5 de agosto de 2011

gasoso

e onipresente. E, enquanto telefones ainda não tocavam, antes de e-mails serem escritos, ele flutuou no ar, ainda tão invisível como nos últimos meses, e olhou para baixo. Viu a si mesmo deitado no chão. Sentia-se em paz, mesmo conhecendo o castigo que seria obrigado a cumprir. Sentia-se livre, mesmo se recordando do castigo que havia sido obrigado a cumprir. As memórias se tornaram doces e confusas. Desfilavam ao redor do corpo, e, sem diferenciar mais passado, presente ou futuro, misturavam-se às promessas, sonhos, brigas e juras de amor ditas na sala, em vozes que continuaram aprisionadas entre as paredes, sem saírem da casa. Sem saírem dele. Flutuando, desviou sua atenção da carne sem vida e do sangue morto, percorrendo a casa feito nuvem. Observou fotografias de sorrisos que não mais existiam, feitas em momentos que lhe foram roubados. Deslizou pelo ar, sentindo-se finalmente distante dos “não”, inerte às mentiras, anestesiado do fracasso solitário. Não havia mais nada, a não ser o silêncio repleto de lembranças, temperado com um leve cheiro de pólvora. Encontrou sobre a mesa um retrato específico, que poderia ter anos ou séculos. Abriu a mão e deslizou a ponta dos dedos sobre o rosto estampado nele, sem conseguir tocá-lo. Olhou mais uma vez para seu corpo sólido que se liquefazia em vermelho, e fechou os olhos transparentes enquanto começou a se dissipar no ar, feito areia entregue ao vento. Finalmente, ainda conseguiu alguns segundos ou anos suficientes para sussurrar, sem ser ouvido por ninguém, um adeus.

E se foi. Desta vez, para sempre.

6 leitores:

Renata Schmitd disse...

se eu desconhecesse a realidade pro trás desse texto, teria achado lindo.

IsabelVeronica disse...

Muita dor!
Muito triste!

Ana Savini disse...

Faço das palavras da R. as minhas.

Unknown disse...

Doloroso, perturbador e, ao mesmo tempo, bonito.

Tharik disse...

Melhor crônica que já li.
Sem mais.
Parabéns!

Alessandra Costa disse...

Fiquei pensando em como eu ia comentar, mas não sei, as vezes eu acho que os comentários não são suficientes pra descrever os sentimentos que se tem ao ler um texto. Enfim, uma das coisas mais tristes e mais lindas que eu já li.

 

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