11 de novembro de 2009

Deus e o Apagão

No princípio, não havia nada. E Deus criou os Céus e a Terra. Ninguém percebeu nada, pois tudo ainda estava escuro. Na verdade, Deus estava com vontade de criar tudo naquela hora mesmo – o homem, os animais, os mares – e deixar a luz por último. Assim, ele organizaria um evento para acender a luz, reunindo celebridades e membros da imprensa. E quando o universo se acendesse, tudo já estaria criado, e o impacto seria maior ainda. “O departamento de marketing vai adorar”, pensou o Criador.

Mas foi obrigado a mudar de idéia, porque era difícil trabalhar naquela escuridão toda. Não conseguia achar nada sobre Sua mesa. Canetas, esboços de animais, tudo havia desaparecido. Mas o pior de tudo foi quando Se levantou e caminhou pelo escritório para pegar o balde que continha o barro destinado à criação do homem e acabou dando uma topada com o mindinho na quina da mesa. Depois de gritar de dor (e se esforçar bastante para perdoar a mesa), sentou-se resignado e falou “Faça-se a luz”.

Assim, a Terra se iluminou e Deus colocou as mãos na massa. Povoou o planeta com animais e criou o homem, à sua imagem e semelhança, para governar a Terra. Parou para descansar alguns minutos, pensando no que pediria de almoço.

Foi nessa hora que um dos gerentes entrou na sua sala, esbaforido.

– Senhor, um pedaço da Terra está apagado.

– Como assim?

– É lá na América do Sul. Está tudo escuro.

Deus abriu seu mapa e checou. Realmente, um grande pedaço de terra estava às escuras.

– Peça a algum santo para ligar para a Companhia de Luz e ver o que está acontecendo.

– Não tem santo nenhum aqui, Senhor. Estão todos na rua. Apenas São Tomé está na empresa, mas ele fica apenas repetindo que não acredita que está faltando luz. Se o Senhor quiser, eu posso ligar.

– Deixe, eu mesmo resolvo.

Pegou o telefone e discou. Foi atendido por uma gravação.

Obrigado por ligar para a Companhia de Luz. No momento, todos nossos atendentes estão ocupados. O tempo de espera é de três minutos.

“Bom, eu não criei o mundo em um dia”, suspirou Deus, acomodando-se na cadeira e preparando-se para esperar. Cinco minutos depois, foi atendido.

– Companhia de luz, Rogério, bom dia. Em que posso ajudá-lo?

– Está faltando luz em um pedaço do Meu planeta.

– O senhor pode confirmar seu CPF?

– Um.

– Senhor, eu preciso do CPF inteiro.

– Este é meu CPF. Um.

– Qual o nome do assinante do planeta?

– Deus.

– Não consta no cadastro, senhor.

– Como assim?

– Não temos nenhum assinante com o nome Deus.

Deus suspirou.

– Tente Jeová.

– Encontrei, senhor. Qual o problema?

– Eu já disse. Está faltando luz em um pedaço do Meu planeta.

– Só um minuto, senhor. Vou checar aqui.

– Não é senhor. É Senhor, com maiúscula, respondeu Deus, que levava isso muito a sério. Mas o atendente não ouviu, pois já havia colocado a ligação em modo de espera. Minutos depois, ele voltou.

– Obrigado por aguardar. Senhor, realmente, um pedaço da América do Sul está com problemas.

– Eu sei disso. Fui por isso que liguei.

– O senhor efetuou o pagamento das últimas três contas?

– Ainda não há contas. Eu criei tudo agora de manhã.

– Entendo. Só um minuto.

E colocou a ligação na espera novamente. Deus suspirou. Minutos depois, voltou.

– Senhor, estava checando no sistema e será preciso agendar a visita de um técnico, para estarmos identificando a causa do problema.

– Não, tem que haver outro jeito de resolver.

– A visita do técnico é necessária para entendermos o problema.

– Eu criei tudo agora de manhã, e estava aceso. Coisa de meia hora atrás. Não é possível que vocês já conseguiram quebrar.

– Senhor, realmente não posso estar precisando mais nada sem o parecer do técnico.

– Vocês não mexeram em algo errado?

– Só um minuto.

A ligação foi para o modo de espera de novo. Deus começou a tamborilar os dedos na mesa, impaciente. Estava quase desligando e descendo até a Terra por conta própria para ver o que havia acontecido, quando o atendente voltou.

– Obrigado por aguardar.

– Ok.

– O senhor pode confirmar seu CPF?

– De novo?

– Sim, por favor.

– Um.

– Só um minuto, vou estar entrando no seu cadastro.

– Tudo bem.

Ficou ouvindo o atendente digitando rapidamente. Fez uma anotação mental de que poderia usar o gerúndio como um dos idiomas na Torre de Babel, futuramente. Deus era assim, estava sempre criando. Mas foi interrompido pelo técnico.

– Senhor, aqui no seu cadastro diz que está tudo em ordem. O senhor confirma que a região está sem luz?

– É evidente que confirmo. Estou olhando agora, está tudo escuro.

– Senhor, realmente vamos ter que estar agendando a visita do técnico.

Deus suspirou mais uma vez.

– Quanto tempo isso demora?, perguntou o Criador.

– De dois a três dias úteis.

– Dois a três dias? Eu não posso deixar metade de um continente sem luz durante esse tempo.

– Sinto muito, senhor, mas é o primeiro horário vago que temos.

– Ok, ok.

– Posso confirmar então a visita para este período?

– Sim.

O atendente digitou mais um pouco.

– A visita está agendada. O senhor quer anotar o número do protocolo?

– Não precisa, respondeu Deus, que acreditava na bondade humana acima de tudo.

– O senhor ou outra pessoa estarão lá para atender os técnicos?

– Eu estarei lá, a hora que eles chegarem. Sou onipresente.

– Como assim, senhor?

– Nada, nada, eu estarei lá.

– Algo mais em que posso ajudá-lo?

– Não.

– A Companhia de luz agradece e deseja um bom dia.

E desligou.

Passaram-se três dias, e nada dos técnicos. Deus ligou de novo, brigando, mas era preciso o número do protocolo. Ameaçou mandar anjos com espadas de fogo, ameaçou transformar o atendente numa estátua de sal, mas não adiantou nada. Sem o número do protocolo, não havia o que fazer.

Finalmente, eras depois, os técnicos apareceram. O mundo já estava quase todo povoado, mas aquele pedaço da Terra continuava escuro. “Imagine o que não estão pecando lá naquela parte escura”. E os técnicos olharam tudo, sob o olhar atento de Deus. Inspecionaram tudo, mexeram na fiação, fizeram testes.

– O problema não é aqui. Deve ser lá na central disse um dos técnicos, que usava o tradicional macacão da Companhia de Luz, mas com uma camisa do Botafogo por baixo da roupa.

– Como assim?

– Não tem o que fazer, tem algo errado na central.

– E o que Eu faço?

– O senhor terá que ligar de novo para lá.

Pela primeira vez na história, Deus perdeu o controle. Aos gritos de "até a Minha paciência tem limites", mandou os anjos tirarem os técnicos dali e subiu de volta para o seu escritório.

Entrou bufando na Sua sala e mandou Sua secretária convocar uma reunião com todos os santos na parte da tarde. Havia tomado uma decisão drástica.

E, antes de desligar o telefone, ainda fez dois últimos pedidos a ela:

– Antes da reunião, faça um levantamento de quantas espécies animais temos naquele planeta. E mais uma coisa: ligue para o Noé, preciso falar com ele. É urgente!

16 leitores:

Climão Tahiti disse...

Muito boa a crônica.

Tenho pena de Deus. =(

Airon Souza disse...

Eu diria que foi um momento "Rob Gordon" de Deus...

Natalia Máximo disse...

"Fez uma anotação mental de que poderia usar o gerúndio como um dos idiomas na Torre de Babel, futuramente."

Genial, como sempre!

naomi . disse...

clap clap clap!

Layla Barlavento disse...

Ótima crônica! Parabéns pela criatividade!

Anônimo disse...

Não dá definitivamente para dizer qual a melhor que li até hoje!!!!
Essa foi mais uma de muitas!
Vc é "O" talz!
#beijojávou

Anônimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Varotto disse...

Garái! Muito bom! Mas...

"pois a escuridão ainda estava tudo escuro" (segunda linha)

Anônimo disse...

Valeu, Varotto. Foi desatenção minha, eu digitei no escuro (desculpa esfarrapada mode: on)

Bridget Jones disse...

Olha, eu não consigo entender como é que o nome de Deus estava errado no banco de dados da Companhia de Luz, afinal desde a "Ultima Cruzada", já é sabido que o nome Jeovah, na verdade se escreve com "I". Imagine só se o Indi (para os íntimos) não tivesse lembrado disso!?!

Penso eu, que Deus já estava tão entendiado, que achou melhor não questionar (e por consequência ter de mandar 50 mil cópias autenticadas da grafia correta de seu nome nos documentos originais para a Companhia de Luz) e já ir logo dando andamento ao problema maior.

Por fim, eu acho que sim. Sim, sim e sim, o "Gerundismo" será um dia estudado e revisado por lingüistas, aceito como idioma corrente e Língua Viva (com maiúscula) e venerado por seus falantes.

Varotto disse...

Esqueci de comentar: você está ficando rápido, hein?!

A energia nem bem tinha sido reestabelecida ainda e o texto já estava pronto.

Ou isso, ou seus poderes divinatórios estão aparecendo (se segura, Noscagamus!)

Ricardo Siqueira disse...

G-E-N-I-A-L!!!

Ganhou um leitor eterno.

Lari Bohnenberger disse...

Ahahahahahahahahah!
Rob Gordon, você é demais!!!!!

Anônimo disse...

Totalmente excelente!

CarolBorne disse...

Genial!

Unknown disse...

_ otima leitura
_ mais ainda eta tudo mas &scuras !!

 

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