18 de março de 2010

Despertar

Foi no meio de um dia confuso e com muito trabalho. Sem conseguir encontrar tempo para almoçar, ela fugiu, no meio da tarde, para um café. Seus planos eram trabalhar ali o resto do dia, olhando a rua. Porque, mesmo adorando o que fazia, detestava, às vezes, ficar sufocada dentro do escritório. Às vezes, precisava de espaço. Isso desde menina.

Sorriu de leve, quase sem mexer os lábios, quando sentiu o cheiro do cappuccino à sua frente. Sabia que já no primeiro gole, seu dia melhoraria. Olhou para a rua e viu que o Sol ainda brilhava na calçada. Tinha horas e horas para colocar o trabalho em dia. A tarde pertenceria a ela, e a mais ninguém.

Foi quando rasgou a ponta do saquinho de adoçante com os dedos que olhou casualmente para o lado e o viu, sentado a poucas mesas de distância. Ele estava distraído, folheando um jornal – aparentemente não havia nem reparado nela, até o momento. Tinha uma carteira de couro escuro depositada sobre a mesa, ao lado de uma xícara já vazia. Usava jeans, camisa preta e estava com as pernas cruzadas.

Até hoje ela não sabe o motivo. Não era bonito, nem especialmente charmoso, mas algo nele a fez perder o controle. No momento em que o olhou, seu coração disparou e sentiu a barriga congelar de uma forma que há muito tempo não permitia. Vidrada, aproveitou que ele estava concentrado no jornal e decorou seu rosto mentalmente. O contorno dos olhos, o formato do nariz, a barba mal feita.

Algo nele perturbava-a totalmente. A forma que ele lia o jornal ignorando tudo ao redor – ignorando a presença dela – demonstrava uma segurança e uma tranqüilidade que ela sempre admirou e quis ter, mas nunca conseguiu. Sempre fora explosiva, desde adolescente. Impulsiva. Inconsequente. Mas os anos passaram e ela se acalmou. Mas não havia mudado. Os explosivos continuavam ali, guardados dentro dela. Ela apenas aprendera a manter o pavio apagado.

Isso, até agora. Até ele.

Nervosa, fingiu trabalhar, concentrada no notebook, tentando afastá-lo da cabeça. Mas em vão. A simples presença dele fazia com que deixasse de ser esposa, mãe, arquiteta, formada entre as melhores da sala e até mesmo filha exemplar e amiga leal. A presença dele ali, não apenas no café, mas na sua mente, a transformava em mulher. Sem nome, sem identidade, passado ou futuro. Era mulher, em toda sua plenitude, e mais nada.

Como não acontecia há anos, sua mente começou a escapar do controle. Brincando involuntariamente com a ponta da língua, raspando-a nos dentes brancos, seus pensamentos começaram a brincar com a idéia do corpo dele sobre o seu; a textura de pele dele em contato com a dela, o suor dos dois misturados a cheiros, cores e sabores.

Sentiu o rosto corar. Não de vergonha, ou de aflição, mas de desejo. Não era sexo, era loucura – e sempre achou as loucuras melhores que sexo. Quis afastar a idéia da cabeça, mas já era tarde: sabia que abandonaria tudo por um homem, sem sequer saber seu nome ou quem ele era. Sabia que largaria tudo o que vivera até hoje, sem pestanejar, e o fato de nem entender o motivo disso deixava-a mais fora de si ainda.

Tentou ficar brava consigo mesma, mas não conseguiu. Mentalmente, começou a rodar. Seus pensamentos dançavam com suas fantasias, e o sabor da adrenalina surgiu na sua boca. Foi aí que ela percebeu algo que sempre soube: ela sobrevivia em paz, mas vivia de verdade somente em tempos de guerra.

Largou o cappuccino pela metade, fechou o notebook, pagou a conta e foi embora, apressada. Voltou para o escritório, dando alguma desculpa confusa para a assistente para explicar seu retorno. Sentou-se à mesa e tentou trabalhar, em vão.

Passou o resto do dia febril, sem conseguir tirá-lo da cabeça. Aliás, mais do que ele, a situação como um todo passou a nortear suas sensações. A idéia de ter uma loucura assim, ao alcance dos dedos, depois de tantos anos, depois de fugir de casa de madrugada tantas vezes impedia seu coração de desacelerar. Algumas horas atrás, a adolescente impulsiva era uma memória distante, quase outra pessoa. Agora, ela havia despertado e reassumia seu trono. O pavio estava novamente aceso.

Aos poucos, começou a retornar para sim. Entrou no banco, pagou contas, finalizou um projeto e procurou não pensar em nada. Especialmente nela.

E, na hora de ir embora, mudou o caminho para passar em frente ao café, mentindo para si mesma sobre o trânsito estar ruim. Olhou rapidamente, o suficiente para ver que a mesa dele estava vazia. E a sensação de que o corpo dele estava ali, o cheiro dele ainda deveria estar na cadeira, fez com que ela mordesse os lábios levemente. A adolescente pediu, baixinho, para que ela parasse o carro e o esperasse, por anos se preciso, na mesma mesa.

Ela ignorou.

Chegou em casa, serviu o jantar. O marido contou das reuniões que teve no dia, a filha contou sobre a prova que havia feito na escolinha. Ela concordou, sorriu, respondeu palavras automáticas e foi ver TV. Não conseguia pensar em nada, a não em suas loucuras. Assistiu TV, fingindo acompanhar a novela.

Colocou a filha na cama, beijou o marido e foi para a cama. Apagou a luz, fechou os olhos e procurou não pensar.

Foi no final de um dia confuso e cheio de trabalho que ela soube que finalmente estava mais acordada que nunca. Mas, mesmo assim, procurou se lembrar do casamento, da filha, do trabalho, das contas para pagar e do dia a dia que levava.

E adormeceu.

Não infeliz. Apenas conformada.

7 leitores:

Natalia Máximo disse...

90% da humanidade deve viver conformada com a vida. Sorte dos outros 10% (e uma invejinha)...

Mari Hauer disse...

Li seu texto e fiquei pensando em tanta coisa... sobre mim, sobre os outros que passaram pela minha vida e até em pessoas que permanecem...

Agora, relendo o texto, fiquei pensando em quantas vezes, por conformismo, não nos privamos de nos sentirmos vivos.

Eu sou daquelas que vive muito das próprias loucuras, que vira e mexe explode... Mas me dói não explodir algumas vezes. Implodir. Ou ver o pavio se apagar no meio do caminho... Mas sabe o que me dói mais? Os outros não explodirem... Fingindo viver seus impulsos, como alguém que toma fôlego pra gritar e no fim, foi só suspiro.

Acho que foi isso que vc colocou no texto, não é medo, não é infelicidade, é apenas conformismo.

Fiquei pensando no cara que lia seu jornal sem olhar pros lados... será que, se ela tivesse coragem, ele daria a oportunidade dela viver a própria loucura? Será que viveriam uma loucura juntos? Eu sinto isso às vezes... que consigo bancar as minhas loucuras mas elas não se completam porque poucas pessoas dão espaço pro meu grito sair depois que eu tomo fôlego pra gritar. Acabo suspirando e só! Por falta de quem escute o meu grito...

Ai, como a moça do texto, minha mente escapou do controle e eu já mudei a história, rs...

Beijos!

Marina disse...

Seria bom se a gente pudesse fazer algumas coisas só por diversão e elas não tivessem consequências. Mas sempre tem. Não a condeno.

Adorei o texto, Rob.

Natalia Máximo disse...

Rob, bem que podia rolar mais um "Fragmentos", né? ^^ Beijo

Daniela disse...

"Foi aí que ela percebeu algo que sempre soube: ela sobrevivia em paz, mas vivia de verdade somente em tempos de guerra." - Me desculpe, mas p.q.p., é sem palavras, absolutamente lindo e perfeito!

Jullia A. disse...

'E quando a gente percebe que as necessidades superam o impulso.. e que se nao existisse sociedade e moral e conceito de familia a gente agiria por instinto.. tipo um ensaio sobre a cegueira..

GEnial

Ana Savini disse...

Ainda bem que você errou feio o final dessa crônica. :P

 

Championship Chronicles © 2010

Blogger Templates by Splashy Templates