27 de fevereiro de 2013

Menino Brasil e os Protestos


Deitado em berço esplêndido no sofá da sala.

É assim que o menino Brasil passa a maior parte do seu tempo. Filho do português Álvares e da índia Iracema, o jovem tem uma rotina que segue quase religiosamente: passa a manhã na escola, volta para casa, larga suas coisas em qualquer lugar, almoça e se estica no sofá, saindo de lá somente na hora de ir dormir.

O “quase” é porque Brasil aceita algumas mudanças na sua rotina, especialmente na parte da manhã. Na verdade, ele até prefere que sua manhã não tem rotina nenhuma. Às vezes cabula aula e vai para a praia; às vezes cabula a aula pensando em ir para a praia, mas aí sente preguiça, cabula a praia também, e vai para a casa do seu amigo Nanzinho. E, quando não está afim de ir nem para a praia nem para a casa do Nanzinho, lembra que é dia da aula de educação física e vai para a escola jogar bola.

Mas estas mudanças valem somente para a parte da manhã. As tardes de Brasil são sempre as mesmas: fica ali no sofá, vendo desenho animado e se entupindo de salgadinhos. E, quando seus pais reclamam que ele devia estudar mais, talvez arrumar um emprego no shopping, ele sempre responde que “tô vendo isso, relaxa”.

E continuava ali, vendo TV e cochilando em cima dos farelos. Sempre no sofá.

Por isso que seus pais estranharam o dia em que chegaram em casa, perto da hora do jantar, e deram de cara com o sofá vazio. A TV estava ligada no canal de desenhos, mas nada do Brasil. Descobriram que o garoto estava na cozinha, escrevendo num caderno. Sua mãe quase chorou de emoção.

- Meu filho, você está estudando?

- Se liga! Tô fazendo um abaixo assinado aqui!

- Um o quê?

- Um abaixo assinado! Eu tô organizando um protesto!

Neste momento, seu pai respirou fundo e foi tomar um banho. Sua mãe, Iracema, permaneceu na porta da cozinha.

- Brasil, você lembra a última vez que organizou um protesto? Não se lembra das multas que a gente recebeu do condomínio?

Havia sido alguns meses atrás. Brasil havia descoberto que uma jovem do prédio ao lado do seu tinha feito um blog protestando sobre as condições do edifício. Em suas postagens, ela criticava o zelador, acusando o sujeito de não deixar as crianças brincarem, de não trocar os equipamentos de segurança e até mesmo de beber escondido na garagem.

O blog ficou famoso e virou até mesmo tema de reportagem no bairro. Até que Brasil descobriu aquilo e ficou enfurecido.

- Essa mina é uma otária! Só fala mentira naquele blog!

- Como assim, Brasil? Você já entrou no prédio dela?

- Não, nem conheço ninguém lá! Mas é mentira! Ela tá falando essas coisas pra aparecer!

- Meu filho, se ela mora no prédio, ela tem o direito de protestar.

- Se liga! Vocês não sabem de nada! Ela tá falando isso só pra ferrar com o Maurílio!

- Quem é Maurílio?

- Maurílio é o porteiro do prédio aí do lado! Ele é gente boa, já deixou eu calibrar o pneu da minha bike lá na bomba da garagem umas duas vezes! E essa mina otária quer ferrar com ele só pra aparecer! Aposto que ela tá falando do prédio pra demitir todo mundo! Zelador, faxineiro e o Maurílio! E se o Maurílio sair de lá, vou ter que ir até o posto calibrar o pneu! Pô, o posto é na outra rua! Bem mais longe!

- Meu filho, se o prédio deles não...

- Aí! Tenho certeza de que isso aí é furado! Aposto que ela quer derrubar o Maurílio pra colocar algum camarada dela no trampo! É tudo política! É assim que as coisas funcionam, tá ligado?

- Brasil...

- Vocês nem tão ligados nos esquemas desses protestos! Sempre tem coisa por trás! Essa mina é criada nos porões da casa de uma agência de empregos de porteiros! Ela ganha pra isso! É tudo coisa de interesse! Preciso defender o Maurílio!

No dia seguinte, Brasil fez cartazes e colou nas janelas da sala do seu apartamento, com mensagens como “Tamo junto, Maurílio!”, “O posto é longe pra caralho!” e “fora comunista capitalista democratista nazista socialista imperialista” - e, neste último, Brasil caprichou. Tinha certeza de que daria todo um embasamento político ao protesto.

Mas a coisa ficou feia de verdade quando Brasil descobriu que, se esticasse na janela do seu quarto, conseguia ver o apartamento da blogueira do prédio ao lado. Passou a tarde ali, na ponta dos pés, gritando todos os palavrões que sabia na janela. E, em certa hora, Brasil decidiu que era o momento de exprimir sua opinião de um modo mais brusco e resolveu atirar dois ou três ovos na direção do apartamento da menina.

No dia seguinte, os pais de Brasil receberam três multas: uma por pendurar cartazes na fachada do prédio sem autorização; outra por baderna; e uma terceira porque os ovos tinham caído na psicina do seu próprio prédio. Para piorar, na semana seguinte, Brasil descobriu que Maurilio e outro porteiro do prédio haviam sido demitidos, para cortar custos do edifício vizinho.

Foi quando Brasil desistiu da política, concluindo que dava muito trabalho, e voltou para o sofá.

E, no fundo, seus pais acharam que era melhor assim. Mas ficaram com os pés atrás, receosos de um dia Brasil inventar outro protesto. E foi justamente estes temores que se confirmaram quando entraram na cozinha e viram o garoto arquitetando uma nova manifestação.

- Olhe, meu filho...

- Essa casa é mal administrada pacas! Então, tô fazendo esse abaixo assinado que a gente não quer mais que meu pai seja o chefe aqui!

- Você enlouqueceu, Brasil?

- Não! Se liga só!

Brasil levantou-se e abriu a geladeira.

- Saca só! Tem aquele queijo que cheira estranho que você gosta! Tem até aquele lance do... Aquele negócio ali no canto! Como é o nome daquilo? Aquele negócio que meu pai gosta? O bicho que não tem cabeça? Mula?

- Bacalhau.

- Isso! Tem até bacalhau! Só tem essas coisas! Agora abre o armário aí! Cadê os salgadinhos? Acabou! Tem só um resto aí do de presunto, que é ruim!

- Sim, porque eu não fui ao mercado essa semana, eu vou amanhã!

- É porque vocês só pensam em você mesmo! Queijo pra você! Bacalhau pro meu pai! E pro Brasil? Nada! Ninguém pensa no Brasil!

- Brasil, eu comprei seis sacos de salgadinho na última vez...

- É pouco! Pô, eu fico TV a tarde toda aqui, sem ter o que comer! Vocês aí comendo bacalhau e eu passando fome!

- Nós vamos comprar mais.

- Não! Sempre acaba! Tá na hora de mudar as coisas aqui! Eu vou fazer um abaixo assinado pra que vocês não controlem mais a casa! Tá na hora disso acabar! Tá na hora do Brasil subir ao poder! Vou fazer um protesto pra entregar o abaixo assinado!

- Brasil, meu filho...

Já era tarde demais. Usando um nariz de palhaço, Brasil já havia partido para a sala, onde estava marchando em volta do sofá, carregando sua folha do abaixo assinado e gritando palavras de ordem.

- Lêêê... Lêlêlê-Ôôô!...Lêlêlê-Ôôô!...Lêlêlê-Ôôô!...Lêlêlê-Ôôô!... BRASIL!

- Meu filho, pare com isso! Os vizinhos vão reclamar!

- Vão reclamar nada! Vão é seguir meu exemplo! Ou você acha que esse meu nariz de palhaço aqui não vai impressionar a galera?

- Olhe, eu dou um dinheiro para você agora e você vai comprar um salgadinho, que tal?

- Se liga! És mãe gentil mas verá que o filho teu não foge à luta! Estou entregando oficialmente o abaixo assinado! Tá aqui! Tem as assinaturas aqui do povo pedindo pra vocês abrirem mão do poder! Eu vou planejar as compras agora! E o salário de vocês vai abaixar!

- Que salário, Brasil?

- O que vocês ganham por tomar conta da casa!

- Meu filho, a gente não ganha nada com isso.

- Não?

- Evidente que não.

- Mal aí. Não sabia. Depois eu arrumo isso no abaixo-assinado. Mas tá aqui entregue! Pode ver aí o papel! Lêêê... Lêlêlê-Ôôô!...Lêlêlê-Ôôô!...Lêlêlê-Ôôô!...Lêlêlê-Ôôô!... BRASIL!

- Quantas assinaturas você tem? Quatro?

- Isso! Eu, o Nanzinho e mais dois caras aí!

- Quem são essas pessoas? Santa Cruz? Vera Cruz?

- Ah, é uma galera aí. Lêêê... Lêlêlê-Ôôô!...

- Brasil, isso aqui está tudo com a sua letra. Você inventou esses nomes?

- Tá bom! Tá bom! Eu assinei e o Nanzinho disse que eu podia assinar por ele! Aí toquei nos apartamentos aqui do prédio, ninguém quis assinar!

- Você o quê?

- É, toquei aí nos apartamentos e ninguém assinou! Povo alienado! Aí coloquei esses dois nomes aí, são os nomes que uso na internet! Mas tá aí! Quatro assinaturas!

- Meu filho...

- Lêêê... Lêlêlê-Ôôô!...

- Certo. Você venceu.

- Lêêê... Lêlê... Oi? Venci?

- Sim. A partir de agora, você vai fazer parte do comando da casa. E vai ficar encarregado das compras.

- Que compras?

- Toda semana, você vai até o mercado comprar tudo o que precisamos aqui em casa. E aí você compra os salgadinhos que quiser.

- E que mais?

- Ah, eu faço uma lista amanhã. Devem ter uns 20 ou 30 coisas. Carne, produtos de limpeza... Você vai ao mercado e compra tudo.

- Toda semana?

- Sim. Em algumas semanas, duas vezes!

- Pô! Puta trampo!

- Mas aí você pode comprar seus próprios salgadinhos!

- Se liga! Não era essa a ideia!

- Ou você participa do dia a dia da casa, trabalhando junto comigo e com seu pai, ou nada feito.

- Aí, eu só quero o salgadinho!

- É isso ou nada.

Brasil pensou por alguns instantes e escolheu o nada.

Recolheu o abaixo assinado e voltou para o sofá, torcendo para ainda estar passando um desenho legal. E ficou ali, resmungando da política, de como nada funciona, de como as coisas são injustas, de como tudo é errado. Até que ficou tarde e foi dormir – ainda usando o nariz de palhaço, que havia esquecido de tirar do rosto.

(Para ler a aventura anterior do Menino Brasil, clique aqui)

4 leitores:

Varotto disse...

Cara, você é um gênio.

Completamente doente, mas um gênio.

Anônimo disse...

Esse menino Brasil, quando vai aprender?

Sempre que leio seus textos fico com uma sensação de que jamais conseguirei escrever assim, tão leve, tão profundo ao mesmo tempo.
Mas escrever é trabalho duro, é inspiração e transpiração.

Francine Ribeiro disse...

Nossa, adorei o texto.
Esse menino tá precisando é de umas boas palmadas, isso sim...

Parabéns pelo texto!

Unknown disse...

Muito bom!Viajei aqui imaginando, comparando!!! Isso q é bom!!!!

 

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