17 de janeiro de 2011

Interrompido

Luis Carlos foi dormir aliviado. A conversa com Ana Carolina, ao telefone, fora exaustiva, mas necessária. Falaram durante mais de uma hora, com direito a alguns minutos de gritos, mas finalmente haviam conseguido se entender, como não acontecia já há semanas. Colocaram todos os pingos no “i”s e despediram-se com um “eu te amo” sincero. Assim que fechou os olhos, ouviu o barulho da chuva e teve a certeza de que tudo ficaria bem entre eles.

A chuva castigava as paredes da pequena igreja, e, dentro dela, Padre Aurélio lia a Bíblia, pensando na missa do dia seguinte. Usaria a chuva como uma metáfora para a limpeza da alma. Mas estava decidido a não parar no sermão. Estava na hora de agir, montar um centro para os jovens, para orientá-los a não cair nas drogas. Precisaria de patrocínio, claro. Olhou pela janela e um relâmpago iluminou o terreno ao lado. “Um dia eu construirei ali uma quadra de futebol para os meninos”, sonhou acordado.

Na pequena mesa da cozinha, Júnior conversou com os pais após o jantar. Explicou a eles que largaria a escola para procurar um emprego. Sua mãe brigou e o pai fechou a cara, mas, quando ele começou a falar, entenderam. A situação não estava fácil, e o dinheiro andava cada vez mais curto. Com o tempo, as coisas melhorariam e ele voltaria a estudar. Prometeu isso de pés juntos. E, ao dormir, sabia que estava fazendo o certo. Seus pais precisavam de um pouco mais de segurança. Eles mereciam. E um pouco mais de dinheiro em casa faria isso.

Ângela terminou de escrever no diário e apagou a luz do quarto. Deitou-se na cama e ficou pensando sobre o dia seguinte, com a ansiedade que somente os adolescentes conhecem. Na festinha ao lado de casa, algo aconteceria entre ela e Marquinhos, ela sabia disso. Todas as amigas há haviam falado que ele era apaixonado por ela, e, desde que ele havia terminado o namoro, estavam cada vez mais próximos – quase se beijaram na sorveteria dois dias antes. Virou para o lado e agradeceu pela chuva. Sem ela, não conseguiria dormir de excitação.

Norberto demorou a dormir. Estava agitado. Com a proximidade da visita de seu irmão, sua vida mudaria totalmente. Não se falavam há seis ou sete anos, desde que o vício em cocaína fez o caçula ser preso. Até hoje, a família inteira o culpava pela morte do pai. Os médicos falaram que foi infarto, mas todos sabiam que era desgosto. Em poucos dias, saberia se ele e o irmão continuariam a ser uma família.

Ainda com o gosto de cachaça na boca, Alaor praguejou um palavrão antes de entrar no quarto. Odiava dormir e detestava aquele quarto, desde que sua esposa falecera, anos atrás. Olhando a foto dela – sua preferida, naquela viagem que fizeram para Minas Gerais, mais de uma década atrás – permitiu-se chorar um pouco. E ali, quietinho, rezou baixinho pela alma dela, reclamando de saudade e dizendo que nada funcionava sem ela. Abriu os olhos e o quarto continuava vazio. Deitou-se ouvindo a chuva e, meio bêbado, pensou se ela não estava nas gotas que caíam do céu, torcendo para sonhar com ela.

Lúcia tomou um copo de água antes de ir para o quarto. Ainda estranhava não ter engolir um comprimido junto com a bebida. Na verdade, ainda não havia se acostumado à rotina de pessoa saudável. Quando o médico disse que ela estava curada, seu marido rompeu em lágrimas, seus filhos gritaram no hospital, mas ela ainda não enxergava isso como real. Parecia que o doutor estava falando de outra pessoa. “Vou viver”, pensou, sem se furtar a sorrir.

Antes de dormir, Fernanda dobrou com cuidado a blusa nova em uma cadeira ao lado da cama. Precisava estar bonita no dia seguinte, para causar uma boa impressão. Era seu primeiro dia no novo emprego, após quase um ano sem trabalho. E havia dado sorte, a firma era pertinho de sua casa e ela poderia economizar o dinheiro do ônibus. Ao seu lado, o bebê ressoava tranqüilo, alheio à falta de dinheiro, alheio à chuva, alheio a tudo. Olhou para a filha e sorriu. “Tudo vai melhorar, meu anjo. Prometo”, e deitou-se otimista.

Maristela gostava de dormir com o barulho da chuva. Sentia-se mais relaxada. E relaxar era tudo o que ela precisava no momento. Com seu marido desempregado, o orçamento da família estava cada vez mais apertado. E ela havia cometido a loucura de comprar a caixa de lápis de cor que o pequeno João sonhava havia meses. E o filho tinha talento, era sua obrigação ajudá-lo a desenvolver isso. “Um artista na família”. Sorriu antes de dormir.

A chuva apertou, dissolvendo e soterrando todos os sonhos, sentimentos e corpos durante a madrugada.

Mais que números em uma tragédia, eram pessoas.


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Homenagem deste blog às vítimas da chuva no Estado do Rio de Janeiro.

Veja aqui como e onde fazer doações aos sobreviventes.

11 leitores:

Pri disse...

Que texto belo, é uma forma linda de se pensar...

Mari Hauer disse...

Bom, acho que nem preciso dizer que caí em prantos lendo seu texto! Quando olho pra tragédia que aparece todas as noite no jornal, eu olho ao redor e agradeço... não sei direito a quem, mas ainda tenho uma vida, meus sonhos, minhas coisinhas...

Quantas pessoas, quantos sonhos, quantas vidas interrompidas não foram, todas de uma só vez.

Kika disse...

Puxa Rob, apesar de leitora assídua, quase não comento no Chronicles, mas dessa vez, vc se superou. Sem mais.

Climão Tahiti disse...

Emocionado.

=(

Sil disse...

É uma linda homenagem aos sonhos interrompidos.

A nós, resta a solidariedade aos que sobreviveram.

Parabéns por este texto emocionante.

Varotto disse...

Uma porrada.

Ao longo do texto já vinha me preparando para o elogio por sua forma quase cinematográfica.

Por incrível que pareça, o final, assim como as chuvas, me pegou desprevenido.

Muito triste tudo isso. Acho que eu nunca (mesmo que tivesse a habilidade necessária) teria peito de escrever isso.

Enquanto isso aquele povo, lá de cima dos seus palácios, fica tirando proveito político e trantando como acidente uma coisa que podia ser evitada. Para mim, só pode ser classificado como acidente, um evento que não poderia, de forma razoável, ser evitado.

Que tal usar o dinheiro mensal extra aprovado para o aumento de mais de 60% dos parlamentares para ajudar as vítimas e para implementar as mudanças necessárias para que tragédias como essas possam ser, se não evitadas, pelo menos previstas com a antecedência necessária?

Realmente, é um mundinho de merda esse em que resolvemos nos multiplicar.

Renata Schmitd disse...

há tempos não me emocionava com um texto.

Unknown disse...

Tem umas lágrimas querendo cair por aqui...

Triste, mas uma bela homenagem.

Francine Ribeiro disse...

um nó na garganta, olhos lacrimejando.. é isso! sem palavras.

Brunín Assis disse...

Foda, Rob. Sem mais...

Silvia disse...

Nossa, esse final eu não esperava. As lágrimas escorrem.

Lindo.

 

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