9 de dezembro de 2014

Pequena Fábula Espacial

Os dias de XP-36 seguiam uma rotina quase fanática. Pontualmente, deixava seu alojamento ao nascer do Sol e seguia rumo ao enorme pomar,  retomando a vistoria das árvores no mesmo ponto que havia parado o trabalho no dia anterior.

Analisava árvore por árvore, coletando dados como profundidade da raiz, grossura do tronco, cor e espessura das folhas e projetava o rendimento e a conversão de cada planta para a próxima safra. Quando começava a escurecer, retornava ao seu alojamento e sentava-se em um banco, sozinho e em silêncio, esperando até que um novo dia começasse.

Os dias de XP-36 seguiam uma rotina quase fanática, pois era isso que se esperava dele.

XP-36 era um robô.

Quando a humanidade começou a colonizar planetas fora do sistema solar, não demorou até que o trabalho mais pesado nas colônias, sobretudo nas fazendas, fosse entregue nas mãos de robôs. Era mais seguro – sobretudo em planetas com animais hostis –, mais preciso e especialmente mais rápido. Ou, ao menos, mais rápido que qualquer ser humano.

Foi por isso que XP-36 foi planejado, fabricado e enviado para uma fazenda frutífera em uma colônia distante. Era humanoide e usava um macacão da colônia, mas dificilmente seria confundido com um humano, mesmo visto de longe.

Era totalmente prateado, media quase dois metros de altura e pesava cerca de trezentos quilos de metal e circuitos eletrônicos. De perto, o fato de não ser humano se tornava ainda mais evidente: seus cabelos e olhos eram negros e visivelmente artificiais, e não possuía nariz.

Quando XP-36 falava, seus lábios se movimentavam de forma pouco articulada e nunca correspondendo ao som que emitia. Isso porque ele não precisava mover sua boca para falar, já que o som vinha de um pequeno alto falante instalado dentro de sua boca metálica. Os lábios se mexiam como num antigo filme dublado somente para fazer com que ele se parecesse mais humano em seu dia a dia.

Entretanto, mesmo longe de parecer humano, estava há tanto tempo na fazenda que era tratado como um funcionário normal pelos colonos. De manhã cedo, todos lhe desejavam bom dia. Alguns conversavam com ele sobre a plantação e ele fazia questão de fornecer o maior número de informações possível, mas sem jamais de ouvir e absorver o que lhe falavam. E, no final do dia, quando se encaminhava para o alojamento, desejava um “boa noite, senhor” aos colonos que encontrava.

XP-36 era feliz na fazenda. Ou, ao menos, tão feliz quanto um robô poderia ser. Para ele, a fazenda não era apenas o seu local de trabalho. Era seu lar. E vistoriar as árvores não era sua função, mas sim sua forma de contribuir com o mundo que vivia.

Por isso que ele não entendeu quando um dia o dono da fazenda o procurou.

“Nós teremos outro robô para vistoriar as árvores”.

“Mas este é meu trabalho”, disse XP-36, com seus lábios se movendo de forma estranha, quase cômica.

“Não é mais”, disse o colono. “Agora, é o outro robô que fará isso”.

XP-36 ficou em silêncio alguns instantes, analisando as possibilidades. “Qual será minha função a partir de agora?”, ele disse, sem conseguir enxergar uma alternativa.

“Nós não precisaremos mais de você aqui.”

“Eu não compreendo.”

“Nós não temos como bancar a manutenção de um robô sem função. Você pode ir embora da colônia.”

O robô olhou para seu mestre sem demonstrar surpresa ou espanto. Isso estava além de suas capacidades, pois o revestimento do seu rosto nunca fora projetado para demonstrar sentimentos ou sensações, apenas para esconder os circuitos que ocupavam seu cérebro.

“Ir embora? Esta será a minha nova função, senhor?”

O colono pareceu pensar um pouco.

“Não. Não é sua função. É apenas o que precisa ser feito.”

“Mas uma função não é justamente executar aquilo que é preciso ser feito?”

“Não é sua função”, o colono respirou fundo. “Você não tem mais função. É por isso que precisa partir”.

“O meu serviço não correspondeu com suas expectativas?”

“Nós apenas teremos um robô novo, XP-36. Por isso você está livre para deixar a colônia”, disse o colono, querendo encerrar a conversa.

“Livre?”

“Isso.”

“Mas eu nunca me considerei um prisioneiro da colônia. Logo, eu não tenho a ambição de ser livre.”

“Eu tenho coisas para resolver, XP. Você pode partir”.

“Sim, senhor”, disse o robô, olhando ao redor.

Sem olhar para trás, o colono começou a se afastar, mas foi surpreendido pela voz do robô.

“Senhor?”

“Sim?”, disse o colono, virando-se para trás e encontrando o robô parado no mesmo lugar.

“Para onde o senhor deseja que eu vá?”, perguntou XP-36, com seu tom de voz neutro.

O colono não respondeu, apenas fez um sinal para que o robô seguisse em frente. E foi exatamente o que ele fez.

Andou durante horas. Nunca havia estado naquela parte do planeta, já que nunca havia colocado os pés fora da colônia. Aos poucos, começou a reparar que o céu se tornou avermelhado, e logo começou a escurecer. A noite caiu, mas XP-36 continuou a andar.

Em um determinado momento, olhou para trás e percebeu que era impossível avistar a colônia de onde estava. Considerou a hipótese de parar, mas lembrou-se que sua instrução era apenas “andar em linha reta”, e não “andar até a colônia desaparecer de vista”. Assim, voltou a caminhar olhando para frente. Esta era sua função. Ou melhor, era o que precisava ser feito. Não era sua função porque ele não tinha mais função.

As horas viraram dias. Os dias viraram semanas. O planeta era totalmente desabitado, com exceção da colônia, então não havia muito a ser visto. XP-36 continuava caminhando em linha reta sempre que possível. Em determinado momento foi obrigado a diminuir o ritmo por atravessar uma floresta e, em outro, teve que desviar de uma montanha íngreme demais para ser escalada, mas calculou o ponto do outro lado que o colocaria na mesma rota.

De tempos em tempos, fazia uma inspeção em seus circuitos para averiguar o funcionamento do seu corpo. Mas o diagnóstico sempre apontava que não havia nada de errado com ele, e assim XP-36 continua marchando em frente, sem rumo, obedecendo a sua última instrução. E foi andando conforme as estações do ano mostravam o tempo passando: os dias quentes deram lugar ao céu fechado, que logo se transformou em neve e depois em gelo, que perdurou durante meses até que o Sol aparecesse novamente e começassem a derreter a imensidão branca.

E XP-36 continuou andando. Sempre em frente. Sempre em busca de um objetivo que ele não sabia qual era, porque não fora informado.

Os meses logo passaram a ser medidos em anos. XP-36 continuou caminhando, sozinho e em silêncio, enquanto suas roupas terminavam de se desfazer. Sol, chuva, neve, gelo, sol, chuva, neve, gelo, sol, chuva. Os anos se somaram em décadas e XP-36 continuou avançando. Sozinho. Tendo apenas o som dos seus passos e das juntas eletrônicas de suas pernas como companhia.

E sempre em frente.

Seu cérebro processava todo o ambiente ao seu redor. O deserto que atravessou. As florestas que ficaram para trás. O lago que ele foi obrigado a gastar semanas contornando. Seu cérebro continuava processando informações sobre o ambiente e sobre todas as alternativas de rotas que o levariam sempre em frente. E também sobre o tempo que já havia gasto em sua jornada.

E estava prestes a completar vinte e três anos andando quando avistou construções no horizonte. Analisou a estrutura dos prédios, com sua programação o alertando sobre o fato do planeta ser desabitado, concluindo apenas que os prédios eram velhos e construídos com materiais humanos.

Conforme se aproximava, os edifícios começaram a ganhar formas e cores. Logo, percebeu plantações ao seu redor, ao mesmo tempo em que os prédios tomaram forma. Eram estranhamente familiares.

Era a colônia que havia deixado para trás.

Ele havia dado a volta ao redor do planeta e voltado ao ponto de origem.

Mas vinte e três anos havia se passado e a colônia parecia deserta. Abandonada. A vegetação invadia os prédios, reclamando as áreas construídas pelo homem. Passou por entre os prédios sem descobrir indícios do que poderia ter acontecido. Doença. Guerra. Fome. Nada explicava a colônia vazia.

Entrou nos primeiros prédios e percebeu que a colônia havia sido abandonada, já que não havia sinal de violência, de corpos ou mesmo dos objetos pessoais dos colonos. Os outros edifícios não mostraram nada de novo. O laboratório estava deserto. No centro médico, somente camas e um estojo de primeiros socorros largado para trás.

Foi até seu alojamento. As plantas haviam invadido o local, e a porta estava levemente emperrada, mas ele conseguiu abri-la sem muito esforço. Dentro do pequeno aposento, somente um antigo banco, no qual ele se sentou virado para a porta.

E esperou.

Assim que o Sol nasceu, ele se levantou e caminhou até o que sobrava do pomar, e começou a examinar as árvores. Fez isso até o entardecer, quando voltou para o alojamento e sentou-se, esperando a noite passar. Repetiu esta rotina por dias, semanas, parando somente para olhar a colônia em sua volta, em busca de algum sinal de vida. Quando não encontrava nada, voltava sua atenção para as árvores e continuava suas tarefas.

E o robô ainda está lá. Está há séculos trabalhando num pomar, sozinho, esperando o retorno de seus mestres, numa colônia abandonada em um planeta esquecido. E cumprindo suas tarefas com dedicação, pois sabe que precisa mostrar aos seus mestres que ele não se tornou obsoleto. E mesmo que ninguém apareça, ele não irá parar.

Pois este é o seu trabalho. É um robô e é isso que se espera dele.

E, afinal de contas, aquele é o seu lar.

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