5 de fevereiro de 2015

Vício

Começou como qualquer outra pessoa que conhecia, usando casualmente.

Às vezes, não tinha o que fazer e usava. Foi assim por algumas semanas até que começou a procurar não ter o que fazer para usar. Mas mesmo nessa época ainda isso não atrapalhava seu dia, pelo contrário: ele adiantava todas suas tarefas para poder ter um tempo de matar sua vontade.

Logo as coisas mudaram e para pior: deixava tarefas incompletas ou nem mesmo as começava, pensando somente em satisfazer seu vício.

E usava cada vez mais.

E, conforme o tempo passou, começou a perceber que não bastava mais usar para fazer passar a vontade. Usava, usava e usava, e a vontade estava sempre ali. Usar não passava a vontade. Às vezes, estava usando e já pensando na próxima vez que usaria. Qualquer coisa que olhava fazia com que tivesse vontade de usar. Qualquer coisa pensava fazia com que tivesse vontade de usar. Passou a viver em função disso.

Sua vida social começou a se esfacelar. Deixou de ver os amigos. Não ligava mais para a família. Combinava compromissos quando estava usando – sempre sem pensar, porque quando usava não conseguia pensar direito – e esquecia completamente deles. Perdia a noção das horas e dos dias da semana. Seu relógio marcava sempre a hora que iria se entregar ao vício.

Lia notícias sobre pessoas que perderam tudo por causa do mesmo vício, mas ria e dizia que isso jamais aconteceria com ele. Todos eram fracos. Todos menos ele. Ele pararia a hora que quisesse. Dizia isso e corria para o quarto, sentava-se na escrivaninha (onde guardava os apetrechos de seu vício) e voltava a usar. E ficava ali, embriagado e perdido dentro de seu próprio mundo imaginário, sem distinguir o que era real e o que era fantasia.

Os meses se passaram. Perdeu peso e ganhou cabelos brancos. Perdeu amigos e ganhou memórias de pensamentos irreais. Perdeu a capacidade de enxergar a realidade como ela era; às vezes, quando encontrava os poucos amigos que sobravam, fazia longo discursos sobre suas últimas viagens, e como a vida dentro da sua droga funcionava melhor – e fazia mais sentido – que a vida das outras pessoas. Mas eram discursos desconexos, com frases perdidas e que sempre terminavam com o pensamento “você precisa experimentar um dia”.

Mas um dia foi surpreendido pelos amigos. Estava na escrivaninha usando. Pela sua aparência, estava a dois dias sem dormir, sem comer, sem tomar banho. Os amigos o arrancaram de lá – ele protestou, balbuciando coisas sobre uma garota que estava em um trem, que precisava ver o que iria acontecer com ela – e o jogaram num carro. Explicaram que era para o seu bem. E o levaram a uma clínica de tratamento.

Passou os primeiros dois dias trancado no quarto, sozinho. Era o início da desintoxicação e foi horrível. Suas entranhas queimavam, sua cabeça doía. Gritava e socava as paredes, e depois ajoelhava e implorava baixinho, dizendo que precisava usar apenas por cinco minutos e tudo ficaria bem. Não comia, não dormia. Às vezes ficava parado em pé, no canto do quarto, totalmente imóvel. Somente as pontas dos seus dedos se mexiam, como se tamborilassem o ar. “É reflexo da abstinência”, disse uma enfermeira.

No terceiro dia ele pode passear pelo local, sedado e acompanhado de enfermeiras. E, à tarde, à primeira reunião, com outros viciados. Subiu no púlpito e disse seu nome. Quando os aplausos cessaram, ele declarou sua primeira vitória:

- Estou há três dias sem escrever uma crônica.

1 leitores:

Cesar da Mota Marcondes Pereira disse...

Escrever é um vício bom...
Ler é um vício bom...

Ficar sem nenhum eles dois é beeeeeeeeeeeeem complicado, rs

Forte abraço!!

 

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