18 de setembro de 2012

Onda de Calor em Moscou


Foram semanas de trabalho.

Todos os dias, o Escritor passava horas no escritório trabalhando em seu romance. E, a cada parágrafo, se convencia de que a história, sobre o casal em férias que começavam a reavaliar seu relacionamento enquanto ambos permaneciam trancados num quarto de hotel em meio a uma nevasca, seria sua obra-prima. O drama daquele casal seria o conto pelo qual ele seria lembrado.

Para isso, impôs-se uma rotina rígida. Pela manhã, revisaria todo o trabalho do dia anterior. À tarde, escreveria os trechos novos. Diálogos pesados e densos; discussões que mascaravam a morte do amor; reflexões e confissões vazias de ambos. Tudo cercado pela imensidão branca que se estendia a perder de vista pela janela do hotel.

Para se inspirar, trabalhava com fotos ao lado da tela. Fotos antigas de cidades européias, imagens de cidades cobertas por neves. Frio. Solidão. Vazio. O clima da cidade – que ele nunca assumia abertamente qual era, mas imaginava secretamente ser Moscou – refletia a desolação dos personagens. A cada trecho, conseguia associar o frio da temperatura à inexistência de um casal.

Foram semanas de trabalho até que ele emperrou em um trecho. Já estava acostumado com os personagens. Laura, calculista e regrada, via no marido um substituto para o pai ausente e jamais se entregara totalmente. Lucas, por sua vez, era impulsivo e sonhador. E havia aberto mão de todos os seus sonhos em troca do casamento.

O Escritor parou e observou a tela e silêncio, pensando.

Lucas havia acabado de confessar ter traído a esposa no primeiro ano de casamento, em uma festa. Laura permanecia ouvindo tudo de costas observando a neve pela janela. O Escritor sabia o que ela estava sentindo. Sabia que seu orgulho a impediria de chorar ou gritar. Estava analisando a situação friamente. Calculando.

- Eu acho que quero uma cerveja, respondeu Laura.

O Escritor piscou surpreendido. Laura jamais falaria isso. Ela permaneceria em silêncio, trancada dentro de si. Era o jeito dela. Apagou a frase e tentou avançar no diálogo.

- Você não quer? Uma cerveja? Eu quero. Gelada. Estalando.

Curiosamente, o diálogo soou natural. Ele já conhecia bem os personagens, sabia quando eram eles que falavam. E decididamente foi Laura quem disse isso. Frases curtas. Pausadas. Frias. Apagou o que havia digitado e esfregou os olhos. Estava cansado. Olhou para a janela do escritório e viu o Sol brilhando do lado de fora. Abriu a internet e conferiu as notícias. Todos os sites falavam da mudança brusca do tempo na cidade. Onda de calor. Temperaturas recordes.

Era isso. O calor estava atrapalhando sua inspiração. Era impossível construir uma cena num hotel cercado pela neve com o termômetro passando dos trinta graus. Foi quando o Escritor se convenceu de que não era Laura falando, era ele. Assim, decidiu aproveitar o calor e tirar um dia de folga.

Comprou quatro garrafinhas de cerveja e passou a tarde vendo filmes. Laura e Lucas podiam esperar até o dia seguinte.

Na manhã seguinte, acordou e olhou a temperatura. 29 graus. E não eram nem oito da manhã. Sentou-se no computador, sem camisa. Não havia muito para revisar, assim decidiu continuar de onde tinha parado. Releu o último trecho. Lucas confessara a Laura de sua traição. Ela estava na janela olhando a neve. Seu relacionamento estava por um fio.

Subitamente, Lucas se levantou.

- Como de costume, você não vai falar nada. Vai esmigalhar tudo dentro de você, como sempre fez com tudo. Então, vou tomar um banho gelado.

Apagou tudo.

Algo estava muito errado. Tudo bem que estava fazendo calor, mas daí a não conseguir mais escrever já era exagero. Fez uma promessa para si mesmo. Daria uma volta para arejar as ideias, e, à tarde, terminaria pelo menos um capítulo. De qualquer jeito.

Assim, foi à padaria, tomou um suco gelado e foi passear pelas avenidas. Comprou um jornal, observou vitrines e pessoas andando de bermuda e camiseta pelas ruas. Sentou-se num banco, folheou o jornal e, sentindo o suor escorrendo pelas costas, comprou um sorvete. Deu mais uma volta e, próximo à hora do almoço, entrou num restaurante e pediu uma salada e um suco. E pediu para o garçom ligar o ventilador.

De volta ao escritório, encontrou Laura e Lucas na mesma posição.

Releu o capítulo inteiro, mudando detalhes em alguns trechos, e continuou a escrever.

- Laura? Você não vai falar nada?

- Não. Não há o que falar agora.

- Como assim, agora? O que mais precisamos esperar?

- Só alguns minutos. Eu vou colocar um biquíni, aí conversamos.

O Escritor deu um berro de raiva. O calor estava acabando com seu texto. Apagou tudo, foi até o banheiro, tomou uma ducha gelada e voltou para o computador. Lá estavam Laura e Lucas, com a barreira da confissão da traição entre eles. Uma barreira intransponível, marcada pelo silêncio e pelo clima frio.

Estalou os dedos, respirou fundo. Olhou as fotos, em busca da inspiração que somente o frio traria. Fechou os olhos e se imaginou no Alasca, ignorando o filete de suor que descia pelas suas costas. Era a vez de Laura. Respirou fundo e começou a digitar.

- Lucas, eu sempre soube da traição.

- Mas você nunca demonstrou isso.

- E o que eu ganharia demonstrando? O fim do casamento?

- Laura, eu queria...

- O quê?

- Não sei. Não sei ao certo. Acho que uma raspadinha. De morango. Será que eles têm isso aqui no hotel?

O Escritor de um murro na mesa e apagou a frase. Levantou-se, ligou o ventilador e voltou para mesa. Apagou a última frase.

- Eu queria ver que você se importa. Pelo menos uma vez na vida.

- Eu me importo.

- Mas você não demonstra. Você nunca demonstra nada, nem para você mesma, quanto mais para os outros. Você se esconde por trás deste discurso, sem... O que você está fazendo?

- Tirando a roupa. Vou para a piscina do hotel. Você vem? Devem vender raspadinha ali.

Resignado, o Escritor apagou tudo socando o teclado. Foi até a janela e olhou o Sol brilhando, resmungando algo sobre o calor destruir seu romance.

Consultou os sites de previsão do tempo e a onda de calor duraria pelo menos mais duas semanas.

Estava escrevendo há semanas. Não iria parar por causa do clima.

Nos dias que se seguiram, tentou de tudo. Comprou um ventilador mais forte. Tentou trabalhar pelado. Comprou um ar condicionado. Trabalhou pelado. Olhava as fotos das capitais européias, buscando desesperadamente o frio dos dias anteriores. Comprou um enfeite que simulava um castelinho com neve dentro de um globo, chacoalhando o negócio o tempo todo, aos gritos de “neva, porra!”

E, dias depois, caiu doente depois de passar a tarde tentando trabalhar, digitando pelado, com o ar condicionado ligado e os pés mergulhados num balde cheio de gelo. Foi encontrado pela empregada caído no chão, com quase quarenta graus de febre e levado às pressas para o hospital. Pneumonia.

Passou alguns dias internado, e teve alta antes do calor passar. Tentou voltar a trabalhar no texto, mas desistiu pouco depois. Havia perdido os personagens.

E sempre que os amigos perguntavam em que pé estava o romance, ele contava que havia desistido de tudo, explicando:

- Desisti. Parei de escrever quando eles foram para a praia.

- Praia?

- Sim. A última vez que olhei o que estava escrito, os dois estavam na praia. Bêbados, correndo com uma bola colorida nas ondas e chutando água uns nos outros, feito dois caipiras.

- Mas você não imaginava a história num quarto de hotel em Moscou?

- Não quero falar sobre isso.


6 leitores:

Jandir Jr. disse...

Gostei muito dessa crônica, principalmente pelo embate que permeia todo o texto: Obra-prima versus limitações.
Me lembrou da humanidade esquecida nos grandes projetos, na sede de vitória, no pódio... Enfim.

Obrigado!
Parabéns por seu dom.

Anônimo disse...

"Quando ele finalmente conseguiu se sentar para terminar aquela obra, ele estava tão frustrado que a mudou quase que completamente. Mas, acabou por fim conseguindo realizar uma obra-prima.

O nome do Escritor? Stephen King."

Anônimo disse...

/\ acho que minha referência ficou um pouco forçada, mas foi o que eu fiquei pensando durante o seu texto inteiro.

Molly disse...

Eu nunca comento (eu sei, eu sei, pode brigar comigo) mas tive que comentar nesse. Me identifiquei com o Escritor. Muito bom mesmo :) meu segundo preferido, só perdendo para o Two of Us que é amor demais.

Lucas Reis disse...

Isso já me aconteceu algumas centenas de vezes. Perfeito. Adorei o texto: e nem é só por ter um personagem com meu nome.

Lucas Reis disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
 

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