Este texto é o sexto (e penúltimo) de uma série. A ideia –
ambiciosa e sugerida pelo leitor @cmmarcondes – é desenvolver este conto
conforme o Brasil avança na Copa. A cada jogo do Brasil, a história ganha um
novo desenrolar que se passa durante os jogos, refletindo o desempenho da seleção
e influenciando o destino dos personagens. Os capítulos são sempre postados
antes do jogo seguinte.
No terceiro gol eu saí do bar.
Na verdade, não lembro nem de ter me levantado ou caminhado
até a calçada. Eu estava em choque. Quando dei por mim, estava sentado no
meio-fio. Eu havia me tornado uma criança usando uma camisa amarela e que não
sabia para onde ir. Uma criança que não sequer encontrava forças para chorar.
Talvez para me esconder do que estava acontecendo – ou por
causa da sensação de que o mundo inteiro estava olhando para mim naquele
momento – eu enterrei o rosto nas mãos. Minutos depois, eu descobri que aquele
esconderijo não adiantaria nada. A Alemanha fez o quarto gol e o Batata saiu do
bar e se sentou ao meu lado.
– Você tá legal?
Eu não consegui responder.
Eu sempre encarei as derrotas do Brasil em Copas do Mundo como
alguns dos momentos mais doloridos da minha vida. Acho que todos que realmente gostam
de futebol se sentem assim. As pessoas que torcem somente em Copa do Mundo
normalmente xingam o time, xingam o técnico, xingam o adversário pelo fracasso,
mas continuam com suas vidas. O verdadeiro torcedor sabe que as derrotas mais
doloridas são aquelas que vão lhe acompanhar pelo resto da vida.
E, quando eu sentei na calçada, eu já sabia disso. O jogo
contra a Alemanha iria me assombrar pelo resto da vida. Daqui a décadas, as
pessoas me perguntariam o que aconteceu naquele dia, onde eu vi o jogo, como eu
me senti vendo o Brasil tomar quatro gols em menos de vinte e cinco minutos.
Numa semifinal de Copa. Jogando em casa.
Dois ou três gritos
no bar entregaram que a Alemanha havia marcado mais um.
Cinco a zero.
– Eu vou embora.
Eu não pensei antes de falar. Apenas respondi a primeira
coisa que me veio à cabeça, como se o fato de eu finalmente falar alguma coisa
fizesse o Brasil parar de tomar gols. Como se eu precisasse fazer algo porque o
que estava acontecendo no Mineirão era culpa minha.
Não era. Não era culpa minha.
Mas talvez a decepção que eu sentia fosse.
Batata se ofereceu para ir comigo, mas eu preferia ficar
sozinho. Eu preferia ficar em silêncio. Ao contrário que os livros de autoajuda
pregam, nem toda dor desaparece quando você resolve falar sobre ela. Além
disso, o que eu iria falar? Sobre a tática do time? Sobre a escalação? Sobre o
fato de que daqui a quatro anos teremos outra Copa e que vai ser diferente porque
nós sempre nos agarramos a isso quando o Brasil é eliminado?
Não. Eu queria fica sozinho com meus cinco gols tomados em
menos de trinta minutos enquanto o mundo inteiro assistia. Assim, me despedi do
Batata e saí andando pela rua, meio sem saber para que direção seguir.
Logo eu percebi que não era o único. Diversas pessoas
estavam na rua. Andavam sozinhas ou, às vezes, em pares. Todas elas em
silêncio, com olhar perdido. Havíamos nos tornado um país de mortos vivos. As
pessoas caminhavam sem rumo, sem propósito, tentando apenas não conseguir
escapar de alguma coisa que parecia estar em todo o lugar.
E eu tive a certeza de que havia sido a mesma coisa em 1950,
mesmo sem saber direito como foi em 1950. Talvez eu tenha sorrido de forma
amarga ao perceber que a maior tragédia da história da seleção brasileira –
aquele que nós víamos os mais velhos evitando conversar a respeito e a imprensa
esportiva pregando que era algo que deveria ser evitado a qualquer custo –
havia finalmente sido superado.
O famoso “maior vexame da seleção brasileira” estava no
passado, porque o maior vexame da seleção brasileira estava acontecendo agora.
Mas, ao contrário de 1950, foi escolha nossa acreditar no
time de 2014. Até onde eu sei, o time de 1950 era excelente: a derrota havia
sido uma fatalidade, aquilo que (os vencedores) apontam como “a magia do
futebol”. O time de hoje não era bom. Nós sabíamos disso, mas resolvemos
apostar todas as nossas fichas nele por um único motivo: era o único time que
tínhamos.
Talvez daqui a décadas as pessoas achem que o placar foi
atípico, um acidente. Não foi. Levar cinco gols no primeiro tempo foi o preço
que pagamos – ou, ao menos, que eu paguei – em me esforçar para acreditar num
time que não merecia isso. Os sinais estavam todos claros, desde o gol contra
com poucos minutos de Copa até à contusão de Neymar, tudo indicava que a Copa
não era nossa. E, mesmo assim, nós fizemos questão de acreditar.
Foram cinco jogos nos quais o time não jogou bem. Às vezes,
ameaçava decolar, mas logo voltava ao chão de forma atrapalhada. O tal
canarinho era um pássaro ferido que não conseguia mais voar, e nós estávamos
observando tudo certo de que ele iria voar no próximo instante.
Enquanto eu andava, o número de pessoas na rua cresceu.
Provavelmente, o primeiro tempo havia acabado. Provavelmente, já estava uns
vinte a zero. Vi algumas pessoas saindo de suas casas e dos prédios – todos
ainda com camisas verdes, amarelas e azuis e as malditas cinco estrelas nas
quais depositamos a certeza de que tudo sempre vai dar certo – mas não tive
coragem de perguntar o placar, de querer saber o que estava acontecendo.
Mesmo porque eu havia percebido que estava andando pela rua
que a Débora morava.
Não sei como havia chegado até ali. Eu estava andando pelo
bairro sem saber para onde ia...
Não. Mentira. Eu saí do bar em busca da Débora. Andei pelo
bairro evitando a rua dela de propósito somente para jogar comigo mesmo. Mas
desde que eu comecei a andar sabia que estava vindo para cá.
Não somente para a rua dela, mas para o prédio em que ela
morava.
Fazia dias que minha mente andava na frente do prédio da
Débora pelo menos umas quatro vezes por dia. Na verdade, desde o final do jogo
contra a Colômbia, quando o garçom me entregou um bilhete com a letra dela, eu
vivia mais tempo me imaginando aqui na frente do prédio que no mundo real.
Sem saber ao certo o motivo disso, sentei do outro lado da
rua, num pequeno canteiro, e apoiei as costas em uma árvore. Era um ótimo
lugar. Dali, eu poderia ver quem entrasse ou saísse do prédio, mas as pessoas
do prédio só me enxergariam ali se olhassem diretamente para mim.
O problema é que eu não fazia ideia do motivo de estar ali.
O que eu iria fazer se a Débora aparecesse? O que eu iria fazer se a Débora
aparecesse com aquele imbecil do namorado dela? O que a Débora pensaria se
saísse do prédio e me visse ali, sentado na calçada do outro lado da rua, com
cara de quem levou cinco gols no primeiro tempo de uma semifinal de Copa e sem
saber explicar o que estava fazendo ali ou sequer como chegou até ali?
Sem encontrar respostas, resolvi me refugiar na única
resposta que tinha. Abri a carteira e puxei o bilhete da Débora que estava
escondido ali. Desdobrei o papelzinho com cuidado e reli a mensagem escrita em
duas cores.
E me senti como se o jogo contra a Alemanha ainda não
tivesse nem começado.
Tudo o que eu havia feito nos últimos dias era reler o
bilhete da Débora e imaginar como seria o jogo contra a Alemanha – ou melhor,
imaginar se eu encontraria com ela no jogo contra a Alemanha.
Eu havia feito isso todos os dias. Passava horas relendo o
bilhete e tentando entender o significado dele, como se, ao olhar para aquele pedacinho
de papel por tempo suficiente eu iria descobrir uma mensagem secreta escondida
ali. Era como uma charada que eu não sabia resolver, mas estava convencido que
ela se resolveria sozinha, quase que por mágica, se eu lesse e relesse e
relesse e relesse e relesse o bilhete.
O problema era que eu não sabia se o bilhete era um “que bom
reencontrar você” ou um “adeus”. E quanto mais eu relia, mais cara de “quem bom
reencontrar você” ele tinha. E quanto mais eu pensava sobre ele, mais cara de
“adeus” ele ganhava.
Quando eu me cansava disso, guardava o bilhete de volta na
carteira – dobrado e escondido atrás da foto dos meus pais – e passava o dia
inventando motivos para não vir ao prédio dela, e me achando um idiota por ter
passado a madrugada anterior deitado na cama e pensado em todos os motivos
possíveis – inclusive os ridículos – para vir ao prédio dela.
Olhei para a janela da Débora. Eu não precisei nem contar os
andares, eu sabia de cor onde ficava a janela do quarto dela. Quando
namorávamos, sempre que eu ia embora daqui, parava no meio da rua, me virava
para o prédio e acenava me despedindo. Ela sempre estava na janela e acenava de
volta. Era uma espécie de brincadeira nossa, que nunca foi sequer combinada. Um
dia ela apenas estava ali me olhando ir embora e acenou de volta. Desde em
diante, ela sempre estava ali acenando de volta.
Menos no último dia. No último dia, me virei com os olhos
cheios de lágrimas e a janela estava fechada. E menos hoje. A janela estava
fechada. Provavelmente, a Débora não estava em casa. Provavelmente, a Débora
estava na casa do namorado dela. Provavelmente, ela nem lembrava mais que eu
existia.
Provavelmente, o bilhete era um “adeus” mesmo.
Comecei a me sentir um idiota. Aliás, eu não me sentia como
um idiota qualquer, eu me sentia como um idiota que se deixou enganar. Um
idiota que acreditou que aquele time podia ganhar alguma coisa. Um idiota que
acreditou que havia encontrado a ex-namorada por destino, e não porque nós
morávamos no mesmo bairro. Eu era um idiota que havia levado quatro gols em
menos de dez minutos. Eu era um idiota bem especial, um idiota daqueles que os
outros idiotas admiram de longe, se perguntando “como ele consegue ser tão
idiota assim?”.
– Desistiu do jogo?
Com um susto, olhei para trás na direção da voz. Se isto
fosse uma comédia romântica daquelas que a Débora adorava, seria ela ali, vindo
me confortar. Teria brigado com o namorado ao descobrir que sou o homem da vida
dela, e estaria atrás de mim pelo bairro. Uma música começaria a tocar. Eu e a
Débora conversaríamos comente com o olhar, e nos beijaríamos, nos abraçaríamos,
e prometeríamos... Não, nada de promessas. Eu soltaria uma piadinha e ela
sorriria, e iríamos embora para minha casa, para sempre. Acendem as luzes e as
pessoas vão embora do cinema desejando viver um amor desses.
Mas não era um filme. Não era a Débora. Mesmo porque a voz
era de homem. Não era a Débora, era pior.
Era o pai dela.
Não era uma comédia romântica. Era uma tragédia com
contornos de humor negro.
Guardei o bilhete rapidamente na carteira – será que ele
conseguiu reparar que a letra era da filha dele? – e me levantei, sem saber ao
certo o que falar. Ele continuou:
– Eu também desisti. Desisti no quarto gol e saí de casa.
Fui andar pelo bairro, mas calculei mal e voltei cedo demais.
– O jogo ainda não acabou?, perguntei, sentindo minha voz
raspar a garganta.
– Não. Eu vi as pessoas numa outra casa comentando que está
no segundo tempo. Não quero voltar para casa antes de acabar.
Eu fiquei em silêncio. Não sabia se devia começar a me
explicar sobre porque eu estava sentado na frente do prédio dele, ou se eu
perguntava a ele como o time deveria ter sido escalado. O pai da Débora sempre
gostou de futebol, e eu adorava conversar sobre futebol com ele. Ainda bem que
ele viu que eu não sabia direito como reagir e fez o que qualquer pessoa normal
– quer dizer, qualquer pessoa que não fosse um idiota – faria. Meu tirou dali.
– Vamos até a padaria comigo? É ali na esquina.
Eu não queria ir. Não porque eu queria ficar sozinho, mas
porque eu não queria ficar andando para cima e para baixo com o pai da Débora
enquanto ela estava com outro cara. Mas o que eu poderia dizer? “Não, eu prefiro
ficar sentado aqui na terra úmida, encostado nesta árvore e olhando o portão do
seu prédio como se eu tivesse uma espécie de demência”? Assim, não respondi
nada. Apenas guardei a carteira que ainda estava na minha mão no bolso da calça
e começamos a andar lado a lado.
Era uma daquelas ocasiões que os outros idiotas do planeta
olhariam para mim e sentiriam um misto de inveja e admiração e se perguntaram
se um dia conseguiriam ser tão idiotas quanto eu.
A padaria, como eu esperava, estava deserta – na verdade, eu
nem imaginei que ela estaria aberta. Sentamos num banquinho e o pai da Débora
perguntou se eu bebia cerveja. Eu disse que sim e ele pediu duas.
– E desliga essa merda, ele disse para o cara da padaria, apontando
para a televisão. Eu havia olhado para a televisão instintivamente, assim que
entramos na padaria. Estava seis a zero. Mas o cara da padaria desligou
imediatamente. Provavelmente, estava ali sofrendo em silêncio e torcendo para
que alguém o mandasse desligar aquilo.
Colocou duas cervejas na nossa frente se serviu os copos. O pai da
Débora virou o copo de uma vez e eu fiz o mesmo.
– Você não se lembra de oitenta e dois, né?, ele perguntou, pousando o
copo no balcão. Eu fiz que não com a cabeça.
Ele entornou o resto da lata e bebeu novamente de uma vez, antes de
continuar.
– Oitenta e dois foi pior. Hoje pode parecer que não, mas oitenta e
dois foi pior.
– Pior que cinquenta?, eu perguntei.
– Sei lá. Eu não vi cinquenta. Deve ter sido uma merda também. Mas
oitenta e dois foi pior porque o time era bom.
Ficamos em silêncio, bebendo. Ele, provavelmente, estava se lembrando
da Copa de 82. Eu ainda estava tentando entender como deveria me comportar ali.
Ele pediu mais duas. Com os copos cheios, continuou a falar.
– Aliás, nós estamos passando por isso hoje por causa de oitenta e
dois.
Neste momento, eu lembrei que não estávamos apenas conversando sobre a
história do futebol. Nós estávamos conversando sobre o passado para tentar
digerir o presente. Meu estômago se revirou como se eu tivesse acabado de ligar
a televisão e descoberto que o Brasil estava perdendo de seis a zero naquele
minuto. Mas fiquei quieto e jurei para mim mesmo que não iria chorar, enquanto
ele virava outro copo e eu imitava.
Não estava acostumado a virar um copo atrás do outro, mas acho que
quando sua seleção passa pela maior vergonha da história das Copas, não existe
bebida suficiente no planeta.
– Em oitenta e dois, ele continuou, o Brasil cismou que não iria mais
ganhar uma Copa do Mundo jogando bonito. Havíamos ganhado uma jogando bonito,
outra jogando bonito, uma terceira jogando bonito. Aí veio oitenta e dois. E,
com aquele jogo contra a Itália, parece que as pessoas começaram a acreditar
que havíamos vencido três copas jogando bonito por acidente.
– Mas nós ganhamos duas depois disso.
– Sim. Mas sem jogar como sabíamos. Talvez em dois mil e dois tenha
sido um pouco assim. Mas em noventa e quatro... Você se lembra de noventa e
quatro?
Fiz que sim com a cabeça.
– Em noventa e quatro nós ganhamos jogando feito time europeu. “Se
fecha lá atrás e espera sobrar uma bola”. Nós começamos a jogar do mesmo jeito
que todo mundo jogava contra a gente.
Ele parou e bebeu o resto da cerveja junto comigo. Eu pedi mais duas
latas.
– Hoje, ele continuou, estamos aí. Sem jogar nada, jogando com medo, e
apanhando de seis.
Pensei em responder que nós jogamos bem o primeiro tempo contra a
Colômbia, mas antes que eu pudesse falar percebi que isso apenas daria razão a
ele. Além disso, o “apanhando de seis” não abria muito espaço para uma
resposta. Quando você coloca um “apanhando de seis” na mesa, a discussão está
encerrada.
– Quem sabe assim a gente aprende, ele disse, mais para si mesmo que
para mim, enchendo o copo novamente.
Eu bebi e aproveitei o silêncio para falar.
– Posso fazer uma pergunta?
– Claro.
– Você achou, em algum momento, que a gente ganharia a Copa?
Foi só depois que eu perguntei que eu reparei que estava com medo da
resposta. Eu queria que ele tivesse acreditado também. Eu não queria ser o
único a ter acreditado nisso. Ele pensou por alguns instantes antes de me devolver
um “a gente sempre acredita” que saiu mais amargo do que eu – e provavelmente
ele – esperava. Como eu não respondi mais nada, ele continuou.
– Esse é nosso principal defeito. A gente sempre acredita. Esse é
nosso principal defeito, mas é nossa principal vantagem. Eu acreditei em todos
os jogos. Quando começou o jogo hoje, eu acreditei. Você sempre acredita não só
que vai ganhar, mas que vai jogar bem. O time não jogou nada a Copa inteira, e
eu acreditava assim mesmo. Você também.
– Sim.
– Aí fizeram o terceiro gol. Minha mulher foi para o quarto ver um
filme. A Débora saiu de casa – quando ele disse isso, meu estômago embrulhou e
eu controlei a vontade de perguntar se ele sabia aonde ela tinha ido – e eu
continuei na frente da TV. Mas logo em seguida tomou o quarto gol, aí eu
desisti também. Peguei minha carteira e saí de casa. Não dava mais.
Senti um pouco de alívio ao ver que eu não estava sozinho. Eu era
idiota, mas não era o único. Ele olhou no relógio e comentou que o jogo deveria
estar acabando. Mas não fez menção de levantar e pediu mais duas cervejas. Eu
estava começando a ficar bêbado, mas não me importei. Ele esperou as cervejas
chegarem, encheu os dois copos e respirou fundo.
– Não se esqueça disso. Você ainda vai perder muito na vida. Mas você
não pode abrir mão do que faz melhor na primeira derrota. Derrotas passam. Mas
se você mudar o que você é por causa de uma derrota, ela se torna eterna. Aí
ela venceu de verdade.
Eu não sabia mais se ele estava falando sobre a Copa de 82.
– Porque, como você mesmo disse, nós ganhamos algumas vezes depois
disso. Mudamos o que éramos e ganhamos duas. Mas essa mudança tem um preço. E
esse preço foi cobrado hoje. Perdeu como time pequeno. E quando você joga como
time pequeno, é muito mais difícil voltar a ser grande. Não é difícil ser
grande, difícil é voltar a ser grande. Mas vocês vão conseguir.
Eu não sabia mais se ele estava falando sobre Copas.
– Mas é preciso coragem. Às vezes acontece algo que faz você perceber
que ou você volta a acreditar que é possível ganhar sendo aquilo que você
sempre foi, ou você vai continuar perdendo.
Eu não sabia mais se ele estava falando sobre futebol ou sobre ele. Ou
sobre mim. Ou sobre eu e a Débora. Talvez fosse um pouco de tudo. Ou talvez
fosse somente a respeito de futebol e eu, meio bêbado, queria que fosse sobre
eu e a Débora.
Mas não tive coragem de perguntar. Ele se levantou e perguntou ao cara
da padaria quanto eram as cervejas. Eu ameacei puxar a carteira do bolso, mas
ele segurou meu braço e disse que pagava. Dito e feito: pagou e fomos embora –
depois de descobrir, conversando com o velho do caixa, que o jogo havia
acabado. Sete a um.
Começamos a andar rumo ao prédio.
Talvez o álcool na minha cabeça estivesse atrapalhando meus
pensamentos, mas comecei a pensar em mim, não no Brasil. Desde que meu namoro
com a Débora terminou, eu mudei. Isso era inegável. E não foi aquela mudança
que a gente tem por aprender algo, mas sim aquele tipo de mudança que a gente
escolhe por medo de cair de novo. Eu nunca mais consegui me envolver
completamente com alguém.
Na verdade, eu nem havia namorado sério desde a Débora, mas havia
gostado de algumas coisas. Mas apenas isso: “gostado”. Eu nunca soube se não
havia namorado alguém por ter apenas gostado das pessoas, ou se eu havia
escolhido isso. Mas agora eu sabia que era minha escolha. Eu não queria me
machucar novamente como me machuquei ao perder a Débora.
Eu passei anos achando que sentia saudade da Débora. Pela primeira
vez, eu havia percebido que sentia saudade também da pessoa que eu era ao lado
da Débora. E, ao mesmo tempo, eu morria de medo de ser aquela pessoa novamente
e perder novamente.
Eu havia me tornado o Brasil depois da Copa de 82. Eu deixei de
acreditar em mim mesmo com medo de perder, e agora eu percebia que estava
levando seis gols há anos. Eu estava com medo de jogar bonito e perder de novo.
De repente, eu deixei de sentir saudade da garota por quem fui
apaixonado. Tudo o que eu sentia era medo de ficar sem a garota por quem eu
sempre seria apaixonado. Foi quando eu percebi que sentia esse medo há anos.
Era um medo irracional, já que eu sentia isso mesmo sem a Débora ao meu lado.
Mas, para mim isso, era óbvio. Pela primeira vez eu conseguia enxergar isso.
Pela primeira vez eu conseguia aceitar isso.
Chegamos à frente do prédio e paramos, em silêncio.
– Quer subir?
Sim, eu queria.
– Não. Vou para casa. É melhor.
Ele fez que sim com a cabeça e olhou para o prédio. Eu olhei também e
vi a janela da Débora fechada. Ele colocou a mão no meu ombro e olhou
diretamente nos olhos. Vi que ele estava quase tão bêbado quanto eu. E, sem
tirar os olhos dos meus, disse:
– Mas vocês ainda podem ser grandes de novo.
Eu tive a sensação de que aquele momento era importante na minha vida,
mas não consegui entender o motivo. Da mesma forma que não consegui sustentar o
olhar dele. Abaixei a cabeça e mirei o chão.
Ele apertou meu ombro com mais força.
– Vocês são maiores que qualquer coisa que tenha acontecido lá atrás.
Precisam apenas saber disso.
E virou-se para entrar. Eu fiquei parado, observando ele abrir o
portão do prédio, e só então percebi o que estava acontecendo.
“Vocês”.
Ele não falava mais “nós” ou “você”, ele falava “vocês”. Não sei em
qual momento da conversa ele começou a usar essa palavra, mas eu só havia
prestado atenção agora. Ele não estava falando do Brasil. O pai da Débora
estava falando sobre eu e ela.
Quando eu percebi isso, ele já havia fechado o portão e estava
caminhando pela entrada do prédio. Se eu tivesse parado para pensar, teria
ficado em silêncio. Mas eu não pensei – e foi melhor assim – e gritei seu nome.
A palavra saiu estranha. Fazia anos que eu não chamava o pai da Débora pelo
próprio nome. Ele se virou para mim e eu perguntei da calçada:
– Você não está falando de futebol, né?
Ele apenas sorriu como se estivesse sorrindo para uma criança que
acabou de descobrir que tem um presente escondido em algum lugar da casa.
Eu tentei sorrir de volta, mas não consegui. Ele desapareceu pela
porta do prédio e eu fui para casa, meio bêbado. Não conseguia mais pensar no
jogo contra a Alemanha. Era como se ele tivesse acontecido anos e anos atrás.
Eu só conseguia pensar na Débora e no bilhete que, de repente, havia abandonado
qualquer chance de ser um “adeus”. Mas ele também não era um “que bom
reencontrar você”.
Ele era um “eu te amo”.
Todo mundo sabia disso. Até o pai da Débora sabia disso. Se bobear,
até o Batata sabia o que a Débora sentia.
Só eu não tinha percebido isso. Porque, como eu disse, eu não sou um
idiota qualquer. Eu precisei perder de sete a um durante anos para entender o quão
idiota eu era.
Ao entrar em casa, eu desmoronei na cama e caí no sono, sabendo que
aqueles sete a um ficariam comigo.
Para sempre.
Para ler Débora e a Holanda, clique aqui.
5 leitores:
Aí está a prova que sempre se pode tirar coisa boa de algo ruim... estou aguardando ansiosa o desfecho!
Alguém tinha que ter ganhado alguma coisa com essa derrota... que bom ler isso =)
O melhor texto da serie. Que conversa sensacional entre eles. Copa de 82 e relacionamentos...uau!! Parabéns.
Adorei. Foi o meu preferido até agora!
Gente...esse foi bom.
Excelente.
Tô lendo tudo de uma vez.
Não estava acompanhando o blog na copa :(
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