Este texto é o último de uma série. A ideia – ambiciosa, desafiadora
e sugerida pelo leitor @cmmarcondes – era desenvolver um conto durante a Copa do
Mundo, conforme o Brasil avançava no torneio. A cada jogo do Brasil, a história
ganhou um novo desenrolar que se passava durante os jogos, não apenas refletindo o
desempenho da seleção como influenciando o destino dos personagens.
Este é capítulo final, que encerra a trama e o desafio. Os anteriores estão abaixo:
Este é capítulo final, que encerra a trama e o desafio. Os anteriores estão abaixo:
Eu sempre me perguntei qual seria a sensação de disputar o
terceiro lugar em uma Copa do Mundo.
Na minha cabeça, essa era uma daquelas coisas que sempre
acontece com os outros, mas não com a gente. Eu sei que o Brasil já havia
disputado a medalha de bronze em outras Copas, mas isso para mim era algo que
pertencia à outra realidade. Aqui, na nossa realidade, o Brasil ou caía nas
quartas de final ou ia para a final. Não existia meio termo.
Talvez seja por isso que eu sempre jurei que se o Brasil, um
dia, disputasse terceiro lugar, eu não apenas assistiria ao jogo como torceria
pelo time. Nunca concordei com aquela filosofia que o terceiro lugar era um
prêmio de consolação, ou simplesmente uma burocracia da Copa do mundo. A Copa
começava com 32 seleções. Ser a terceira maior deveria ser uma honra enorme.
Mas isso, claro, quando seu time perdeu feito um time normal
na semifinal. Agora, quando seu time perde de sete a um – e jogando em casa – a
ressaca é forte demais para dar valor a qualquer coisa. Poderia enfiar dez gols
no outro jogo que não adiantaria nada. Poderia marcar o gol mais bonito da
história das Copas que não adiantaria nada.
Aqueles sete a um estavam tatuados na mente e no coração dos
torcedores. E uma tatuagem não se apaga com um único jogo, não importa qual
jogo seja esse.
Assim, pela primeira vez na vida eu experimentei a sensação
de assistir a um jogo do Brasil em Copas sem ficar nervoso. Na minha cabeça, o
jogo não valia nada, era quase um amistoso. E não por causa da medalha de
bronze, mas sim pelo desempenho do time na Copa do Mundo.
Olhando friamente, qualquer pessoa sabia que aquele time não
merecia nem estar ali. Os sete a um da Alemanha foi o modo que o futebol
encontrou de expulsar o Brasil da festa com os maiores times do mundo – mas
infelizmente, como a porta da festa já estava fechada, o Brasil continuou lá
dentro, deitado e gemendo depois de levar uma surra.
Eu não sei por qual motivo decidi assistir ao jogo no bar. O
Batata me ligou pela manhã perguntando onde eu iria ver o jogo e eu disse que
não sabia. Ele não insistiu para irmos ao bar. A Copa havia acabado para os
brasileiros ao final do jogo contra a Alemanha – no meu caso e de mais algumas
pessoas, já havia acabado mesmo no terceiro gol. Mas, para o Batata, a Copa tinha
começado a acabar quando muitos times começaram a ser eliminados. A conta do
Batata era simples: quanto menos times, menos torcedores gringos. Quanto menos
torcedores gringos, menos mulheres. Quanto menos mulheres, menos Copa.
Cerca de uma hora antes do jogo eu estava em casa,
procurando algo para fazer. Não sabia se eu estava procurando algo para me
distrair até o jogo começar, ou se eu queria algo que me distraísse durante o
jogo. Revirei meus livros, pensei em arrumar meus discos, olhei as notícias no
computador... Mas não conseguia me concentrar em nada.
A Débora não saía da minha cabeça.
Não nos víamos desde o jogo contra o Camarões. Quer dizer,
ela havia me visto no bar durante o jogo com a Colômbia – e eu tinha dentro da
minha carteira um bilhete que me fora entregue por um garçom e que provava que isso
não era loucura minha – mas eu não a via desde o jogo contra Camarões.
De lá para cá, muita coisa havia acontecido. Muito mais que
a contusão do Neymar, do cartão amarelo imbecil levado pelo Thiago Silva e da
maior goleada sofrida pelo Brasil em sua história. Na fase final da Copa do
Mundo, eu havia recebido o bilhete da Débora, mas também trocado socos com o
namorado da Débora no meio do bar e tomado um porre com o pai dela.
Meu rosto ainda doía e estava um pouco manchado por causa da
briga, mas eu nem lembrava mais disso. Acho que o sete a um mudou a vida dos
torcedores de futebol e dividiu o tempo na cronologia de muita gente. Desde a
semifinal existia um “Antes da Alemanha” e um “Depois da Alemanha”, e a briga
estava no primeiro grupo – apesar de que eu ainda sentia um pouco de dor na
lateral do corpo.
Mas a conversa com o pai da Débora... Esta não era tão
antiga. E não porque havia acontecido durante o jogo contra a Alemanha, mas sim
pelo teor dela. No começo da conversa, eu tive a certeza de que ele estava
falando sobre futebol. E talvez estivesse mesmo. Mas, em algum momento, ele
deixou de falar sobre futebol e começou a falar sobre mim e sobre a Débora.
Desde então, eu havia passado os dias tentando lembrar o que
ele havia falado no começo da conversa, mas não conseguia. Como eu achei que
era sobre futebol, encarei como um simples bate-papo e não prestei muita
atenção a ponto de decorar cada palavra como eu fiz com o final da conversa.
Tentava puxar suas frases pela memória, mas cada coisa que eu lembrava abria
uma nova dúvida: ele realmente havia falado isso ou eu queria que ele tivesse
falado isso?
E, por mais que eu tentasse pensar em outras coisas, a
conversa não saía da minha cabeça. Especialmente a parte do “vocês ainda podem
ser grandes”. O que ele queria dizer com isso? Que a Débora e eu havíamos sido
feitos um para o outro? Ou que nós poderíamos ser felizes sozinhos, sem colocar
a vida em xeque assim que um esbarrasse no outro num bar durante o jogo do
Brasil?
Sempre que eu pensava sobre isso, percebia que nada é mais
incontrolável que uma mente que tenta buscar uma resposta sem pistas
suficientes. E cada resposta que eu chegava era definitiva. Em alguns momentos,
era óbvio que a Débora ainda gostava de mim. O pai dela sabia isso, o bilhete
me dizia isso, e toda a ansiedade sobre encontrá-la que ela sentia também – e
sempre que eu pensava isso, precisava me controlar para não sair de casa e ir
até a casa dela.
Mas, em outros momentos, ficava claro para mim que nada iria
acontecer. O pai dela estava falando sobre futebol e eu fiquei imaginando
coisas; o bilhete era uma despedida e eu fiquei imaginando coisas. E eu era o
único que ficava ansioso ao pensar em rever a Débora porque eu era o único que
ficava imaginando coisas. E sempre que eu concluía isso, minha vontade era ir
para o quarto e dormir até esquecer a Débora, esquecer a Copa, esquecer tudo.
Mas, no dia do jogo contra a Holanda, eu não estava sentindo
nada disso. Eu não sentia aquele ímpeto de ir correndo até a Débora, muito
menos vontade de dormir. Passei algumas horas assim, até perceber que eu não
estava sentindo nada a respeito de absolutamente nada.
Era a minha defesa contra a decisão do terceiro lugar.
Não, melhor. Era a minha defesa contra a seleção que havia
perdido de sete a um.
Eu não havia deixado de gostar do Brasil. Eu não deixaria de
torcer. Mas eu não queria criar expectativas. O sete a um havia cavado um fosse
entre eu e a seleção brasileira. O que acontecesse naquele jogo ficaria somente
do outro lado desse fosso, sem influenciar minha vida. Se ganhar, ótimo. Se
perder, foda-se.
E foi por isso que decidi ir ao bar: porque eu estava
protegido de qualquer tipo de sofrimento. Ou talvez eu tenha ido justamente
para provar a mim mesmo que eu não me envolveria com o jogo e com o time.
Porque eu me sentia tão distante de qualquer coisa que estivesse acontecendo
naquele dia que não me importaria se a Débora não aparecesse no bar. Seria um
dia sem alegria. Mas seria um dia sem expectativas.
E um dia sem expectativas não tem como ser um dia triste,
por mais que ele tente.
Mandei uma mensagem para o Batata e saí de casa. Antes de
chegar à esquina, percebi que eu não estava sozinho. Foi a primeira vez na
minha vida que, poucos antes do Brasil entrar em campo em uma Copa do Mundo – e
ainda mais contra a Holanda – que eu não senti aquela eletricidade no ar. Antes
de todos os outros jogos – e não somente nesta Copa, mas em todas elas – as
pessoas andavam apressadas, buzinavam tensas tentando voltar para casa. Antes
dos jogos do Brasil, as pessoas se comportavam como se uma tempestade estivesse
a minutos de desabar.
Antes do jogo contra a Holanda, o mundo estava estranhamente
calmo. Havia ainda bandeiras, mas em um ou outro carro, em uma ou outra janela.
Mas o verde e amarelo havia sido quase todo varrido pelos sete a um. E as
pessoas... Assim como eu, elas andavam calmamente, cuidando de suas vidas,
olhando vitrines, tomando cafés. Não eram mais torcedores. Eram pessoas comuns.
Mesmo o bar não estava lotado como nos outros jogos. O
Batata estava lá me esperando junto com duas garrafas de cerveja vazias e uma
já pela metade. Mas havia menos da metade de pessoas que nos outros jogos. E
nem todas eram torcedoras. Muitos estavam com a camisa da seleção, prontos para
ver o jogo, seguindo o hábito criado nas partidas anteriores. Outros eram
bêbados que passavam o sábado enfiado no bar procurando algum segredo no fundo
de um copo.
A exceção era o Batata. Como o Batata havia assistido a
todos os jogos ali e também passava os sábados inteiros enfiado naquele bar,
ele era a única pessoa ali dentro que se encaixava nos dois grupos.
E a Débora não estava lá. Reconheci alguns torcedores dos
outros jogos. Outros eu nunca havia visto.
Alguns tinham o olhar distante e frio, como eu. Não era um olhar
corajoso, mas sim um olhar de alguém que já se conformou em desistir e não se
importava mais em observar a televisão.
Mas muitos ainda pareciam perdidos. Olhavam para todos os
lados, menos para a televisão, como se estivessem pedindo por mais alguns dias
para aprender a lidar com a goleada antes que o Brasil entrasse em campo
novamente.
E a Débora não estava lá.
Eu senti uma pequena decepção, mas enterrei isso em algum
lugar no peito e tentei não me importar da mesma forma que não me importaria
com o jogo. Pedi um copo e mais uma garrafa e comecei a beber com o Batata.
Enquanto eu dava o primeiro gole, a televisão mostrava os
times do Brasil e da Holanda enfileirados para a execução dos hinos. E, quanto
o estádio inteiro voltou a cantar o hino do Brasil após a música acabar, eu
senti um pouco de inveja daquelas pessoas que ainda acreditavam em algo. Ou
melhor, que não tinham medo de acreditar em algo.
– A galera tá apoiando o time, você viu?
Olhei para o Batata. Ele olhava para mim tentando sorrir.
Não era um comentário sobre futebol – o Batata não entendia nada disso. Era
como se eu fosse uma criança de três anos, emburrada porque quer ir para casa,
e o Batata fosse meu pai, ajoelhado ao meu lado e tentando me convencer que “o
passeio vai ser legal, todas as outras crianças estão se divertindo e você vai
gostar”.
Comecei a me sentir um idiota, não por causa do meu mau
humor, mas sim porque eu achei aquela manifestação da torcida bonita demais,
mas não encontrei coragem para dizer isso em voz alta para o Batata. E, como
uma criança de três anos, dei de ombros. E bebi mais um gole de cerveja.
Assim que o jogo começou, aconteceu o que eu havia previsto:
eu não sentia nada. Era como se eu estivesse assistindo a um daqueles amistosos
imbecis entre Brasil e País Que Nunca Sequer Participou de Uma Copa Do Mundo. Era
um daqueles jogos que eu normalmente teria assistido em casa, fazendo outra
coisa e deixando a televisão de som ambiente.
Minha frieza durou apenas um minuto – aparentemente, um
minuto a mais que a frieza do time. No primeiro ataque, o capitão do time se
desesperou com o holandês entrando sozinho na área – e cometeu pênalti. Na
verdade, a falta foi fora da área. Na verdade, ele deveria ter sido expulso e
tomou apenas o amarelo.
Eu não ouvi um xingamento no bar. As pessoas estavam
desoladas. Haviam saído de um sete a um e agora viam o time cometer um pênalti
com um minuto de jogo. Nós já havíamos visto isso antes, mas sempre do outro
lado. Cansamos de ver times pequenos serem goleados pelo Brasil, cansamos de
ver zagueiros de times pequenos agarrando desesperados os atacantes brasileiros
com um minuto de jogo.
Nunca havíamos visto isso do nosso lado.
De repente, nós éramos o time pequeno.
Pensei em dizer ao Batata que o “Júlio Cesar vai pegar essa
porra”, mas fiquei quieto. Quem pensou isso foi uma parte minha que eu estava
tentando ignorar, a parte que dizia que tudo o que time precisa é que o goleiro
pegue esse pênalti, para voltar a jogar bem e enfiar uns dois gols na Holanda.
Ainda bem que eu não disse nada.
Um a zero.
Com o gol, os comentaristas começaram a dizer que agora era
o momento de ver como o time se comportava. A torcida estava apoiando, e era
hora de ir para cima. Era hora de reagir e mostrar que o jogo contra a Alemanha
havia sido um acidente. Trágico, mas ainda assim um acidente. Era hora de
mostrar porque o Brasil tinha o melhor futebol do mundo.
Dois a zero.
Dois a zero com quinze minutos de jogo. No bar, as pessoas
não tinham mais forças nem para reclamar do time. Estavam olhando para a
televisão impassíveis e assustadas como se tivessem saído de casa pela manhã e
encontrado os destroços de um carro destruído num acidente ocorrido horas
antes.
E o placar era justo. O time que estava em campo não era a
seleção brasileira, mas sim onze pessoas que pareciam ser escolhidas ao acaso
na porta do estádio. Se reunissem onze pessoas que estavam ali no bar e dessem
uma camisa amarela para cada um deles, o desempenho não seria muito pior. E
aposto que jogariam com muito mais brio. O Batata, por exemplo, nos primeiros
cinco minutos teria jurado o Robben de morte (usando mímicas e seu inglês
tosco, dizendo algo como “I gonna kill you, holandês de merda”) o que faria o
atacante pensar duas vezes antes de entrar na área brasileira novamente.
Mas quem estava em campo era o Thiago Silva e seus dez
amigos, e não o Batata e dez caras do bar. E uma nova tragédia passou a ser
prevista. Ninguém foi embora do bar, mas as pessoas não inventavam algo para
fazer longe da televisão. Muitos estavam mexendo no celular. Outros saíam para
fumar e ficavam ali na calçada mesmo, batendo papo e fazendo o cigarro durar
eternamente.
E eu olhava para os lados em busca da Débora, mesmo sabendo
que ela não estaria ali.
Era quase uma questão de hábito. Meu cérebro havia se acostumado
a procurar a Débora nos jogos do Brasil. Depois de seis jogos, eu já sabia
quais os melhores lugares para observar a porta, quais os pontos cegos onde a
Débora poderia estar escondida. Mas ela não estaria ali. As pessoas iam ver
jogos do Brasil em bares por causa da festa, e não era dia de festa, era um dia
comum.
No final do primeiro tempo, poucas cadeiras ainda estavam
ocupadas.
E, no início do segundo, o bar tinha menos gente ainda. A
cada minuto o número de pessoas diminuía, e o número de garrafas de cervejas na
nossa mesa crescia. Sem ter torcedoras de outros países por perto para desviar
sua atenção, o Batata havia voltado à velha forma e estava entornando um copo
atrás do outro. Eu bebia, mas não tentava acompanhá-lo.
As outras pessoas do bar já haviam desistido do jogo.
Estavam batendo papo sobre outros assuntos, já nem olhavam mais para a TV. As
vidas estavam continuando.
Menos a minha. Eu ainda olhava para a televisão, esperando
por um sinal de que as coisas fossem melhorar – ou desafiando a seleção a fazer
com que eu sentisse alguma coisa por ela. Substituições foram feitas. O time do
Brasil continuava apático e eu continuava determinado a permanecer apático.
A Débora dificilmente estaria apática. Provavelmente estaria
assistindo ao jogo em casa com o namorado – ou na casa do namorado, o que daria
no mesmo. E estaria se lembrando de mim, do nosso namoro e de como nós quase
voltamos a namorar durante a Copa do Mundo, mas nos desencontramos. Ou estaria
se lembrando de mim, olhando para o namorado que não estava nem aí com o jogo
do Brasil e pensando, feliz, como é mais tranquilo namorar um imbecil como ele.
Ou estaria se lembrando de mim, se perguntando se eu estaria no bar e logo em
seguida me esquecendo, pensando no que iria fazer amanhã e onde iria ver a
final da Copa, se na casa dela ou do namorado.
Foi quando eu me lembrei da final e as coisas se tornaram
piores.
– O que você falou?
A pergunta do Batata me pegou de surpresa, e fez com que eu
percebesse duas coisas: primeiro, eu não estava mais pensando, eu estava
falando resmungando sozinho na mesa do bar. Segundo, como eu não havia reparado
nisso, eu devia estar começando a ficar bêbado.
– Amanhã tem a final com a Argentina. Essa merda de Copa não
acaba nunca.
Assim que falei isso, me lembrei do que senti quando
encontrei a Débora no primeiro jogo, e do que sentia no caminho para o bar
antes de todos os jogos, brincando comigo de “se eu não ficar pensando se ela
vai estar no bar, ela vai estar” e senti tristeza porque a Copa estava acabando
e estava levando a Débora embora. E senti um pouco de medo da Copa ter servido
não para eu matar a saudade da Débora, mas sim para determinar que eu sentiria
a falta dela pelo resto da vida.
– Mas qual o problema da Argentina estar na final?
Dei um gole antes de responder.
– Você sabe o que significa a Argentina ganhar uma Copa no
Brasil?
O Batata pensou por alguns instantes tentando entender minha
pergunta. Como ele não entendia de futebol, a pergunta não significava nada
para ele.
– Mas alguém vai ser campeão, não?
– Como assim?
– São trinta e tantos times. Um deles tem que ser o campeão.
Não é pra isso que serve essa porra de Copa? Para alguém ganhar?
A lógica do Batata era incontestável. Anos e anos
acompanhando futebol, decorando nomes de jogadores, sonhando com jogos do
passado e do futuro, e eu havia ficado sem resposta discutindo o assunto com um
sujeito que não sabia nem quantos jogadores tinha em cada time.
Dei um sorriso para encerrar a discussão. Eu não queria
começar a falar da Argentina, nem da Débora, nem da Copa. Eu queria só que a
Copa acabasse de uma vez. Não. Eu queria que a gente estivesse no começo da
Copa. Eu iria falar de verdade com a Débora. Eu não teria acreditado tanto no
time. Eu teria pedido para a Débora vir ao bar me ver, ao invés de ficar
fazendo joguinhos. Eu teria visto que o time não...
Alguém cortou meus pensamentos – o que foi bom, porque
provavelmente eu estava resmungando de novo – gritando “vergonha!”. Olhei para
a TV.
Três a zero.
Eu? Eu continuava sem sentir nada. Quer dizer, eu achava
isso. Mas foi aí que eu percebi que alguma coisa eu estava sentindo, porque
imediatamente me levantei da mesa e avisei o Batata que ia embora.
– Cara, você não vai ver o final?
Foi quando tudo aquilo que eu achava que não estava sentindo
resolveu que era hora de sair do seu esconderijo, gritando “surpresa!” e
mostrar que eu estava sentindo mais que qualquer um ali naquele bar. De
repente, toda a minha frieza desapareceu – não sei ela estava escondida atrás
da bola dentro do gol do Brasil, ou dentro da minha carteira, dobrada junto com
o bilhete da Débora.
Eu não pensei antes de responder.
– Eu já vi o final! Todo mundo aqui já viu o final dessa
merda! O final dessa merda foi com aquele gol contra com dez minutos de Copa. O
final foi com o time não jogando nada! O final foi com aquela bola na trave do
Chile, com a bordoada que deram Neymar, com a bosta do bilhete que não quer
dizer nada, com o meio de campo não funcionando, com o pessoal chorando na hora
do hino!
Eu estava parado em pé no bar, e as pessoas não estavam mais
assistindo ao jogo, e sim ao meu discurso. Algum bêbado gritou do canto “é isso
aí, time de merda!”. Eu esperei outro grito, mas ele não veio. E eu, que não
estava sentindo nada até aquele momento, senti uma tristeza muito grande quando
concluí, falando mais para mim que para os outros.
– Todo mundo aqui viu o final dessa merda desde o começo. A
gente só não queria enxergar.
Curiosamente, o Batata, apesar de ter bebido mais que
qualquer outro no bar – ou justamente por isso – foi o único que percebeu algo estranho
no que eu havia falado e perguntou para mim, de forma até casual.
– Que bilhete?
– Oi?
– Que bilhete? Você falou de um bilhete.
– Nada. Eu vou embora. Amanhã a gente se fala.
Antes que o Batata respondesse, saí do bar e ganhei a rua. E
fui direto para casa, tentando não pensar no jogo. Tentando não pensar na
Débora.
Mas eu estava certo. Eu havia visto o final logo no começo.
O gol contra no começo do primeiro jogo havia sido um presságio, mostrando que
era uma Copa que deveria ser esquecida. Como toda Copa, tivemos momentos em que
achamos que tudo poderia dar certo. O jogo contra Camarões. Eu cara a cara com
a Débora no corredor do banheiro. O olhar dela quando seus olhos encontravam o
meu. O primeiro tempo contra a Colômbia.
Mas foram apenas lampejos que, no final das contas, serviam
somente para enganar, e não para mostrar o caminho. Me lembrei do pai da Débora
falando que nós ainda poderíamos ser grandes e me imaginei tentando ser grande
em 2018, na próxima Copa, e senti um gosto amargo na boca ao perceber que a
Copa de 2018 poderia ter tudo... Mas não teria a Débora. Se a Débora tivesse
aparecido no bar hoje talvez fosse diferente. Mas ela não foi. A vida continua.
Ao menos, a vida dela.
O jogo contra a Holanda havia sido a pá de cal. Não só no
time, mas em tudo.
Senti meus olhos molhados e apertei o passo. Eu não queria
chorar na rua. Na verdade, eu não queria nem chorar, eu queria somente entrar
em casa e esquecer todos os sonhos imbecis dos últimos trinta dias.
Ao entrar no meu prédio, eu jurei para mim mesmo que jamais
assistiria a um jogo do Brasil em Copa num bar. Porque não importa em qual Copa
fosse, contra quem fosse o jogo, em qual bar eu estivesse... A Débora não
estaria lá. Estar no bar apenas me lembraria disso.
Subi as escadas tentando adivinhar o que seria pior de agora
em diante: assistir a um jogo num bar procurando pela Débora que não estaria
lá, ou assistir a um jogo no bar sabendo que seria perda de tempo procurar pela
Débora. Não encontrei a resposta.
E, além da resposta, também não encontrei minha chaves.
Fiquei parado em frente ao meu apartamento, revirando os bolsos da calças.
Nada. Esvaziei todos os bolsos. Nada. Deviam ter ficado no bar. Merda. Peguei o
telefone e liguei para o Batata.
– Você ainda está no bar?
– Tô. O jogo acabou três a zero.
– Foda-se. Minhas chaves estão aí?
– Pera. Tão. Tão aqui na mesa. Você quer vir pegar?
Não. Eu não queria voltar para a rua. Eu não queria voltar
para o bar.
– Cara, traz essa merda para mim, por favor. Fiquei preso
fora de casa.
– Beleza. Logo mais apareço aí.
Desliguei e me sentei no chão, apoiando as costas na parede
do corredor escuro. Que maneira de terminar a Copa. Abracei minhas pernas e
ainda meio emputecido com o time e comigo, ainda meio triste com o a Copa e
comigo, ainda meio decepcionado com os sete a um e com os três a zero e com o
bilhete e com a ideia de que “vocês ainda podem ser grandes” – e com pitadas de
álcool por cima disso tudo – enfiei a cara nos meus joelhos e fiquei esperando
o Batata chegar.
Eu não ouvi quando ele chegou. Não ouvi seus passos subindo
a escada, não ouvi seus passos se aproximando pelo corredor, não ouvi sua voz
chamando meu nome. Mas senti sua mão em meu ombro. Levantei a cabeça, mas não
era o Batata.
Era a Débora.
Ali, abaixada na minha frente. No corredor escuro, na porta
de casa. Eu devo ter olhado com a maior cara de “não estou entendendo nada” que
ela deve ter visto na vida, porque ela se apressou a explicar.
– Eu encontrei o Batata saindo do bar. Ele disse que estava
trazendo para você então eu vim no lugar dele.
Eu continuei sem entender nada.
– Mas você estava no bar?, foi tudo o que eu consegui
perguntar. Minha voz soou estranha, mas ela não pareceu se importar.
– Eu fui lá procurar você. Eu estava preocupada.
– Preocupada?
– Por causa do jogo. Desde o jogo com a Alemanha eu estava
preocupada com você. Quando a Alemanha fez o terceiro gol, eu imaginei que você
deveria estar péssimo e fui até o bar para ficar com você. Mas você não estava
mais lá.
– Eu encontrei seu pai. Ele me disse que você tinha saído de
casa, mas não disse que tinha ido ao bar.
– Eu sei.
– O seu namorad...
Ela não disse mais nada. Ela apenas levou um dedo aos
lábios, pedindo silêncio. Ainda com os dedos no lábio, sorriu e, com um simples
sorriso, se tornou primeira pessoa da história que conseguiu ser linda num
corredor escuro e frio, pouco depois do Brasil levar dez gols em uma Copa do
Mundo em menos de uma semana.
Ela se levantou e colocou a chave na porta do apartamento.
– Vamos entrar.
Eu levantei, mas não estava pensando em entrar, estava
apenas indo atrás do sorriso. Quando eu percebi, estava segurando o braço dela.
– Eu te amo.
Minhas palavras saíram rápidas e engasgadas, quase se
atropelando. E eu pensei que havia feito igual ao Brasil, dando chutões da
defesa direto para o ataque, sem sequer pensar a jogada. Mas imediatamente me
senti um idiota por ter pensado isso.
Sem largar a chave, ela sorriu de novo. Mas, se este sorriso
foi tão – ou mais – lindo que o primeiro, foi mais curto. Ela se aproximou de
mim e beijou levemente meus lábios, quase como se não quisesse que eu
percebesse isso.
– Eu também te amo.
A força das minhas pernas ameaçou me abandonar. Ela abriu a
porta e, antes que entrássemos ela olhou novamente para mim.
– Eu nunca deixei de amar você, Beto. Nem por um dia.
E foi quando eu lembrei o quanto adorava o jeito que meu
nome soava com a voz da Débora. Ela entrou no apartamento e eu entrei atrás
dela. Antes que a porta se fechasse, eu jurei para mim mesmo que assistiria a
todos os jogos da Copa de 2018 em casa.
Com a Débora.
E se o Brasil perdesse mais uma vez, não haveria problema. A
vida iria continuar.
Desta vez, com a Débora.
FIM
Notas e agradecimentos do autor
2) Os nomes Beto e Batata são uma homenagem aos personagens dos livros A Hora do Amor e A Hora do Luta, de Álvaro Cardoso Gomes, dois dos melhores livros que li na minha adolescência por causa da escola.
6) E um agradecimento final à Esposa que não apenas não se importou em me dividir com a Débora durante o mês como revisou todos os textos antes da publicação.
15 leitores:
Um belo final, pra uma grande história de uma copa trágica. Parabéns Rob :D
Alguém tinha que se dar bem no final desse fiasco que foi a Copa... adorei, adorei, e faço votos que o Beto e a Débora sejam muito felizes! =)
Se eu gostei??!?!?
SE EU GOSTEI?!!?!?
\o/
BOM DEMAIS!!
Quando eu crescer - pros lados - quero escrever tão bem quanto você!
Grande, enorme, gigantesco abraço e muito obrigado por ter abraçado com tanto carinho a minha ideia - e ter se apropriado dela de um jeito tão fenomenal!
Muito bom Rob - um desfecho digno para série. De longe meu personagem preferido foi o Batata =]
Não conhecia esses livros do Álvaro. Agora vou atrás da origem secreta do Batata!
Keep Writing
It's always a pleasure. <3
Estarei esperando as aventuras do Batata na Copa de 2018!!
Meus parabéns, Rob. Muito lindo ver você se superando a cada dia - e eu achando que isso não fosse possível. ;)
Beijo grande!
Poxa, parabéns. Como não se apaixonar por Débora? Esperamos agora por 2018.
Não tem como não se apaixonar pela Débora ou sentir raiva do ex-namorado dela. E cara, eu nem gosto tanto de futebol assim, sou menos que um "torcedor de Copa" e consigo sentir a tensão do Beto em cada jogo.
O texto da Alemanha foi um dos melhores que já li na vida. E veja bem, não é apenas um dos seus melhores textos, é um dos melhores contando todos os autores que já li.
Torço pra que na próxima Copa o Beto e a Débora estejam bem, tomando uma cerveja na casa do pai dela (porque eles já vão estar morando juntos) e dando risada do Batata fazendo alguma batatice. E torço pra que você nos conte como eles estão daqui quatro anos.
Parabéns pela saga!
abraço
:~)
Cara, sem sacanagem? Senti como se tivesse sido comigo.
Nossa!Inacreditável! Não só li A Hora do Amor, como gostei tanto que li O Diário de Lucia Helena ( a versão dela da história).
Amei o final, superou minhas expectativas!
Parabéns pelos textos! Vi por acaso no facebook de uma amiga no começo da copa e não consegui parar de ler! Aguardei com ansiedade cada encontro da Débora e do Beto (quem eu confesso ter voltado umas duas vezes ao primeiro texto pra ter certeza de que não tinha perdido o nome dele!). Adorei vc ter escrito um texto com o olhar dela! Se já sofria com a ansiedade do Beto, quando vc expôs o sentimento da Débora, me apaixonei ainda mais pelo casal e torci mais ainda por um final feliz! A taça não veio mas meu consolo foi poder acreditar no amor desses dois.. Obrigada!
Cara. Muito bom.
Eu poderia dizer facilmente que os personagens daria um livro, um filme, uma mini-série.
Fantásticos.
Confesso que gostaria de um epílogo, que trataria o depois desse jogo.
A final contra a Argentina seria legal, mesmo sem o Brasil.
COmo disse, seria só um epílogo.
;)
Cara, só achei essa aventura agora no final da Copa, por um lado foi bom, pude ler tudo direto, mas perdi a expectativa de esperar o desenrolar da história durante os jogos.
E posso falar, cara que história deliciosa de ler...
Acredito que todos somos meio Beto, e temos nossa Copas particulares, amamos uma Débora, mesmo não admitindo e claro se tivermos um amigo igual ao Batata, estamos em boas mãos...
Valeu por mais essa Rob...
Parabéns Rob, você foi simplesmente brilhante!!!
Não sei se é a fase que estou no momento, algo que poderia chamar de alta sensibilidade, ou se é a sua habilidade, de atrair, prender, emocionar, divertir, causar ansiedade, tensão, alegria, reflexão sobre a vida e tantas outras coisa que me fez sentir ao ler todos os capítulos dessa série.
Ganhou mais um fã!!!
Iury
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