutos. E, quando
o relógio batia meia-noite, beijavam-se e abraçavam-se de forma sincera.
Este era o trabalho de Nicolau. Para ele, o Natal não era a
respeito de brinquedos novos. Era a respeito de pessoas novas. Ou, melhor
ainda, da renovação das pessoas.
Por isso que Nicolau dava risada – era uma das poucas
risadas que dava quando o assunto era trabalho – das pessoas que achavam que
ele trabalhava somente na noite de Natal, entregando brinquedos. Não, Nicolau
trabalhava o ano todo, inclusive naqueles meses em que ninguém se lembrava
dele. Especialmente naqueles meses que ninguém se lembrava dele.
Ao longo da noite de Natal, Nicolau ia de casa em casa,
tirando o pior das pessoas e colocando nos sacos. Quando os sacos se enchiam,
voltava para casa com as frustrações, pegava novos sacos e continua a jornada. Ao
raiar do dia, milhares de sacos estavam amontoados na pequena garagem ao lado
de sua casa. E aí começava o verdadeiro trabalho: Nicolau passava meses andando
para lá e para cá, cavando buracos e enterrando os sacos na floresta próxima a
onde ele morava. Não eram buracos pequenos, eram enormes, pois Nicolau sabia
que alguns sentimentos precisam ser enterrados e escondidos para sempre.
Passava dias, semanas, meses, fazendo isso o tempo inteiro.
Parava somente para almoçar e dormir algumas horas. Mas nunca estava sozinho.
Enquanto enterrava os sacos, Nicolau estava sempre conversando com os animais
que moravam na floresta. Nicolau era amigo dos animais. Renas, cães, coelhos e
até mesmo pássaros estavam sempre ao seu lado.
Seu amor por animais era tão grande que, neste ano, nos
últimos dias, Nicolau havia quase deixado de lado quando todos os preparativos finais
para o Natal. Isso porque, alguns dias, um pequeno cachorrinho aparecera nas
redondezas, chorando porque se perdera dos pais e dos irmãos. Nicolau passara
dias rodando a floresta em busca da família do animalzinho mas não encontrou
nenhuma pista, e pediu aos outros animais que cuidassem do pequenino. E pediu
que fizessem com que o Natal dele fosse bom e que ele não se sentisse sozinho.
Nicolau gostava mais dos animais que das pessoas, pois sabia
que os animais jamais sentiam coisas ruins. E isso envolvia o Natal dos
animais. Os animais estavam sempre comemorando o fato de estarem juntos por mais
um Natal, ao invés de se preocupar em estar mais bonito que o outro, de gritar
com as crianças que não param de fazer bagunça, ou de mexer nos seus telefones
para tentar causar inveja em pessoas que nunca viram na vida.
O Natal deles era puro e repleto de amor. Nicolau gostava de
Natais puros. Queria passar o Natal com os animais e com sua esposa, ao menos
uma vez na vida. Os animais sabiam comemorar o Natal.
Era isso que Nicolau estava pensando quando terminou seu chá
e olhou no relógio. Estava começando a anoitecer. Estava começando o Natal. Era
hora de sair de casa. Nicolau despediu-se da esposa. E, resmungando, subiu no
trenó e partiu.
Durante horas, Nicolau seguiu a rotina de sempre, passando
sobre as casas e enchendo suas garrafinhas de veneno. Horas depois, retornava com
os sacos lotados de coisas ruins, descarregava o trenó e partia novamente, desta
vez para outro lugar, transformando outras pessoas em pessoas melhores, e enchendo
novos frascos e novos sacos.
Nicolau cumpria sua missão profissionalmente, sem se
envolver. Fazia o que deveria fazer e pronto. Se no dia seguinte as pessoas iam começar a sentir
raiva e inveja novamente, era problema delas (Nicolau sabia que elas sempre
voltavam a sentir essas coisas mais rápido do que deveriam e a prova disso é
que Nicolau, a cada ano, recolhia o mesmo número de garrafinhas).
O trabalho de Nicolau era dar segundas chances para as
pessoas. Se elas não sabiam aproveitar isso, não era problema dele. Se elas
acreditavam que aquela leveza que sentiam na meia-noite de Natal era apenas
obra do espírito de Natal ou de alguns copos de bebida, Nicolau também não se
importava. Nicolau não se importava com a falta de reconhecimento. Não estava
lá para ser aplaudido ou celebrado.
Estava lá para cumprir sua missão. E a cumpria todos os
anos.
E, nesta noite de Natal como em todas as outras, Nicolau
cumpriu sua missão, trabalhando a noite inteira, até o Sol começar a nascer e ele
retornar para casa da sua última viagem, com os últimos sacos cheios de frascos.
Da janela da cozinha, sua esposa – que, na noite de Natal,
não dormia até Nicolau terminar seu trabalho – observou o velho pousando o
trenó e atravessando o pequeno portão de madeira para entrar em casa.
Sua aparência entregava o cansaço que sentia. Nicolau estava
exausto, como sempre estava nas manhãs de Natal. Não somente por rodar o mundo
inteiro, mas por passar horas e mais horas perto das garrafinhas de veneno. Tudo
o que Nicolau queria era tirar sua roupa e suas botas, deitar e dormir um
pouco.
Entretanto, ele não seguiu direto para casa. Ao passar pelo
portão, algo chamou sua atenção dentro da caixa de correio.
Sua esposa viu quando ele abriu a pequena portinha e puxou
um pedaço de papel. Provavelmente, a carta de algum menino entregue de última
hora, ou que havia sido perdida nos correios – já havia acontecido antes. Teve
certeza que Nicolau iria ler apenas por curiosidade, antes de jogá-la fora como
fazia com todas as outras e não deu muita atenção ao que velho fazia.
Mas, para sua surpresa, Nicolau fez exatamente o contrário. Ficou
parado por alguns instantes, como se estivesse relendo a carta diversas vezes.
Até que olhou para cima, e esfregou os olhos com a ponta dos dedos. Sua esposa
nunca soube se ele estava espantando o cansaço ou enxugando uma lágrima. Ficou ali,
parado, durante alguns segundos.
Então, Nicolau partiu em direção à floresta, voltando
minutos depois.
O pequeno cachorrinho que havia sido encontrado na floresta
dormia profundamente, aninhado entre os braços do velho. Com o cãozinho no
colo, Nicolau subiu no trenó – tomando cuidado para não despertar o animalzinho
– e se preparou para sair novamente.
Sua esposa saiu da cozinha e perguntou o que havia
acontecido, mas Nicolau, com o cachorrinho no colo, respondeu apenas que
precisava resolver uma coisa e que voltaria logo.
E partiu com o animalzinho, fazendo o pequeno pedaço de
papel flutuar do trenó e cair sobre a neve, aos pés de sua esposa. Ela apanhou a
carta.
Querido Papai Noel,
Esta é a segunda
cartinha que eu escrevo esse ano, porque na primeira que eu mandei eu pedi um
presente que não quero mais. Eu pedi um carrinho mas depois lembrei que esse
ano o vovô foi embora. A mamãe diz que o vovô está no céu e que vai estar
sempre perto de mim, mas eu não entendo como o vovô pode estar no céu e perto
de mim e também não entendo porque não consigo ver o vovô se ele está perto de
mim. Eu ia pedir de natal pra conseguir ver o vovô de novo porque eu não
consigo ver o vovô mesmo com a mamãe falando que ele está perto de mim então eu
fico com saudade do vovô mas o papai disse que não dá pra eu ver o vovô de novo.
Se você não está muito ocupado eu quero pedir de natal um novo amiguinho pra
poder brincar comigo que nem eu brincava com o vovô, porque assim eu vou sentir
menos falta do vovô. Se você me der um amiguinho novo que seja tão legal quanto
o vovô pode dar o carrinho que eu pedi na primeira carta pra outro menino que
não tem nenhum carrinho.
Feliz natal.
Pedro
Com o papel nas mãos, a esposa de Nicolau sorriu.
Olhou para o alto. Sobre as árvores, o trenó de seu marido voava
em direção ao horizonte.
Tinha muito orgulho do seu marido e do enorme coração que
ele possuía – mesmo que ele negasse isso sempre que ela tocava no assunto.
Aliás, especialmente pelo fato dele negar isso sempre que ela tocava no
assunto. Era o jeito dele, achar que não fazia nada demais, apenas o que
considerava correto.
Pensou também no pequeno Pedro e no cachorrinho. E na sorte
que o menino tinha. O garoto jamais faria ideia que o Papai Noel faria uma
última viagem, naquela noite de Natal, só por causa dele. Na verdade, o garoto sequer
imaginaria, um dia, de que teria sido a primeira criança do mundo a ter sua cartinha
atendida pelo Papai Noel.
Sorriu.
E decidiu, naquele momento, que iria entrar em casa e
preparar rabanadas para ele. Nicolau adorava rabanadas. Este seria o seu
presente de Natal para ele.
- Feliz Natal, Nicolau, disse baixinho, olhando para o céu.
E voltou para dentro de casa, pronta para começar a
cozinhar.
6 leitores:
quando chegou na parte que explicava o verdadeiro trabalho do Nicolau, eu pensei profundamente: cara, agora tudo faz sentido.
obrigada por lembrar comigo qual é realmente a cara do natal.
Confesso que chorei. E não há nada maior que isso. (Particularmente na noite de natal).
Muito Obrigada.
Feliz Natal!
:)
Sim, como disse a Lara, agora tudo faz sentido! E q bom q o Pedrinho vai ter um novo amigo! Lindo texto, como sempre. Parabéns!
Sim, como disse a Lara, agora tudo faz sentido! E q bom q o Pedrinho vai ter um novo amigo! Lindo texto, como sempre. Parabéns!
Grande sacada!
Não sei o porquê, mas estou visualizando mais uma atividade em seu futuro próximo: algo relacionado a roteiros...
Ótimo conto, muito boa a carta do menino! Bela sacada com as "garrafinhas de veneno" da Coca haha. Concordo com o Varotto, isso tem um quê de roteiro, seja de curta-metragem ou animação, ficaria bem legal!
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